“O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski
Resenha Livro - “O Eterno Marido”
– Fiódor Dostoiévski – Editora 34 (Tradução Boris Schnaiderman)
“O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski
Resenha Livro - “O Eterno Marido”
– Fiódor Dostoiévski – Editora 34 (Tradução Boris Schnaiderman)
“A Metamorfose” – Franz Kafka
Franz Kafka faleceu na data de 03
de junho de 1924, quando tinha quarenta anos de idade.
Sua morte foi particularmente
dolorosa. Sete anos antes do óbito, foi diagnosticado com tuberculose, numa
época em que ainda não havia tratamento para a doença. A infecção se estendeu à
laringe, impossibilitando-o de se alimentar, também numa época em que não
existia nutrição parenteral. Por não haver meios de alimentá-lo, sua vida foi
lentamente se extinguindo até morrer de fome. Foi desmilinguindo aos poucos,
tal qual o protagonista Gregor Samsa, de “A Metamorfose” (1912).
Ao tempo do falecimento, Kafka
era um escritor desconhecido. Seus contos, até então, só tinham sido publicados
em algumas revistas literárias, para um público bastante restrito. Hoje é
considerado um dos mais importantes escritores do século XX, com uma vasta
crítica em torno da sua obra, através de estudos de intelectuais do porte de Albert
Camus, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Walter Benjain e Theodor W. Adorno. Tornou-se
tão importante que o seu nome se converteu num adjetivo. Hoje quando se diz que
certa situação é “kafkaniana”, estamos querendo falar de algo que é estranho,
labiríntico, ininteligível e surreal.
E isto só se tornou possível
graças ao seu amigo e testamenteiro Max Brod que publicou os seus textos entre
1925 e 1935.
O mais interessante é que esse
colega, com quem Kafka manteve amizade desde a Faculdade de Direito de Praga,
descumpriu a ordem de lançar toda a sua obra no fogo. Felizmente, Max Brod
ignorou o pedido do amigo e reuniu os escritos e anotações de Kafka para lançá-los,
ainda que de forma incompleta e fragmentada.
De fato, Franz Kafka não chegou a
terminar nenhum romance. Livros conhecidos como “O Processo” e “O Castelo” são,
na verdade, obras inacabadas. A maior parte foram os contos. O mais conhecido
deles, certamente, foi “A Metamorfose”, escrito em 1912 e publicado em 1915 numa
revista literária alemã.
Nascido em Praga, à época parte do
Império Austro Húngaro, Franz Kafka adveio de uma família judaica de classe
média. Seu pai foi um negociante, um homem descrito como egoísta, forte e
arrogante, e a sua figura intimidadora se projeta em contos como “A Metamorfose”
e particularmente em “O Veredicto”. Um aspecto comum, nesses dois casos, é a
figura paterna que desperta o medo, o ódio e a culpa. Trata-se de um sentimento
de hostilidade que remete à tragédia de Édipo. Tanto em “A Metamorfose”, quanto
em “O Veredito”, o conflito se resolve pelo sacrifício do filho através da
morte como um meio de aliviamento da culpa. Gregor Samsa, tornado um inseto
repugnante em “A Metamorfose”, desaparece como se desistisse de viver, enquanto
o protagonista de “O Veredicto” resolve o complexo edipiano, após uma briga com
o pai que não concorda com o casamento do filho, através do suicídio.
O que se percebe, no caso da
literatura de Franz Kafka, é um forte conteúdo autobiográfico.
A percepção depreciativa de si
mesmo, ao que consta, era algo presente no escritor, que alimentava a crença que
as pessoas em geral lhe devotavam repulsa física e moral.
Não é uma rejeição por algo que
foi feito de errado mas por aquilo que o sujeito é, sem a existência do dolo ou
da culpa. Essa realidade incontornável da rejeição é elevada até o ponto mais
dramático na figura de Gregor Samsa, quando num certo dia, depois de acordar de
sonos intranquilos, viu-se transformado num inseto repulsivo.
“Certa manhã, ao despertar de
sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num
inseto monstruoso. Estava sobre suas costas duras como couraça e, quando
levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em
segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas
se mantinha com dificuldades. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em
comparação com o volume de resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus
olhos. ‘O que terá acontecido comigo’? Não era um sonho.”.
Assim começa o conto.
O protagonista é um caixeiro
viajante de uma firma de tecidos. Vive num apartamento simples com o pai, a mãe
e a irmã mais nova, que são por ele sustentados, desde quando a firma comercial
do chefe de família entrou em falência.
Após a metamorfose, aquele grupo
familiar, até então numa situação cômoda de ser sustentada por Gregor, rejeita
o filho e basicamente o mantém no quarto, longe dos olhos do mundo, como se
fosse motivo de vergonha. Até então, Gregor nunca havia faltado ao trabalho,
nem mesmo por conta de uma doença. No dia fatídico, sua primeira preocupação é
a explicação que daria por estar atrasado no serviço. Um supervisor do escritório
em que trabalha comparece na residência para averiguar a razão do seu atraso e
sai de lá repugnado.
