segunda-feira, 2 de setembro de 2024

“Alves & Cia” – Eça de Queirós

 “Alves & Cia” – Eça de Queirós



“Alves & Cia” – Eça de Queirós

Resenha Livro - “Alves & Cia” – Eça de Queirós – Ed. Iba Mendes – Livro # 1

“Este foi um artista que completou dignamente o ciclo de sua rotação. Passou pelas revoltas acesas do demolidor, feriu os melindres da pátria, menoscabou lhe as crenças, achincalhou lhe as tradições, numa esfuziante saraivada de sarcasmo e desdém, e quando sentiu a vida declinar-lhe, interrompeu a obra admirável de panfletário e construiu essa torre de bronze, onde encastelou a velha alma lusa, tal qual ela se nos apresenta, com as suas grandezas e imperfeições.”. (Frota Pessoa – “Crítica e Polêmica” – 1902).

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol. É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.

Não seria exagero dizer que foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.

Foi precursor do realismo literário em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica, a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor. A caricatura, ademais, sempre vai realçar algumas caraterísticas mais peculiares do personagem de forma intencionalmente exagerada.

O marco inicial do realismo em Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.

Trata-se de uma batalha intelectual em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica que ensejasse transformações sociais. Esses jovens ficaram depois conhecidos como “Geração de 70”.

Fala-se em batalha intelectual por se tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário: tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição à modernização/liberalismo.

Ainda sob o impacto da Revolução Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores, particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em “Primo Basílio”, passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas em “O Crime do Padre Amaro.”.

A arte realista é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje visto.

De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e mais de um século depois da França.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc.

Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam para nada que não seja o seu interesse imediato.

A orientação dada às primeiras obras de Eça de Queiroz é a da crítica demolidora da sociedade arcaica de Portugal, naquilo que poderíamos chamar de uma “primeira fase” de sua evolução literária, que vai de 1870 e 1880.

Num segundo momento, o tom sarcástico com que trata sua pátria é substituído por uma maior condescendência e até mesmo ternura em relação a Portugal.

Essa reconciliação pode ser relacionada à maturidade do escritor, que abandona o tom combativo e militante de um jovem escritor da chamada “geração de 1970”, esta última forjado nos embates com a tradição romântica dentro da polêmica “Questão Coimbrã”.

Outra explicação para a reconciliação com o seu país poderia estar relacionada com as saudades da pátria de alguém que passou os últimos anos de sua vida exercendo atividade diplomática em países distantes de sua terra natal.  

A novela Alves & Cia (1925) num primeiro momento sugere pertencer à fase realista do escritor, na sua descrição burlesca de um caso de triângulo amoroso, resolvido da forma menos heroica possível. Contudo, uma leitura talvez mais detida da obra sugira se tratar de um texto de transição, se considerando o final peculiar do tal triângulo amoroso.

ALVES & CIA

“Alves & Cia” (1925) corresponde a um texto inacabado de Eça de Queiroz. Foi descoberto por seu filho José Maria de Eça de Queiroz e publicado postumamente em 1925 em conjunto com uma série de inéditos encontrados no espólio do escritor.

Consta que os originais foram encontrados numa “mala de ferro, onde dormiam há mais de um quarto de século”. De acordo como o filho do escritor, “eram cento e quinze folhas soltas, sem título nem menção de data, cobertas de uma letra sempre vertiginosa e, como sempre, sem um retoque nem uma correção”. A originalidade do texto, tanto no que diz respeito ao enredo quanto na forma como que expressa em tintas rápidas os tipos sociais de Lisboa, denotam o brilhantismo do escritor. Afinal, estamos tratando de um “rascunho de livro”, de natureza crua, sem as revisões que antecedem a publicação do original.

O livro trata de um caso de infidelidade conjugal, tal qual o “Primo Basílio” e de um amor ilícito resolvido de acordo com aquilo que era conveniente à luz do juízo inapelável da opinião, na forma do “Crime do Padre Amaro”.

Alves é sócio de uma casa comercial em Lisboa. Da empresa participa Machado, um amigo de longa data, que “tinha vinte e seis ano; e era bonito moço, com o seu bogodito louro, o cabelo anelado, e o ar elegante. As mulheres gostavam dele”.  

No dia do aniversário de quatro anos de casado, Alves decide sair mais cedo do trabalho e surpreender sua mulher com um colar de brilhantes.

Uma onda de felicidade o invadia naquele dia 09 de Julho enquanto se dirigia até sua residência, satisfeito com o presente e com o aniversário de casamento com Ludovina, até quando surpreende a mulher e o sócio juntos no sofá de casa, abraçados, em flagrante delito de traição.

