domingo, 24 de abril de 2011

"O Estruturalismo e a Miséria da Razão" - Carlos Nelson Coutinho

Resenha #23 0 “O Estruturalismo e A Miséria da Razão” – Carlos Nelson Coutinho – Ed. Expressão Popular




Autor

Carlos Nelson Coutinho é filósofo marxista, militou no PT e hoje mantém proximidade com o PSOL. Introduziu no Brasil, junto com Leandro Konder e outros, as idéias do filósofo húngaro György Lukács. Alguns anos após a publicação do “Estruturalismo”, passaria a estudar o filósofo italiano Antônio Gramsci. E é a partir da influência gramsciana que Coutinho lançará seu provável mais famoso ensaio, “A Democracia Como Valor Universal”.


Objetivos do Estudo

A publicação de “Estruturalismo e A Miséria da Razão”, cerca de 30 anos após o seu lançamento (1971), revela a atualidade das discussões propostas pelo autor. O objetivo da obra, então, era o de fazer crítica militante acerca da tendência filosófica predominante nas universidades brasileiras após 1968. O exílio dos intelectuais brasileiros de esquerda e o cerco ideológico promovidos pela repressão criou condições para a importação daquela nova moda filosófica francesa. No Brasil, o Estruturalismo viria a preencher o vazio intelectual decorrente da repressão e da fragilidade política da esquerda, pouco capaz de dar respostas teóricas às críticas do estruturalistas à razão dialética, ao humanismo e à história dotada de sentidos.

Já o objetivo da obra de Carlos Nelson Coutinho, hoje, vai além de ilustrar os embates filosóficos de sua época e/ou tratar de alguns tópicos da filosofia de Marx, e particularmente de Lukács e sua ontologia do ser social.

O texto é ainda capaz de armar o campo crítico e marxista de argumentos e respostas às tendências filosóficas irracionalistas: hoje, o estruturalismo deixa de ser a moda filosófica, havendo versões atualizadas da “miséria da razão” sob os nomes de pós-estruturalismo e pós-modernismo. Igualmente, estruturalismo e pós-estruturalismo têm lances de continuidade e sinalizam respostas do mundo da filosofia às exigências da economia e manifestações dos ciclos de crise e expansão do capitalismo. O Estruturalismo, filosofia européia que mantém correspondência com um momento de expansão do capital, estabelece suas bases filosóficas a partir de modelos esquemáticos, da técnica, da razão instrumental, tabelas, números e eficácia. O pós-estruturalismo, correspondendo aos eventos da reestruturação produtiva e crise econômica estrutural, sinaliza insegurança, contingência, irracionalismo, o resgate da filosofia pessimista de Nietzche e Heidegger, dentre outros. O que há de comum entre estruturalismo e pós-estruturalismo é a negação dos 3 eixos fundamentais da filosofia do marxismo: o humanismo, o historicismo e a dialética.

Batalha das Ideias

Ao negar o humanismo, o Estruturalismo é incapaz de revelar a “mutilação da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente insensato”. Ao negar o historicismo, o estruturalismo naturaliza as relações históricas de exploração, chegando a teses extremas, como em Levi-Strauss, de se defender a existência de estruturas e normas sociais que antecedem o homem, e portanto, a própria história. Ao negar a dialética, o Estruturalismo instaura a hegemonia da razão meramente instrumental – chamada por Carlos Nelson Coutinho de Intelecto. Negar a dialética, seja por estruturas normativas imutáveis (estruturalismo) seja pela pura e simples negação da racionalidade a priori (pós-estruturalismo) significa contrapor-se aos esforços de promover um entendimento totalizante da realidade, capaz de tornar o mundo congniscível e passível de ser transformado: pensar para além do intelecto significa utilizar a razão decorrente das descobertas filosóficas de Hegel e Karl Marx, negadas pelas mais distintas formas pelas filosofias manipulatórias.

Reinvindicar a atualidade da filosofia crítica e emancipatória significa confrontá-la com as demais filosofias associadas, de forma mais ou menos consciente, à lógica de reprodução do capital. A batalha das ideias segue viva, 30 anos após o lançamento do “Estruturalismo e A Miséria da Razão”.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Felicidade Conjugal" - Lev Tolstoi

Resenha #22 “Felicidade Conjugal” – Lev Tolstoi – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann



Sobre a obra

Felicidade Conjugal foi lançada em 1859, tratando-se de obra da fase jovem do escritor russo Lev Tolstoi ( 1828-1919). Quando o romance foi escrito, o autor tinha pouco mais de 30 anos. Não se identifica em Felicidade Conjugal algumas idéias relacionadas à moral e política que marcariam sua obra mais reconhecida.

Ainda não se aborda em Felicidade Conjugal questões sociais, não há descrição das profundas desigualdades econômicas dentre as classes sociais da Rússia do séc. XIX. Não há relatos das condições de vida de camponeses e mujiques contrapostas à descrição e à crítica do luxo exacerbado das classes dominantes da Rússia – tanto a aristocracia quanto à burguesia incipiente das cidades – tema que será particularmente analisado no útlimo romance do autor, “Resurreição”.