Samsa, antes e depois da sua transformação,
aparenta ter uma obediência incondicional à família, ao pai e ao chefe da
firma. Sua vida, até o dia em que se transformou num inseto, é orientada pelo
cumprimento incondicional de um dever: trabalhar e sustentar a família.
Sonhava, ainda, em matricular sua irmã adolescente num conservatório para
estudar violino. Mas o dever não parece estar relacionado a uma relação de
afeto e amor no seio familiar. Parece antes uma sujeição passiva da realidade, não
muito diferente da alienação a que o trabalhador está sujeito na sociedade
capitalista.
Depois de se transformar num
inseto monstruoso, a sua preocupação segue sendo a família e o trabalho, mas
agora se manifestando na forma de culpa. Na medida em que a sua figura causa
vergonha e nojo aos familiares, opta por permanecer escondido dentro do quarto,
de baixo de um canapé, sem permitir ser visto. De lá, apenas escuta as conversas da sala, feitas
em voz baixa, na qual se evidencia progressivamente o abandono e a desumanização
de Gregor. Não se sabe o que dizem, mas se presume que fazem planos para se
livrar da melhor forma possível daquele problema.
A morte física de Gregor é apenas
o coroamento final de sua morte moral, esta última ocorrendo de forma paulatina.
Ao final da história, quando uma faxineira da casa o encontra morto, a novidade
dá ensejo ao renascimento da família. Depois da morte de Gregor, os pais e a
irmã saem daquela posição passiva para ter alguma iniciativa diante da vida. O
pai parece querer retomar o trabalho produtivo e a irmã mais nova é encaminhada
a um casamento com olhos para um futuro mais feliz. No mesmo dia da morte de
Samsa, aliviados, os familiares saem a um passeio e fazem planos para o amanhã.
É tempo da primavera, que expressa de uma mesma forma, o renascer, mas da
natureza.
O mais famoso conto de Franz Kafka agrega o realismo
e o fantástico. O absurdo emerge subitamente da realidade banal e se impõe como
a nova normalidade. A história, também, parece seguir o mesmo itinerário dos nossos sonhos, que frequentemente descrevem detalhes
realistas precisos da nossa vida convivendo com coisas absurdas. A transformação
do homem num inseto, que representa o sobrenatural e o fantástico, exsurge da
banalidade do cotidiano familiar e da rotina do trabalho. Tal qual nos sonhos, em
que vemos também detalhes da realidade interagindo com o absurdo.
E, ao fim, o desaparecimento de Gregor,
além do despertar da família, e o desabrochar da primavera, é o coroamento da realidade
definitivamente se impondo à fantasia. O livro começa quando Samsa acorda para um
mundo fantástico e termia com a sua morte, que representa o despertar da
realidade.
Bibliografia:
MERÇON, Francisco Elias Simão. “Uma Leitura Analítica da
Novela A Metamorfose de Franz Kafka”. Dissertação de Mestrado. FFLCH/USP.
A Metamorfose – Franz Kafka
O Veredito – Franz Kafka
“A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga
Resenha
Livro - “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga – Editora Três
O
realismo fantástico ou mágico foi uma forma com que se qualificou uma série de
obras literárias latino-americanas produzidas entre as décadas de 1960 e 1970.
Diante
do impacto dos golpes militares que instituíram regimes de exceção em
praticamente todos os países da América Latina, criou-se um estilo de narrativa
em que o absurdo emerge da realidade cotidiana e banaliza-se na percepção dos
personagens.
Os
elementos mágicos e fantásticos são concebidos como parte de uma nova “normalidade”,
e assim também são percebidas pelos personagens. Há uma convergência entre
aquilo que é comum e banal com aquilo que é sobrenatural. A conjuntura política
daquele período, marcado por regimes de exceção que se eternizaram por anos a
fio, se comunica com essa proposta de criação de uma expressão literária na
qual a fantasia e o sobrenatural exsurgem da realidade, para elas próprias tornarem-se
um novo estado de normalidade, apenas contestada por alguns espíritos isolados,
dotados de alguma rebeldia.
As
ditaduras militares que apareceram como um regime de exceção provisório para
contornar o risco da revolução impõem um novo estado de normalidade, em que o
que era absurdo deixa de ser percebido como tal.
O
romance “A Hora dos Ruminantes” (1966) do escritor goiano José J. Veiga é talvez a versão mais bem
acabada do realismo fantástico na literatura brasileira.