A novela segue então tendo como motivo a reação do capitalista diante da descoberta da traição envolvendo sua mulher e seu sócio.

Seu orgulho ferido leva-o a expulsar Ludovina para a casa do pai. Seu sogro comparece na residência de Alves e arranja um bom acordo. Para não haver escândalo público pela saída repentina de Lulu do lar doméstico, ajustam uma viagem de recreação, quitada com o dinheiro de Alves, sem prejuízo de uma pensão mensal à mulher infiel. O arranjo pecuniário parece agradar o sogro de Alves e sua filha, num movimento em que se beneficiam de sua própria torpeza. Alves paga a viagem e a pensão, passando-se por ridículo.

Outro problema a ser resolvido seria como lidar com Machado, após a sua facada nas costas de Alves. Num primeiro momento, movido pelas emoções, o protagonista deseja resolver a situação num duelo. Tratava-se de uma forma comum de resolução de conflitos por desagravo à honra de um marido ofendido.

E, aqui, novamente, vemos a ironia incendiária de Eça de Queiroz.

Dentro da premissa realista, que se opõe a qualquer tipo de idealização, o tal duelo apenas desmoraliza Alves perante o leitor.

Isso porque nada há de heroico na sua resolução de se bater com Machado. Ele é a todo momento hesitante e recalcitrante em vingar-se da traição. Vê-se dividido por um lado pelo pueril medo da morte, e um medo ainda maior de ser riscado pela espada num duelo e passar meses de cama; e pelo outro pela necessidade de satisfação de um orgulho ferido pela traição.

Não há nem remotamente qualquer traço de heroísmo na conduta dos personagens.

Ao final, Alves e Machado convocam amigos de confiança de lado a lado para deliberarem de forma irrecorrível sobre a forma como deveria ser tratado o caso.

Esses amigos, chamados “testemunhas”, decidem passar panos quentes ao conflito, sugerindo que Alves “viu mais do que deveria” e que o duelo colocaria em risco as atividades comerciais da firma.

Importa, neste passo, relatar a reação pouco gloriosa (e hilária) de Alves ao descobrir que o duelo não ocorria: “uma sensação de paz e de serenidade invadia-o silenciosamente. Aquelas grandes afirmações do Nunes, um rapaz de tanta honra, quase o convenciam de que realmente não houvera senão um galanteio”.   

O triângulo amoroso é resolvido dentro do pragmatismo com que o burguês resolve os seus problemas comerciais.

Dentro do jogo de interesses pessoais, convinha ao Alves manter a sociedade com Machado, pelo bem da empresa e para não dar causa à maledicência, após a saída de Ludovina de sua casa. A situação do protagonista, abandonado no lar, sem o amparo da mulher na rotina diária, também prevaleceu sobre o seu orgulho de marido traído. As criadas passaram a desleixar da casa, deixar o ambiente sujo e fazer refeições intragáveis desde quando não estavam mais sendo supervisionadas pela mulher da casa. É mais cômodo, por todos estes motivos, esquecer a desavença.

A crítica burlesca com que os capitalistas resolvem as suas querelas de honra denota aquela primeira fase da obra de Eça de Queiroz, associada à critica demolidora da sociedade portuguesa.

Contudo, talvez estejamos de fato já diante de um texto de transição, pelo que toca o fim da novela.

Ao contrário de “O Crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio” o amor ilícito não dá causa a uma tragédia que reforça a conduta imoral dos personagens. Ao fim e ao cabo, passados alguns anos desde o fatídico dia da descoberta da traição, os sócios se reconciliam, ao menos sugerindo alguma condescendência pelo escritor em relação aos envolvidos no triângulo amoroso. 


terça-feira, 20 de agosto de 2024

“A Carne” – Júlio Ribeiro

 “A Carne” – Júlio Ribeiro




Resenha Livro - “A Carne” – Júlio Ribeiro – Ed. Iba Mendes

“Nós, os escritores naturalistas, submetemos cada fato à observação e à experiência; enquanto que os escritores idealistas admitem influências misteriosas que escapam à análise e permanecem por isso no desconhecido, fora das leis da natureza” (E. Zola – “O Romance Experimental”).

“A Carne” (1988) pode ser considerada a mais representativa obra naturalista da literatura brasileira.

Nem tanto pelos seus méritos literários, mas pelo fato de seu autor buscar levar até às últimas consequências o programa enunciado pelo fundador dessa corrente literária, Émile Zola (1840/1902), para quem a obra foi dedicada no prefácio.