No que se refere à moral, não há o viés doutrinário do cristianismo, que igualmente é parte do conjunto de idéias que se abrigam sobre o termo "tolstoísmo". Felicidade Conjugal é um romance sucinto, é um relato pessoal das experiências amorosas de Mária Aleksândrovna. O objeto central do texto são os sentimentos da personagem, ou talvez mais exatamente, o desenvolvimento dos sentimentos de afeto e amor da Maria ao longo do seu amadurecimento pessoal e do amadurecimento de sua relação com seu marido Sierguiéi Mikháilitch.

Em um aspecto pudemos, porém, identificar um traço de continuidade entre Felicidade Conjugal e a obra subseqüente de Lev Tolstoi. Trata-se da habilidade com que o autor traduz os sentimentos das personagens, sensações sutis decorrentes dos relacionamentos humanos ou mesmo da percepção humana acerca da natureza. A descrição de nuvens movimentando-se no céu, formando chuvas e posteriormente dissipando-se combina-se no enredo com a trajetória das personagens de forma bastante interessante.

Tolstói foi muito capaz de captar e e comunicar coisas sutis das pessoas e dos ambientes. Exige-se boa capacidade de interpretação do homem e do mundo para conseguir descrever sensações profundas e complexas de forma tão simples. De maneira geral, os textos de Tolstoi são sempre bastante acessíveis. Frases curtas, orações diretas e vocabulário comum oferecem análises e reflexões aprofundadas acerca dos diversos temas decorrentes do amor. No caso de “Felicidade Conjuugal”, do amor burguês.

Sobre a História

Mária Aleksândrovna casa-se ainda muito jovem com Sierguiéi Mikháilitch. Seu amor pelo marido é relatado desde sua infância, quando o afeto então assumia a forma de admiração e respeito análogo ao amor por seu pai. Conforme a jovem amadurece, igualmente seu amor por Mikháilitch vai tomando formas distintas. Apaixonam-se, casam-se e retiram-se para o campo, para uma vida inicialmente feliz. A diferença de idade passa a ser fonte de angústia e inquietações por parte de ambos e o desenvolvimento da felicidade conjugal em diferentes aspectos vai sendo relatada por Maria.

Cumpre ressaltar que o casal possui terras e muitos recursos financeiros. Na gleba do casal moram camponeses trabalhadores, não se sabendo em que condições. Pouca ou nenhuma atenção é dada pelo texto (e por Maria) a qualquer questão que não a relação amorosa do casal. A descrição reiterada dos sentimentos individuais, mesmo se tratando de sentimentos sutis e originais, pode parecer um pouco entediante para certo tipo de leitores.

Possibilidades

Ainda assim, é possível extrair algumas lições de Felicidade Conjugal. O interessante aqui é tentar extrair da história algumas idéias sobre como se fundam as relações de gênero numa sociedade em que co-existem relações capitalistas e pré-capitalistas de produção, desenvolvimento de cidades e ilustração burguesa convivendo com o domínio aristocrático no campo, forte presença religiosa da Igreja Ortodoxa, suntuosidade e opulência em bailes e eventos envolvendo o conjunto da classa dominante russa. Neste tipo de sociedade, não cabia à mulher nenhuma preocupação que não fosse tocar piano, conversar com outras mulheres durante o dia e viver de forma subserviente ao homem, reconhecer-lhe total autoridade sobre si. Mária não só o faz, como parece que o deseja a todo momento. A dominação masculina é parte daquilo que sente e interpreta como "felicidade conjugal" na medida em que seu amor é fruto também de suas expectativas sobre o que é ser mulher naquela sociedade.

O desafio inconcluso de “Felicidade Conjugal” é buscar a compreensão da forma como o amor e a felicidade podem subsistir às relações de opressão e dominação. Mária é feliz e sua felicidade está totalmente comprometida com um mundo radicalmente machista. Hoje isso deve significar, entre outras coisas, repensar o que é o amor e como ele pode projetar novas relações de gênero distintas daquelas das sociedades pré-capitalistas e capitalistas descritas em ‘Felicidade Conjugal’.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

"A Chinesa" - Jean Luc-Godard

Resenha Filme #3 – “A Chinesa” – Jean Luc-Godard



6 Pontos sobre "A Chinesa" de Jean Luc-Godard

1- O filme retrata jovens universitários franceses organizados numa célula política de orientação maoísta. O grupo passa os dias dentro de um apartamento, de onde praticamente não saem, falando de temas teóricos ligados à arte, filosofia da linguagem e política internacional, sempre se orientando pelas críticas ao imperialismo norte-americano e ao revisionismo soviético. (O fato dos jovens estarem isolados do mundo é determinante, por suposto, na conformação de suas análises políticas da realidade). A obra passa-se em Paris de 1967 e ilustra a geração de universitários franceses que participariam das revoltas do maio de 68.