Escrito
dois anos após o golpe de 1964, o romance trata de um pequeno vilarejo fictício
chamado Manarairema, onde uma população de simples camponeses e artesãos é
surpreendida pelo aparecimento de um povo estrangeiro, que desde o horizonte,
num certo dia, surge e constitui um acampamento. Aqueles estranhos despertam
num primeiro momento a curiosidade do povo de Manarairema,
isolados que sempre estiveram de qualquer novidade vida de fora:
“No
dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um
grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina,
de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam, chegavam à janela para olhar o
tempo antes de lavar o rosto e davam com a cena nova. Uns chamavam outros,
mostravam, indagavam, ninguém sabia. Em todas as casas era gente se vestindo às
pressas, embaraçando a mão em mangas de paletó, saindo sem tomar café, pisando
em cachorros lerdos, cachorros ganindo, gente dando peitada em gente,
derrubando chapéu, a algazarra, a correria. Todos deviam ter visto ao mesmo tempo
a parte alta do largo, as janelas dos sobrados, os barrancos estavam tomados de
gente olhando, apontando, discutindo”.
Os
forasteiros não têm nome e não têm rosto. Um ou outro cruza com os habitantes
de Manarairema pelas estradas e não cumprimentam, passam-se por ofensivos e
grosseiros. Contudo, aquelas pessoas tão estranhas, chamados pelo povo de “homens
da tapera”, vão misteriosamente se impondo e ganhando uma preponderância moral sobre
o povo do vilarejo.
Num
primeiro momento, os homens da tapera contratam os serviços de Germiniano, um
preto que aluga carroça de burro para o transporte de mercadorias. Não foi bem
uma contratação, mas uma intimação para obrigá-lo a transportar areia, sem que
o leitor saiba com clareza quais os mecanismos com que constrangem, compelem e
ameaçam o trabalhador a prestar os serviços.
Germiniano
num primeiro momento recusa o trabalho com indignação, pela forma com que é
abordado e por desconhecer a natureza daqueles homens. Depois de ser convocado
a ir pessoalmente ao acampamento, transforma-se completamente, assume estar
vivendo um novo estado de coisas, executa as ordens dos homens como se fosse
uma sentença inapelável de um juiz, e o seu medo vai se disseminando aos demais
cidadãos de Manarairema. Faz um eterno transporte de areias, sem coragem de
explicar aos demais o porquê de sua capitulação. Segue um eterno ir e vir,
transportando a areia, tal qual o mito de Sisifo da mitologia grega, que conta
a história de um homem que foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma
montanha para sempre, repetindo o processo quando a pedra caísse.
E
assim, sucessivamente, os homens da tapera vão convocando, sem possibilidade de
recursos, um ou outro habitante para lhe prestar serviços.
Constituem
um novo regime de medo e terror: aqueles que se recusam a comparecer aos
chamados são alertados às graves consequências da sua rebeldia. As ameaças não
são ditas de forma expressa por aqueles estrangeiros (eles quase não se
manifestam na história), mas são repercutidas pelos cidadãos que voltam
transtornados do acampamento vizinho. A coação é velada e não se sabe bem quais
seriam as consequências da transgressão da nova ordem; há, por outro lado, uma
convicção crescente no coração do povo do dever de respeitar e atender todos os
chamados dos homens da tapera. Os forasteiros se projetam quase como uma força divina,
capaz de aplicar os mais cruéis castigos às ovelhas que se desviassem da trilha
por eles traçadas ao rebanho.
A
invasão dos homens da tapera é seguida de outros eventos fantásticos.
Há
uma segunda invasão de cachorros, que tomam as ruas e casas de Manarairema sem
que os habitantes tenham força moral e iniciativa para rechaçá-los. Aceitam-nos
entrando nas suas casas e fazendo sujeira, como se fosse uma mera fatalidade da
natureza. Segue-se depois uma segunda invasão de bois, esta ainda mais catastrófica,
com os animais tomando todo o espaço da cidade, entupindo as ruas de esterco,
tornando o ar podre e obrigando os moradores a queimar fumo e casca de laranja
para aturar o odor.
O
elemento fantástico, na história, emerge gradualmente da realidade banal e
comezinha de Manarairema. Ao longo da história, a fantasia mais se avolumando,
até resvalar o absurdo. De uma invasão de forasteiros, à invasão de cachorros e
por fim à invasão de bois.
Por
fim, num certo dia, os bois, os
cachorros e os homens da tapera regressam de onde vieram e a pacata cidade
retorna à normalidade. O livro termina com a imagem do tempo, que se
interrompeu durante o período da fantasia, quando se impôs a ditadura dos
homens da tapera, para retornar ao seu trabalho de cronometrar a vida. E assim
termina o livro:
“O
relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo desregulado. Já
estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas,
as boas, as más, como deve ser”.