2- Veronique tem 19 anos, estuda filosofia, aparenta possuir vasta formação teórica, ainda que imatura e impaciente politicamente. Kirilov é um artista, pouco intevem nas discussões do grupo e defende o terrorismo político. Henri é químico e tensiona o coletivo acerca da necessidade de objetividade nas análises: “o marxismo é uma ciência.” É acusado de revisionista e, ao defender a coexistência pacífica entre URSS e EUA, é expulso da célula. Guillaume é ator, fala sobre política de forma intensa, lê trechos do livro vermelho em voz alta e aparenta ser arrogante. Yvonne é de origem camponesa, diferencia-se do restante do grupo por sua origem social, pelo fato de não compreender as discussões na forma como elas são feitas pelos universitários. Na cidade, trabalhou como faxineira e eventualmente prostitui-se.

3- O filme tem uma linguagem bastante específica, os diálogos são intercalados com mensagens políticas, imagens de Lênin, Mao-Tsé Tung, Malcon X e Stálin ou cartazes de propaganda política, fotografias ilustradas da revolução cultural chinesa, da resistência na Argélia e jovens dissidentes na URSS. O apartamento é decorado com mensagens políticas pintadas nas paredes e diversos livros vermelhos. Os livros vermelhos são utilizada como barricada em luta simbólica contra o imperialismo ou jogados num tanque de guerra de brinquedo. A forte presença do livro vermelho remete à centralidade da revolução cultural dentro do imaginário dos jovens franceses do final dos anos 1960. Os impactos decorrentes da morte de Stálin, o imperialismo soviético, a coexistência pacífica e a emergência das guerrilhas no chamado terceiro mundo são retratados nas discussões políticas, nas imagens e nos desdobramentos finais do filme (que não serão contatos nesta resenha).

4- Uma discussão específica entre Veronique e um antigo professor da universidade nos pareceu o ponto alto do filme. O fato do diálogo dar-se fora do apartamento favorece a crítica sobre as políticas dos jovens universitários: dentro de um trem em movimento, aquele é um dos poucos momentos que Veronique convive com pessoas de fora da célula. A conversa gira em torno dos problemas das universidades francesas, do autoritarismo e sensação de sufocamento cultural e das formas de luta de resistência. Veronique revela neste momento o fato de que os dois anos de estudos teóricos de marxismo não expressam conhecimento e sensibilidades acerca do real, dos desafios concretos e objetivos dos estudantes na luta pelo socialismo. A proposta da ação terrorista, de lançar bombas na universidade defendida por Veronique é duramente criticada. As ações terroristas não vinculadas com um movimento de massas e com um alguma possibilidade de adesão no sentido de promover uma luta generalizada não são objeto de preocupação na estudante. A luta revolucionária surge à personagem como algo pessoal. Lênin quando discute o esquerdismo, relaciona-o à política pequeno-burguesa. Não se pode fazer a revolução pela maioria mas necessariamente com a maioria.

5- O isolamento da célula revolucionária em relação ao mundo é igualmente fonte de provocação àqueles que hoje lutam pelo socialismo num contexto em que a possibilidade de um futuro pós-capitalista aparenta ter sido jogada no lixo da história. O fato é que todo o estudo teórico não suprime a exigência da experiência prática como forma de apreensão do real, dos objetivos e dos meios de luta através da “análise concreta da realidade concreta” (Lênin). O apartamento da célula maoísta existe como um mundo à parte, sem conexão orgânica com a realidade dos trabalhadores. Emblemático o fato da camponesa Yvone estar isolada politicamente do grupo. Em uma de suas poucas intervenções é vaiada pelos estudantes, ao responder que a origem da verdade é o “céu”. No que se refere à nossa realidade, a provocação vai num sentido mesmo além da crítica à política de seita. A provocação trata daquilo que costuma-se chamar das condições objetivas e subjetivas da revolução. Se o conhecimento teórico do grupo dá suporte às interpretações teóricas acerca das condições objetivas, esta depende da vivência concreta dentro da realidade do trabalho – fora do apartamento ou de reuniões internas de partidos e dentro de fábricas, escolas, nos bairro populares. Sobre as condições subjetivas, estas se expressam na organização política, nos fluxos de consciência da classe que vive do trabalho e na sua interação com as análises das condições objetivas.

6- A ideia de que um apartamento fechado ao mundo de onde um grupo jovens dará partida a uma revolução mundial é comparada a uma fábula, relatada no filme, que oferece uma boa síntese de a Chinesa. No Egito, acreditava-se que a língua falada por aquele povo era a mesma que a língua de deus. Para demonstrá-lo, conta-se que um pequeno grupo de bebês foi deixado numa casa em total isolamento do mundo: havia a expectativa de que os pequenos aprendessem a língua naturalmente. Passados alguns anos, constatou-se que as crianças comunicavam-se grunhindo como carneiros – notaram que havia carneiros ao lado da casa onde as crianças foram abandonadas. A crítica política de Godard refere-se à ideia de que o apartamento equivale a casa das crianças egípcias. Infelizmente, a crítica tem sua atualidade.

quarta-feira, 30 de março de 2011

"Carlos, a Face Oculta de Marighela" - Edson da Silva Júnior

Resenha #21 – Carlos, A Face Oculta de Marighella – Edson Teixeira da Silva Júnior – Ed. Expressão Popular





O sentido da Face Oculta

A biografia de Carlos Marighela é também uma dissertação de mestrado de História Social. Seu objeto é a análise da trajetória pessoal e militante de Carlos Marighela, destacando as formas como sua personalidade (particularmente a sua sensibilidade no trato com as pessoas e sua impetuosidade) vão ter implicações nos desdobramentos políticos relacionados ao movimento comunista brasileiro do séc. XX., especificamente o PCB e a ALN.