Sobre
o Autor
José
Jacinto Veiga nasceu em 02 de fevereiro de 1915 numa cidade do interior de
Goiás chamada “Corumbá de Goiás”. A sua infância, naquele vilarejo,
provavelmente serviu de referência para construir Manarairema, que é um lugar
fictício onde se passa não só “A Hora dos Ruminantes” (1966) mas também é o
cenário do livro “Os Cavalinhos de Platiplanto” (1959).
Iniciou-se
na literatura relativamente tarde, aos 45 anos de idade. Formado em Direito
pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, acabou abraçando o jornalismo, tendo
colaborado na imprensa carioca e na BBC Londres. Faleceu em 1999, alguns anos
depois de receber o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras,
como forma de reconhecimento final do conjunto de sua obra literária.
A Poesia de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)
Navio que partes para longe,
Por que é que, ao contrário
dos outros,
Não fico, depois de desapareceres,
com saudades de ti?
Porque quanto te não vejo,
deixaste de existir.
E se tem saudades do que não
existe,
Sente-se em relação a cousa
nenhuma;
Não é do navio, é de nós,
que sentimos saudades.
Não
seria exagero dizer que Fernando Pessoa foi o maior poeta em língua portuguesa
do século XX. O seu trabalho pode ser alçado ao mesmo patamar daquele que foi a
mais importante figura da literatura lusófona de todos os tempos: Luís Vaz de
Camões.
No
caso de Pessoa, trata-se de um caso único da história da literatura universal;
dele originou-se a criação de uma nova forma de expressão poética através da Heteronímia
(héteros = diferente; + ónoma = nome). Foi através dos heterônimos – Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos – que deu vazão à sua imaginação e à versatilidade
de sua personalidade, para criar o grosso de sua produção literária.
Heterônimos
não se confundem com os pseudônimos.
Não
há em Fernando Pessoa a pretensão de esconder o seu nome verdadeiro e dar
autoria dos seus textos a um pseudônimo, como ocorre com certa frequência, pelas
mais diversas razões, a maior parte delas sem uma implicação direta com a obra
produzida.
O
heterônimo, ao contrário do pseudônimo, é um personagem, criado pelo poeta, que
cria uma obra própria. Cada heterônimo tem um nome próprio, uma biografia
própria e, sobretudo, um estilo próprio. Não é apenas um nome fictício para esconder a
face do poeta. Trata-se da expressão multifacetada de um artista que almeja
exprimir suas ideias em diferentes formas de acordo com a percepção de mundo de
cada personagem por ele criado.
Ricardo
Reis é um médico erudito que vive no Brasil. Latinista por educação própria,
seus versos têm um estilo neoclássico, formal e erudito.
Álvaro
de Campos, ao seu passo, é, nas palavras de Pessoa, a sua versão mais histérica.
Foi um engenheiro naval, cuja educação formal se deu de forma precária num
Liceu. O seu estilo é mais experimental, com algumas variações de acordo com a
trajetória de vida do personagem. No começo, influenciado pelo modernismo e
futurismo. E ao final, recaindo no pessimismo.
Alberto
Caeiro, ao que consta, foi considerado o mestre e mais importante poeta criado
por Fernando Pessoa. Foi, também, a principal inspiração do heterônimo Ricardo
Reis que, no seu prefácio do livro de Caeiro, assim descreve o poeta camponês:
“A
obra de Caeiro representa a reconstrução integral de paganismo, na sua essência
absoluta, tal como nem os gregos nem os
romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra,
porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram
vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou
a razão. (...) Ignorante de vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio
nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo,
como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o
desenvolvimento lógico das civilizações.”.
O
estilo do poeta, ao contrário de Reis e Campos, é simples, sem a erudição de um
e o experimentalismo modernista de outro.
Não
teve nenhuma educação, exceto a instrução primária. Viveu a sua curta vida de
20 e poucos anos toda ela no campo.
E
é da relação imediata do homem com a natureza que emerge a poesia de Caeiro. Quando
se fala imediata, quer-se dizer que a proposta de Caeiro é a do rompimento com
qualquer tipo de mediação, através da linguagem, de conceitos filosóficos e de
pressupostos ideológicos, entre o poeta e aquilo que descreve.
O
horizonte do poeta é aquilo que ele vê. Há sempre, em absolutamente todos os
poemas, a primazia do sentir sobre o pensar:
“Todas
as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca
fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda
a sabedoria a respeito das cousas
Nunca
foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas.
Se
a ciência quer ser verdadeira,
Que
ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho
os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem
uma realidade tão real que até as minhas costas sentem.
Não
preciso de raciocínio onde tenho espáduas”.
Para
Caeiro, não há um sentido oculto por detrás das coisas. Ridiculariza os poetas
e filósofos que através do pensamento procuram uma significação subjacente a
todas as coisas.
Pensar
é estar doente dos olhos, pensar é não compreender. O poeta contenta-se a
sentir, até porque, “há metafísica bastante em não pensar em nada”, nome
de um dos poemas de “O Guardador de Rebanhos”:
O
que penso eu do Mundo?