A ideia da “face oculta”, aqui, refere-se a uma preocupação que perpassa toda a biografia: o esforço por parte do autor da biografia(esforço até certo ponto militante) de ir desconstruindo toda imagem criada pela ditadura militar sobre a personagem.

Carlos Marighela, o “inimigo número um da ditadura militar”, foi retratado pelo regime e órgãos de imprensa da época (como não poderia deixar de ser) como um terrorista, um militante “radical e profissional”, sem qualquer compaixão pelo ser humano e altamente perigoso. Não é preciso aqui destacar os papeis dos aparelhos de propaganda ideológica durante o regime militar brasileiro nem é muito difícil compreender o que está por trás da forma como o regime buscou caracterizar Marighela. O personagem sofrera em 1964 um atentado por policiais em plena sessão de cinema: oficiais invadem uma sala, atiram em Carlos Marighela, este sobrevive, resiste e é levado preso. Sua prisão e o relato da tentativa de assassinato pela repressão deram origem ao relato “Por que resisti a prisão”, um documento político voltado à mobilizar a luta contra o regime. Assim sendo, todo esforço em criar a face do assassino cruel e desumano sinaliza alguma preocupação das autoridades acerca das possibilidades de Marigela credenciar-se como uma liderança ou mesmo um herói.

Já a face oculta, trabalhada pela dissertação de Edson Teixeira, aborda os traços de afetuosidade, coragem pessoal e valores políticos que caracterizam Marighela. O oposto do que fora pintado pelos militares, portanto. Para tanto, há o esforço em descrever aspectos de sua vida familiar, relatos de parentes acerca da infância e adolescência do militante revolucionário e algumas históricas que vão sinalizando aspectos da personalidade individual.

Vida Privada

Marighela gostava de samba e futebol. Era mulato, baiano e lutava capoeira. Tinha 1,90 de altura e porte físico de atleta. Em reuniões do partido comunista, particularmente em momentos de tensão, fazia intervenções em versos. Tinha um gênio impetuoso, intepestivo, assumia riscos excessivos: em plena ditadura militar, procurado pela polícia, ao presenciar cena de violência policial junto a operários, reúne os trabalhadores após a dispersão da repressão e em praça pública faz discurso político contra o regime.

Outros dois traços marcantes da personalidade individual de Marighela: humildade radical no trato com os demais militantes, mesmo sendo o respeitado dirigente do PCB e ALN; bravura, tendo como exemplos a sua resistência à prisão e relatos que contam que, mesmo nos momentos de tortura, Marighela resistia aos socos aos algozes.

Um pequeno esclarecimento sobre a questão da coragem de Carlos Marighela. Não nos interessa, aqui, análises acerca da valentia individual de um militante de forma a fazer juízos de valor acerca de seu caráter ou de sua moral. Vale lembrar que tal viés de interpretação é no mínimo empobrecedor ao não levar em consideração, por exemplo, as contingências que determinam distintos momentos da consciência política individual – um militante aguerrido hoje pode perfeitamente ser amanhã um gestor qualificado do capitalismo. Não há espaço para juízos morais definitivos das personalidades individuais sem grandes riscos de maniqueísmos. O que nos interessa neste ponto da valentia de Marighela, e esta também parece ser a intenção do autor, é mostrar como aquela bravura sinaliza certa dose de confiança pessoal sobre as políticas defendidas pelos comunistas, confiança na vitória da resistência contra a ditadura e pela construção do socialismo. Algo que diz respeito a forma como os comunistas brasileiros viam o mundo e interpretavam a realidade política do país.

O Novo Homem

A biografia de Carlos Marigela pode servir como um ponto de partida para aqueles que pretendem conhecer um pouco sobre a história não só da personagem mas dos instrumentos de luta (PCB e ALN) correspondentes à trajetória de Marighela.

Outra possibilidade da obra é a de servir como certa fonte de inspiração e reflexão àqueles que militam e/ou têm expectativas acerca da transformação radical do mundo. A inspiração aqui se refere aos exemplos da vida pessoal de Carlos Marighela. (Evidentemente, a inspiração não deve implicar em certa idolatria que corrobora para personalismo político cuja conseqüência quase sempre é autoritarismo político).

Carlos Marighela aparenta possuir forte capacidade de empatia (colocar-se no lugar do outro) e isso inspira na medida em que nos faz crer ser a empatia certa condição para os revolucionários em sua luta contra o capitalismo. Não é possível solidarizar-se sinceramente com a luta dos trabalhadores sem levar em consideração as expectativas e exigências da classe que vive do trabalho.