Sei
lá o que penso do Mundo!
Se
eu adoecesse pensaria nisso.
Que
ideia tenho eu das coisas?
Que
opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que
tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E
sobre a criação do Mundo?
Não
sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E
não pensar. É correr as cortinas
Da
minha janela (mas ela não tem cortinas).
O
mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O
único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem
está ao sol e fecha os olhos,
Começa
a não saber o que é o Sol
E
a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas
abre os olhos e vê o Sol,
E
já não pode pensar em nada,
Porque
a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De
todos os filósofos e de todos os poetas.
Dentro
desta proposta, é possível ler os poemas de Caeiro imaginado que as palavras
enunciadas pelo poeta tenham saído da boca da própria Natureza. É como se as
árvores, as águas dos rios e as pedras estivessem revelando ao mundo a
impertinência e despropósito da busca pela atribuição de sentidos às coisas. Se
há algum sentido, ele não decorre do pensamento mas da percepção objetiva e
direta das coisas, em torno do que se vê, do que se toca e do que se escuta.
Ao
ponto do poeta, em mais de uma ocasião, dizer que aquilo que deixa de ver, para
ele, deixa de existir.
Em
certas passagens Caeiro reconhece-se incidentalmente como materialista e ateu. Ricardo
Dias, no seu prefácio, qualifica seu mestre como pagão. Mas sempre há a
ressalva, na poesia de Caeiro, que toda forma de nomenclatura para atribuir
sentido às coisas é algo despropositado, quando a missão do poeta é a de
descobrir o mundo “sem pensar nele”.
No
seu conceito de universo não há cabimento de interpretações. “O único sentido
íntimo das cousas é elas não terem sentido íntimo nenhum.”, afirma em um dos seus poemas. Num determinado momento diz não acreditar em
Deus pelo fato de não poder vê-lo. Para,
na sequência, no verso subsequente, assumir a possibilidade de Deus ser uma
forma diferente de dizer o que é aquilo que vê e que foi por ele criado,
fazendo-o neste caso, o mais fervoroso crente. Com a ressalva de que, se Deus
são as árvores, o sol e as pedras, melhor chamá-los de árvores, sol e pedras e
não de Deus.
Ao
ler a poesia de Alberto Caeiro, há a sensação de estarmos em contato com um
homem do campo plenamente aclimatado à natureza ao ponto de sugerir ao leitor
se tratar de um de alguém já no limiar da vida, se preparando para a morte – o
problema de Deus e da finitude da vida são reiteradamente sugeridos, o que não
poderia ser diferente, de acordo com a filosofia do poeta.
Curiosamente,
Caeiro morreu jovem. Faleceu aos 26 anos de idade, solteiro, vivendo na casa de
uma tia velha, com poucos recursos financeiros.
Tornou-se
hoje o maior poeta da Natureza. Não por cantá-la vendo nela belezas e ideias
ocultas. Mas por ser o seu porta-voz, podendo-se dizer que nessa poesia, quem
fala é o sol, as águas dos rios e dos mares, os ventos, as pedras e as árvores.
Bibliografia:
“Sobre
Fernando Pessoa” – Jane Tutikian
“Caiero
Triunfal” – Richard Zenich
“Guardador
de Rebanhos” | “O Pastor Amoroso” | “Poemas Inconjuntos” – Fernando Pessoa
(Org. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith).
OS BANDEIRANTES NA OBRA DE PAULO SETÚBAL
Resenha Livro – “Os Irmãos Leme”-
Paulo Setúbal – Ed. Iba Mendes
Paulo de Oliveira Leite Setúbal
(1893/1937) foi advogado, escritor e jornalista. A despeito de ser pouco
conhecido hoje em dia, ao seu tempo, nas primeiras décadas do século passado, chegou
a ser o escritor mais lido do Brasil.
O sucesso de público dos seus livros diz
respeito aos seus “romances históricos” pelos quais o Autor contou a história
de nosso país romanceando o passado, tornando a História, uma disciplina das
ciências humana, numa expressão da cultura popular. Tornou, neste sentido, muito
mais acessível ao povo o conhecimento de nossa história.
Dentre os seus livros populares,
pode-se citar “Marquesa de Santos” (1925) e “O Príncipe Nassau” (1926). Dedicou
especial atenção em seu trabalho à história de São Paulo da época colonial.
Seus romances sobre o ciclo das bandeiras como o “Ouro de Cuiabá” (1933) e “O
Sonho das Esmeraldas” (1935) podem ser relacionados com um esforço geral de
valorização da atividade dos paulistas travada no bojo da (derrotada) Revolução
Constitucionalista de 1932.
Em “Os Irmãos Leme” (1932) vemos, por
outro lado, uma pintura muito pouco lisonjeira do bandeirantismo.
Trata-se de um romance histórico que
conta a história dos irmãos Pedro e Lourenço Leme, sertanistas e bandoleiros oriundos
do interior paulista, cuja atuação se deu em torno da busca pelos diamantes, do
assassinato e da corrupção das autoridades régias, durante as primeiras décadas
do século XVII.
O livro é uma adaptação em romance da
História de São Paulo certificada através de fontes primárias (cartas,
correspondências das autoridades régias, atas e regulamentos da capitania) e
dos trabalhos historiográficos de Washington Luís (mau ex-presidente do Brasil
e excelente historiador) e principalmente Pedro Taques.
Os irmãos Leme são oriundos de Itu e
filhos de Pedro Leme, um valente sertanista que ao seu tempo travou lutas de
conquista e manutenção do território da Corte portuguesa; expulsou espanhóis das
terras onde hoje se constituiu o Brasil.
“Ora, João Leme e Lourenço Leme haviam herdado, com sangue, a valentia chucra
do pai. Eram dois caboclos desabusados. Desabusados e selvagens. Duas onças.
Mas a bravura deles não era a nobre, a refulgente bravura dos heróis. Não. "Degenerou
o merecimento destes Lemes em extorsões e violências", diz com amargura o
linhagista e parente. Sim, que insolentes sertanejos eram aqueles dois irmãos! Que
horrendas coisas viviam eles a praticar pelas redondezas de Itú! Desde mocinhos
ganharam fama de gente perigosa. Ficaram homens. A fama deles não mudou. Um
dia, aventureiros e destemerosos, partiram ambos para as Gerais à cata de ouro.
Voltaram com a fama ainda mais negra. Contavam-se, com os cabelos em pé, as
proezas que haviam cometido nas Gerais. É verdade que lá tiveram a boa sorte de
catar bastante ouro. Enriqueceram. Ricos, já poderosos, com grande séqüito de
apaniguados, tornaram eles de novo a Itú. Aí viviam, ao tempo da festa do
Penteado, aturdindo a vila com os desregramentos das suas vidas soltas. As
gentes da terra fugiam deles como ia peste. Eles eram o terror do povoado.”.
Após assassinaram um potentado local
de Itu, além de desonrarem suas filhas, os Lemes são perseguidos pelas
autoridades régias, levando-os a se dirigir às minas de Cuiabá em busca do
ouro. No trajeto, no meio do mato cerrado, aderem ao bando escravos fugidos, ladrões,
homicidas, mulheres desonradas. E índias, que eram as prediletas fontes de
perversão sexual dos irmãos Leme.
Em Cuiabá, iniciam um levante que destrona
o tenente mor Pascoal Moreira e proclama Fernão Dias (cunhado dos Lemes) como
novo regente (1719). Tornam-se ricos através dos métodos da violência, da extorsão,
do suborno e da corrupção das autoridades régias. Apesar de serem brutos, não
menos selvagens que os bugres que os acompanham nas bandeiras, alçam-se aos
mais altos cargos de poder do Brasil colonial. Retornam a São Paulo e são
recepcionados pessoalmente pelo governador da província, que lhe concedem
cargos de confiança do Rei de Portugal.
O ouro, ao fim e ao cabo, é elemento
de corrupção e de luxúria. Aventureiros lançam-se pelos sertões em busca do
enriquecimento rápido, em contraponto ao trabalho produtivo baseado na
exploração da terra e na indústria, o que terá repercussão na fisionomia social
e cultural do Brasil. Os irmãos Leme usam o ouro para corromper as autoridades,
granjear postos de poder e ascender socialmente, até haver uma traição
palaciana que os levaria à prisão e à morte.
O PAPEL DOS BANDEIRANTES
Uma discussão frequente entre os historiadores
é o do papel do indivíduo na História.
Até que ponto a evolução histórica
está condicionada à vontade individual de determinadas lideranças e até onde
esse desenvolvimento diz respeito a determinadas condições materiais de
natureza objetiva? Até que ponto a vontade dos indivíduos alçados ao poder e a
sua visão social de mundo efetivamente impactam nas sucessivas etapas da
história de um determinado povo?
Obviamente, a resposta em torno dos
questionamentos vai depender dos pressupostos teóricos e metodológicos
utilizados por cada historiador.
No âmbito do materialismo histórico, ficou
conhecida uma passagem do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” de Karl
Marx onde se propõe uma resposta à polêmica. Ao tratar do papel do sobrinho de Napoleão
e do movimento político geral em torno do golpe de estado de 1851 e a
instituição do II Império, Marx afirma:
“Os homens fazem sua própria história mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”.
A história exige da ação humana
consciente uma força para a sua transformação. Contudo, o balanço em torno do
papel de determinada liderança política diz menos respeito ao conjunto de
valores e ideologia dos indivíduos e mais ao resultado prático de sua intervenção
à luz de uma dinâmica de natureza objetiva, envolvendo a luta de classes, o
nível de desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produção
correspondente.