Ademais, a experiência de militar e lutar por um novo tipo de sociedade – cujas conseqüências são também a construção de novos valores pessoais – exigem alguns compromissos individuais. Sob o capitalismo, naturalizamos valores e práticas associadas de maneira mais ou menos direta à exploração e alienação do trabalho: opressões de gênero, homofobia, individualismo, competitividade, indiferença em relação ao sofrimento alheio, etc. Os compromissos individuais devem partir de uma certa vigilância pessoal que cada militante deve ter acerca daquelas naturalizações.

A vigilância pessoal decorre da percepção crítica do mundo, do questionar as naturalizações. Porém, apenas a vigilância de consciência e exercícios de autocrítica podem não ser suficientes. Carlos Marighela, quando resolve uma prova de matemática em versos de poesia, ou quando divide tarefas de trabalho doméstico com sua companheira para além das divisões tradicionais de gênero ou, ainda, quando dedica sua vida e morre pela luta pelo socialismo não apenas pensa mas busca concretamente vivenciar e praticar os novos valores que indicam um mundo para além do capital.

Balanços inconclusos

Um último tópico que acreditamos que poderia ter sido mais trabalhado no estudo – a título, portanto, de crítica construtiva. Trata-se do debate sobre os motivos do fracasso da luta armada e mais especificamente do assassinato de Carlos Marighela. A luta armada ocorre durante um ciclo de expansão da economia – correspondente ao "milagre econômico" – que dificulta as tentativas de criar formas de adesão popular à luta armada. Num contexto em que o Brasil está próximo do pleno emprego e com o incremento das relações de consumo (decorrentes da inclusão das massas ao trabalho e à ascensão de classe média nos centros urbanos) a situação econômica contribui para o isolamento da luta contra o regime – evidentemente, o isolamento decorre igualmente da forte repressão do estado e de todo seu aparato repressivo e ideológico e de deficiências teóricas dos movimentos de resistência que tencionam promover as mudanças através de experiências estrangeiras sem as mediações que traduzam os desafios dos socialistas para a realidade brasileira. As relações entre os ciclos de expansão e crise do capital e as distintas formas de luta política seria um bom ponto de partida para novas reflexões sobre o sentido da luta armada no Brasil.

sexta-feira, 25 de março de 2011

"Um Governo de esquerda Para Todos" - Paul Singer

Resenha Livro #20 – “Um Governo de Esquerda Para Todos” – Paul Singer Editora Brasiliense




O Triste Fim do Programa Democrático Popular

“Um Governo de Esquerda Para Todos” foi uma boa opção de título para o livro de Paul Singer. Trata-se de um relato da experiência do economista como Secretário do Planejamento do governo municipal de Luíza Erundina. Entre 1989 e 1992, a maior cidade do país foi governada pelo Partido dos Trabalhadores, naquele momento, a maior expressão da organização dos trabalhadores decorrente do ascenso das lutas sociais dos anos 1980.

“Um governo de esquerda para todos” é uma frase gritantemente contraditória. A esquerda nos governos, quando não acompanhada por amplas mobilizações de massa que viabilizem uma ruptura a partir de baixo, é sempre fonte de desconfianças. As diversas experiências históricas, inauguradas pela social democracia alemã, só reforçam a tese de que, na melhor das hipóteses, a esquerda, quando governa por meio do estado burguês, terá necessariamente de fazer graves concessões. (Nosso desafio é analisar os casos individualmente para se pensar e em que medida a organização e as lutas independentes dos trabalhadores e do povo avançam ou recuam durante aqueles governos).

“Um governo de esquerda para todos”, além disso, apresenta uma contradição maior, que vai perpassar todo o ensaio de Paul Singer. Quando assume o controle do governo municipal, pela via democrática formal, a prefeitura do PT assume as regras do jogo da democracia burguesa, o que significa admitir a responsabilidade de promover um governo “para todos”, pobres e ricos, patrões e operários, capital e trabalho.

A exigência da conciliação vai criando todo tipo de embaraços, particularmente dentro das relações entre o PT e o governo. A militância do PT exigindo as mudanças radicais correspondentes ao seu programa de radicalização da democracia burguesa e/ou socialismo, a depender mesmo das diversas forças políticas internas do partido em embate. E a gestão municipal justificando-se com a exposição de planilhas, dados numéricos e exigências legais que, sob qualquer hipótese, podem ser violadas sob a pena do “colapso”.

As raízes da contradição do Governo Popular

Os conflitos entre as exigências da militância e da governabilidade decorrem de maneira geral da contradição de um governo de esquerda com compromissos concomitantes com o capital e trabalho.

Decorrem igualmente de estratégia política que entende haver possibilidade de se acumular forças para o trabalho através do exercício da gestão dos poderes públicos combinado com a “democratização” no acesso à política (Neste último caso, vale colocar que os foros públicos, o orçamento participativo e as assembléias nos bairros, propostas pelo governo de Erundina foram sendo derrotadas um a um por exigências econômicas e jurídicas, falta de recursos, pressão dos empresários, manobras da oposição no legislativo, vetos das iniciativas pelo judiciário, etc.).