Esta longa introdução serve-nos de
ponto de partida para se pensar o problema do bandeirantismo paulista de acordo
com o romance histórico “Os irmãos Leme” (1932) de Paulo Setúbal (1893/1937).
Ao se julgar a trajetória dos
sertanistas João e Lourenço Leme à luz do romance de Paulo Setúbal, a conclusão
inevitável é a de que a atividade dos bandeirantes se limitou à violência
indiscriminada contra a população, ao assassinato de potentados, à corrupção
das autoridades, ao contrabando e falsificação do ouro. Numa percepção puramente subjetivista da
história, teria sido um elemento de desagregação social.
Por outro lado, inobstante o elemento
ideológico expresso na vontade dos indivíduos, é certo que o resultado prático
do bandeirantismo não foi desagregador mas, pelo contrário, constituiu-se como
um dos mais importantes passos na formação do estado nacional brasileiro. Foram,
afinal, as bandeiras, seja quando engajadas na captura e escravização dos
índios seja na atividade de mineração, foram a principal fonte de expansão do
território e de criação de nossa atual fisionomia geográfica, cultural e
linguística.
As entradas expandiram as fronteiras
da colônia, desafiando os espanhóis, ao ampliar em muito os limites
territoriais traçados pelo Tratado de Tordesilhas. Basta ver que já no século XVIII,
pelo Tratado de Madrid, houve um exponencial aumento do território onde hoje se
situa o Brasil com base no princípio do uti possessis, pelo qual o território pertence
àqueles que o ocupam, no caso, justamente os sertanista oriundos de São Paulo.
Essas entradas podem ser entendidas
como uma prolongação da atividade desempenhada pelo espírito aventureiro que
lançou os portugueses à sua expansão ultramarina e que acarretou a descoberta
da América. Enquanto as grandes navegações redimensionaram as fronteiras do
mundo, as entradas e bandeiras criariam as condições para a interiorização da
colonização e dariam a fisionomia territorial do que hoje se conhece como
Brasil.
Num romance histórico, os
bandeirantes surgem-nos como elementos desagregadores e retrógrados. Numa
análise histórica de longa duração, cumpriram um papel decisivo e heroico na
história do Brasil.
A Literatura de Bruno Seabra
Resenha Livro – “Paulo” – Bruno Seabra
– Ed. Iba Mendes
São poucas as informações disponíveis
na internet acerca do escritor, jornalista e poeta paraense Bruno Henrique de
Almeida Seabra (1837/1876).
Apelidado por um crítico como o João
do Rio do Pará[1], consta
que a última (e possivelmente única) publicação mais ampla do escritor foi a
novela “Paulo” (1861), lançada pela Editora Três dentro da “Coleção: Obras Imortais da Nossa Literatura”
no remoto ano de 1972.
Nosso escritor nasceu em 06 de
outubro de 1837 a bordo de um barco, em águas paraenses (Tatuoca). Estudou as
primeiras letras e o curso preparatório em Belém. Depois, matriculou-se na
escola militar no Rio de Janeiro, então capital do Império. Lá publicou textos
literários no Jornal Marmota Fluminense, dirigido pelo editor Paula Brito.
Publicou folhetins, crônicas e poesias que aguardam há mais de um século a sua
devida publicação.
Todo esse desconhecimento pode dizer
respeito à ignorância que grassa o público leitor em torno de obras dos nossos
escritores do norte, cujos trabalhos estão fora do eixo tradicional da produção
artística do país: sul, sudeste e alguns estados do Nordeste. Para pegarmos um
exemplo de outro paraense, poderíamos citar Inglês de Sousa (1853/1918), o
verdadeiro pioneiro do naturalismo literário em terras brasileiras.
(Costuma-se identificar o início do
naturalismo no Brasil com os romances de Aluísio de Azevedo. Ocorre que que sua
primeira obra naturalista que foi “O Mulato” data de 1881, enquanto a produção
literária de Inglês de Souza data de 1875! E certamente os “Contos Amazônicos”
de Souza superam em qualidade literária outros autores bem mais conhecidos do
nosso naturalismo, como é o caso do pífio “A Carne” de Júlio Ribeiro).
Voltando à Bruno Seabra, sua obra consiste
basicamente nos livros “As cinzas de um livro” (1859), “Flores e frutas”
(1862), “O alforje da boa razão” (1870), e “Paulo” (1861).
Parece ter sido antes um poeta do que
um romancista: na sua novela “Paulo”, há um estilo não afetado, natural, mas
bastante poético. Passagens da história são literalmente intercaladas de cogitações
do narrador que poderiam ser tidas como estrofes de um poema.
Trata-se, em todo o caso, de uma
novela trágica, que remete de certa forma ao romantismo já em sua fase
intermediária, byronista, que teve como principal expoente outro poeta, o
paulista Álvares de Azevedo.