É possível identificar, finalmente, certo fetiche acerca dos aparelhos ideológicos, a prefeitura, por parte de ambas as partes, o partido e a gestão de Luiza Erundina. A atuação dentro da gestão é tumultuada por diversas mediações determinadas historicamente como forma de frustrar políticas que subvertam a lógica dominante das cidades sob o capitalismo: forte exclusão social, diferenças brutais nos acessos e na qualidade dos serviços prestados pelas classes, arrocho salarial dos trabalhadores do município enquanto empresários não têm sua margem de lucro afetadas pelas políticas do governo “de esquerda”, etc.

As normas e as exigências institucionais comprem um papel literal de conservação.

A ausência de mudanças e a contradição do “governo de todos” geram frustração em ambas as partes: “os companheiros do PT estavam frustrados porque, depois de vários meses da ‘tomada do poder’ municipal, aparentemente nada tinha mudado – no caso do transporte coletivo, a tarifa continuava sendo aumentada e a superlotação dos ônibus tinha ainda piorado mais. Os membros do governo por sua vez estavam frustrados não só porque suas próprias expectativas não se haviam realizado mas também porque o conhecimento precioso que estavam adquirindo sobre o lado de dentro da máquina governamental não despertava o interesse dos companheiros do partido(...)”.

Neste último ponto, Singer desaponta-se com o fato dos demais militantes não considerarem as possibilidades de aprendizagem nem as dificuldades da gestão. Ao longo de todo ensaio, há a defesa pessoal do governo Erundina, preserva-se sempre a figura da prefeita, mesmo onde o autor reconhece haver erros da gestão, de maneira que, no texto, Paul Singer parece debater com sinceridade e honestidade política. Igualmente, não temos acordo com sua política, com sua proposta de “democratização da democracia burguesa” por meio de atuações “participativas” dentro de uma estratégia de governo para “todos”. Esta é a política que tem como vocação administrar os conflitos de classe nos momentos de ascenso e maior complexidade das lutas, diz respeito à ação de gestores qualificados técnica e politicamente para atuar nos ciclos de crise do capitalismo.

O programa democrático popular, sob o qual o governo de Erundina orientava-se, ainda hoje tem peso majoritário dentro do campo de esquerda (democrática e socialista) do país. A leitura do relato de Paul Singer é uma boa provocação sobre o sentido do programa democrático popular num momento em que o governo do PT em seus 12 anos na gestão do país sequer resultou numa redução significativa da desigualdade social, elemento mínimo para se reivindicar um governo como de esquerda.

Citação Interessante

“Durante toda a minha vida de militante de esquerda fiquei intrigado pelo fato de governos eleitos sobre plataformas de mudanças profundas quase sempre acabarem realizando muito menos do que deles se espera. Refiro-me obviamente a governos democráticos, eleitos livremente e governando dentro da legalidade constitucional. Nunca me convenci do argumento frequentemente utilizado por críticos de que os governantes, uma vez instalados “no poder”, simplesmente esquecem as promessas feitas, se é que alguma vez tiveram intenção de cumpri-las. Há até um dito cínico a respeito. Governar seria como tocar violino: toma-se o instrumento com a esquerda mas ele deve ser tocado com a direita”

terça-feira, 22 de março de 2011

Artigo Max Weber e o Direito

Artigo direito, política e poder #1 - Alguns elementos da discussão weberiana acerca do direito.




Max Weber é sociólogo alemão reconhecido por seus estudos acerca da conformação das instituições políticas formais, a importância da burocracia e a crescente racionalização da política e do direito como elementos constitutivos da modernidade. O projeto weberiano refere-se ao esforço de consolidar instituições políticas eficientes frente ao incremento das relações comerciais e a generalização do capitalismo em nível mundial. A própria gênese do capitalismo é fonte de preocupação de Max Weber em “A Ética Protestante”: sua proposta de interpretação das raízes ou dos elementos gerais que criam condições para o desenvolvimento do capitalismo dizem respeito à cultura de maneira geral e à religião protestante de maneira mais específica. Em "Economia e Sociedade", Max Weber destaca estudo sobre os aparelhos de poder, as relações entre estado e economia e a conformação histórica do direito. Tivemos acesso apenas ao 'Ética Protestante' e poucos capítulos de 'Economia e Sociedade'. Este artigo, por suposto bastante insuficiente, deve abordar alguns elementos tratados por Weber sobre o direito em seu último livro e talvez mais importante livro (Economia e Sociedade), lançado em 1922, dois anos após a sua morte.

A Justiça Leiga

Weber remete ao problema da conformação do direito na modernidade, sua especialização e suas relações gerais com o desenvolvimento histórico: as novas exigências econômicas e sociais genericamente decorrentes do desenvolvimento histórico do capitalismo. Dentre as tendências, identificamos a questão da especialização do direito, “a crescente tendência a considerar o direito vigente um aparato técnico com conteúdo desprovido de toda santidade racional”, corroborando para um “desconhecimento crescente” do direito por parte dos leigos. Leigos, aqui, são entendidos por todos aqueles de alguma forma afetados pelo direito, porém não sendo operadores do direito, propriamente ditos. A justiça leiga relaciona-se com o direito especializado de forma a existir fontes de tensão, genericamente decorrentes de diferentes expectativas acerca das finalidades e da forma como deve conformar-se o direito e a justiça. Weber exemplifica tensão entre a justiça leiga e a justiça dos especialista a partir do problema do direito penal e da participação de jurados nas deliberações dos conflitos. “Uma justiça de cádi diretamente irracional é atualmente praticada, em grande extenção, na justiça penal, em forma de justiça “popular” dos jurados. Corresponde ao sentimento dos leigos não instruídos juridicamente, a quem aborrece o formalismo do direito em cada novo caso concreto, e além disso aos instintos das classes não-privilegiadas, que exigem justiça material. Mas precisamente contra a peculiaridade da justiça de jurados, condicionada por esse caráter de justiça relativamente popular, há ataques vindos de dois lados”. Weber sinaliza como fonte daquela tensão uma oposição anterior, referente às exigências do princípio formal e o material da justiça.

Tendências Estamentais do Direito Moderno.

O projeto weberiano corresponde aos desafios dos aparelhos institucionais europeus frente às novas exigências da economia e sociedade na modernidade. Esta é uma questão que perpassa de maneira geral toda sua obra: o problema da burocracia, as relações entre o desenvolvimento do capitalismo e aspectos da cultura e da religião, entre outros. Particularmente no que se refere ao direito, o seu desenvolvimento na modernidade não significa a total eliminação de aspectos do direito pré-modernos, referentes, neste ponto, às tendências estamentais (que interpretamos aqui como “pré-modernas”) do direito na modernidade. Dentre estas tendências, Weber exemplifica em passagem que discute o direito mercantil. “O direito mercantil, na medida em que é pessoalmente delimitado, é direito de classe, e não direito estamental. Mas, sem dúvida, esta oposição diante do passado é apenas relativa”. Além das novas delimitações técnicas do direito, decorrentes do incremento das relações comerciais associadas à generalização do capitalismo, sobrevivem “particularidades jurídicas delimitadas por critérios puramente estamentais, com sua extrema importância, qualitativa ou quantitativamente”. As relações comerciais remetiam então a relações de confiança pessoal. Outrossim, finaliza Weber, “a delimitação da esfera de vigência dos direitos profissionais particulares – desde que não estava ligada à admissão a uma união – era quase sempre tratada, de modo puramente formal, pela aquisição de uma licença ou privilégio”. Vale sinalizar ainda referências que Weber faz ao direito anglo-saxão enquanto direito carismático, subjetivistas e patriarcal: todos esses elementos remetem àquelas tendências pré-modernas do direito.


Sínteses

Vale uma reflexão acerca dos significados mais gerais da formalização do direito e seu diálogo com problemas da atualidade. Além da formalização remeter a embates decorrentes de expectativas sociais da promoção de justiça, o fenômeno corrobora para uma situação contraditória. Vamos citar uma passagem que nos pareceu bastante instigante, no sentido de oferecer algumas reflexões importantes.
“Em todo caso, o desenvolvimento das qualidades formais do direito exibe traços estranhamente contraditórios. O direito, rigorosamente formalista e limitado ao que é manifesto, na medida em que o exige a segurança das relações comerciais, é não-formal no interesse da lealdade comercial, na medida em que é condicionado pela interpretação lógica do sentido da vontade das partes ou dos bons costumes comerciais. (....) Além disso, é forçado a tomar um rumo antiformal por todos aqueles poderes que exigem da prática jurídica algo diverso de um meio da luta de interesses pacífica”.
A passagem expressa, na nossa interpretação, a forma como o direito decorre de certas exigências da realidade, seja por um lado, no sentido de formalização para viabilizar segurança nas trocas econômicas, seja no sentido de flexibilização para viabilizar justiça material ou aquilo que Webber chama de “mínimo ético”. Por suposto, a contradição aqui, expressa no direito, decorre de contradições inscritas na realidade. A antinomia entre direito e economia, particularmente, nos parece ser uma fonte de preocupação de José Eduardo Faria em sua análise do direito e economia da realidade brasileira. Finalmente, a oposição pode assumir diferentes sentidos a partir das distintas filiações teórico-metodológicas daqueles que se desafiam pensar sobre o problema do direito na modernidade, seu desenvolvimento histórico e suas relações com economia, política e sociedade.

Algumas problematizações

Textos bons nem sempre trazem respostas satisfatórias, mas criam condições para a formulação de boas perguntas. Nesse sentido, as passagens que estudamos de Economia e Sociedade pareceram-nos excelentes: Weber é um ideólogo e um quadro da classe burguesa européia, seu pensamento, na nossa opinião, vai estar sempre de alguma forma relacionado às exigências políticas da burguesia enquanto classe dominante do capitalismo. Ainda sendo autor cujas referencias e autores expressem políticas com as quais não temos acordo – desde que o desafio weberiano é da gestão eficaz do capitalismo ao invés de sua superação, vamos trazer algumas perguntas decorrentes de sua leitura.