Há no livro de Bruno Seabra os
elementos principais daquilo que didaticamente se chama de “segunda fase do
romantismo” (1853/1869): o pessimismo, a tendência da fuga da realidade, em
particular através do suicídio e da loucura, o saudosismo, a idealização do
amor e da morte.
Há, porém, um traço da novela que antecipa
as próximas etapas do desenvolvimento da literatura nacional: da história,
constam exclusivamente personagens dos extratos mais baixos da sociedade, ao
passo que o foco em torno das classes populares seria efetivamente uma
conquista que se iniciaria bem depois, a partir de alguns romances naturalistas
e que se consagraria, de fato, no modernismo em sua fase regionalista, nos
conhecidos livros de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, etc.
Paulo é filho de uma roceira rústica
e de um pintor empobrecido. Aprende o ofício das artes com o pai, mas ao invés de artista,
é inicialmente encaminhado à Recife para se formar em Direito. Por falta de
recursos financeiros, é obrigado à retornar à sua terra natal.
De vota ao lar, apaixona-se por
Emília, a filha de um médico e comendador empobrecido por conta de uma
frustrada carreira política. Por não dispor de recursos financeiros, resolve
fazer uma viagem até o Rio de Janeiro, onde poderia granjear recursos para o
casamento através da venda dos seus quadros. Logo vê o seu objetivo frustrado
pelo desinteresse e indiferença do mecenato. Para viver do seu trabalho, o artista
teve ser apaniguado por alguém ou, alternativamente, corromper a sua arte e
produzir aquilo que público quer ouvir. É o se escuta de um editor para quem o
poeta pede proteção:
“Ainda mais, o povo, o senhor sabe que nós, os negociantes, só com o povo
nos havemos; o povo quer rir-se, dar gargalhadas em horas de descanso,
distrair-se, enfim, alegremente, e portanto nunca compra livros tristes quando
quer ler. O meu amigo parece ter o seu jeito para a coisa, é só mudar de rumo,
isto é, em vez de escrever queixas amorosas, escreva aventuras jocosas que
façam rir até doer o umbigo, sirva-lhe de modelo este soneto de Bocage”.
Frustrado em seu intento, Paulo decide
retornar ao norte. Pouco antes da sua partida, recebe uma carta do Comendador,
desculpando-se e desfazendo o trato do casamento. Apareceu um pretendente de
Emília com melhores condições financeiras, obrigando o zeloso pai a romper com
o trato.
Posteriormente, Paulo descobre que o
rompimento do pacto foi feito à revelia e contragosto de Emília que, no dia do
casamento, vem a falecer pelo forte abalo sentimental de se ver definitivamente
privada do seu verdadeiro amor. A desilusão amorosa se desdobra nos demais
personagens da trama na loucura, no suicídio e na morte, ao estilo
ultrarromântico da geração byoronista.
E por último, um último traço
característico do livro é uma forte correlação entre a prosa e o verso. Em certas passagens da novela, o romance é
literalmente intercalado com a poesia.
O sentimento da saudade de Paulo
quando parte de barco para a capital em busca do dinheiro para o casamento é literalmente
descrita através de um poema com a forma de prosa:
“Virgem pálida, de olhos elanguescidos, que reclinas as faces sobre a mão
tão alva como as penas das garças, e te deixas, à tardinha, ir adormecendo à
janela, enquanto os zéfiros vão sorvendo o perfume das tranças de teus cabelos:
virgem pálida, que doer é esse que te alenta o coração?
Saudade!
Ancião, que paras à beira do caminho, e arrimando-te ao bastão levantas
os olhos ao velho cedro que te fica em frente, e como que o saudando murmuras —
bem me lembro! bem me lembro! Que mágico doer é esse e te traspassa até o fundo
do coração?
Saudade!
Marinheiro, que ao suspender do ferro, vais soltando esses pesados gemidos,
que são como os estribilhos de cantigas tristes as desoras da noite ouvidos;
marinheiro, que ao rigor das tempestades e calmarias embruteceste a voz como o
semblante, que tristeza é essa que te alinda a fronte? Que voz é essa de
entristecer os corações?
Saudade!
Saudade, página de reminiscências íntimas, que a seu tempo se inscreve no
coração humano, fadou-te Deus esse mágico doer... Saudade e só saudade era o
que restava e o do que se ia alentar o coração do jovem artista.”
A profunda emotividade do livro, sem
um exagero romântico que torne a história pouco convincente, revela um artista
muito acima da média. Trata-se de uma novela lírica, que se reveste da musicalidade
e até metrificação, ao ponto de se poder dizer que é tanto prosa como poesia.
[1] J.
Eustáquio de Azevedo. “Antologia Amazônica: poetas paraenses”. 1904. Pesquisa e
adaptações ortográficas: Iba Mendes (2019)