1- Qual é o sentido da idéia de especialização do direito?
2- Em que medida a especialização dialoga na atualidade com certa tendência mais geral do conhecimento surgir como algo fragmentado, de maneira a sinalizar o acerto das previsões do Weber para além mesmo do próprio direito?
3- Com relação ao formalismo, qual é a sua relação com o desenvolvimento histórico, particularmente no que se refere aos ciclos de expansão e crise do capitalismo? Daí as relações entre revolução francesa e a exegese napoleônica ou reestruturação produtiva e demanda por maiores flexibilizações das leis – reforma do direito do trabalho, seguridade social, etc.?
4- O que está por trás das tensões entre os leigos e os especialistas do direito? Será possível que estes dois campos de alguma forma coincidam algum dia?

domingo, 13 de março de 2011

"O Quinze" - Rachel de Queiroz

Resenha Livro #19 – “O Quinze” – Rachel de Queiroz Ed. Livraria José Olympio



Sobre a obra

Chegou até nossas mãos uma edição bastante gasta do livro “O Quinze” : trata-se do 1º romance da escritora cearense Rachel de Queiroz. A obra foi escrita em 1930 – a primeira edição foi bancada pela própria autora, então com 20 poucos anos, tendo sido impressa no “Estabelecimento Gráfico Urânia” de Fortaleza.

A história sobre dramas pessoas e relações afetivas de personagens que passam pela experiência de grande seca no nordeste repercutiu logo após seu lançamento. A nossa edição data de 1966 e corresponde já à 7ª publicação da obra. O fato importante aqui é que, ao contrário de escritores como Machado de Assis que possuem uma evolução ou desenvolvimento própria e particular, Rachel, já no seu primeiro livro, lança as bases de seu estilo literário. O Quinze marcaria de certa forma toda a produção subseqüente da escritora, na sua primeira obra já se demarcam suas preocupações com o universo psicológico daqueles que são afetados pela dura situação social da seca no campo e da falta de trabalho na cidade. Diferente, portanto, de Machado de Assis, que nos primeiros romances encontra-se mais influenciado pelo romantismo e que, apenas com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, lançaria uma nova proposta de arte que caracteriza sua obra: crítica de costumes e tiradas filosóficas correspondentes ao universo cultural da classe dominante brasileira do séc. XIX.

Voltando à Rachel de Queiroz e “O Quinze”. O romance não tem um protagonista, um personagem particular sobre o qual uma história é contada. O texto inova ao contar de maneira dinâmica a história de vida de distintos personagens de diferentes classes sociais cujas vidas vão se aproximando e se afastando de acordo com uma circunstância comum: todos os personagens vivem momento em que uma grande seca assola o nordeste e as graves condições sociais dos camponeses e pequenos proprietários de terra de uma forma geral passa a ser o tema da história. Algo particular no romance “O Quinze” (e o que, na nossa opinião, faz dele um romance bastante memorável) é a capacidade da autora relatar as emoções humanas e, particularmente, ações de solidariedade envolvendo personagens que vivenciam dramas comuns. Conceição, jovem professora com gosto pela leitura, envolve-se num grupo voluntário que presta assistência aos retirantes da seca. O vaqueiro Chico Bento, que foge da seca junto a sua família numa jornada a pé por vastos quilômetros debaixo de sol quente, compartilha o pouco de comida que tem com um grupo de desconhecidos. Os desconhecidos, camponeses e imigrantes como Chico Bento, passam fome e se preparam para comer a carne podre de cavalo doente e agonizante.

Comentários Políticos

A capacidade de Rachel de Queiroz dar um caráter humanizante aos personagens que eventualmente poderiam ser brutalizados pelas péssimas condições sociais tem a ver com uma percepção mais qualificada acerca das classes não possuidoras. Os camponeses, os trabalhadores livres pobres e os pequenos proprietários são, em “O Quinze”, dotados de capacidade de compreender as coisas, visualizar eventualmente contradições políticas que repercutem em suas más condições de vida.

Não encontramos certa percepção estereotipada da pobreza como vemos no romance naturalista “O Cortiço” de Aluízio de Azevedo. Os modernistas da 2ª Geração, preocupados igualmente em analisar a situação social, conseguem ir mais além e tratar dos sentimentos humanos e da complexidade do homem excluído socialmente. Graciliano Ramos foi muito capaz, nesse sentido. Em “O Quinze”, várias passagens revelam a forma como os humildes tem algum potencial de serem protagonistas políticos. Um exemplo deste último caso é do próprio vaqueiro Chico Bento, homem extremamente simples e sem educação formal, que se revolta quando tenta obter passagens doadas pelo governo para os retirantes dirigirem-se à capital em busca de auxílio. As passagens que deveriam ser doadas acabam sendo vendidas a certo redistribuidor oportunista. Bento revolta-se e sua revolta traduz-se em embriaguez e resignação. Igualmente, os demais personagens vivem o grave problema da seca e tocam suas vidas, procuram o amor, o trabalho e formas de obter felicidade. Isso gera no leitor empatia, a sensação de projetar-se no outro. Para os socialistas, a empatia com o povo é condição para ajudar torná-lo protagonista da história. Fazer com que a revolta não vire consentimento, mas revolução.