O livro, ao seu tempo, constituiu um sucesso de público e um fracasso perante a crítica especializada.

Houve diversas publicações subsequentes ao lançamento em 1888 e até uma adaptação no cinema no ano de 1970. Por outro lado, suscitou furor e indignação na crítica pelo forte conteúdo sexual do enredo.

Já ao tempo da publicação, despertou uma polêmica na imprensa entre Júlio Ribeiro e o padre José Joaquim de Sena Freitas. Num artigo irônico intitulado “A Carniça”, o padre expressa a sua irritação perante o sensualismo predominante do texto. A protagonista da história, chamada Helena, ou Lenita, desponta como uma intelectual altiva e com fortes pendores aos prazeres sexuais, ao ponto de poder classificá-la como ninfomaníaca, o que obviamente desafiava a moral da época.

O livro foi objeto da mesma indignação de outra obra naturalista da época, qual seja, “Bom-Crioulo” (1895) de Adolpho Caminha, que, pela primeira vez, aborda o tema do relacionamento homossexual, vivenciado na história de dois marinheiros.  

Contudo, a condenação de “A Carne” (1888), num primeiro momento de tom moralista, prossegue na crítica literária subsequente pelo entendimento de que o livro levou a intencionalidade da proposta naturalista a tal limite extremo para se tornar pouco convincente. Somam-se ao juízo negativo de “A Carne” (1988) desde o marxista Nelson Werneck Sodré, até Álvaro Lins, José Veríssimo e Lúcia Miguel-Pereira. As críticas se relacionam à ideia de que o naturalismo seria uma moda passageira e muito mal assimilada em território brasileiro. Para melhor compreendê-la, faz necessário tecer alguns comentários sobre o que foi o naturalismo literário e como ele foi assimilado no mais conhecido livro de Júlio Ribeiro.

O que foi o naturalismo?

O ponto de partida do naturalismo literário deu-se na França em meados do século XIX. Está inserido no contexto histórico de afirmação do liberalismo e do iluminismo desde a Revolução Francesa de 1789 e a 1ª e 2ª Revoluções Industriais. A reestruturação da sociedade pela superação do antigo regime e a ascensão da burguesia como classe social dominante foi acompanhada pela expansão das cidades e pelo desenvolvimento dos meios de produção.

As novas indústrias do aço, do petróleo e da eletricidade engendraram um otimismo em torno da investigação científica. O racionalismo do século XVIII que serviu de base intelectual ao iluminismo é levado até às últimas consequências através das novas teorias cientificistas do século subsequente: o darwinismo social e sua teoria da evolução das espécies; a teoria da hereditariedade de Mandel; o positivismo de Augusto Comte, que afirma que o mais elevado estágio de evolução da humanidade se dá em torno justamente da afirmação do método científico.

Na literatura, o naturalismo propõe um rompimento com a tradição romântica. Em certo sentido, pode ser considerado como uma radicalização do realismo literário, que já buscava traçar uma literatura baseada na objetividade e na superação do idealismo e subjetivismo românticos. A diferença é que a objetividade naturalista é alçada à condição de ciência. Nas palavras do pai fundador do naturalismo, “fica bem entendido que todas as vezes que uma verdade é fixada pelos cientistas, os escritores devem abandonar imediatamente sua hipótese para adotar essa verdade”. (“Romance Experimental”).

 

Ou seja, o escritor precisa considerar as leis e os preceitos científicos antes de elaborar o enredo, que deve se adequar aos ditames da ciência.  Neste passo, o sujeito não é protagonista de sua própria história mas um figurante e resultado das ações do meio social e das determinações de sua natureza.

A Carne

O enredo se passa no ano de 1887 numa fazendo do interior paulista. Com a morte do doutor Lopes Matoso, sua filha Helena, então uma jovem de 22 anos, resolve mudar-se para a casa de um amigo de família, o coronel Barbosa.

A protagonista Lenita, desde a infância, destacou-se por uma formação intelectual acima da média. “Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portuguesas, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto a havia de mais seleto na literatura do tempo”.

A formação intelectual incomum da jovem já constitui um elemento do naturalismo. O seu interesse pela ciência irá fazê-la se aproximar do filho do coronel, ele também um cientista, mas misantropo, com 40 anos de idade, casado com mulher que conheceu numa viagem na Europa.  Ambos irão travar uma amizade pelo afeto comum pela ciência, que oportunamente irá se desdobrar numa relação afetiva irregular, dada a vigência do casamento do filho do coronel.

O relacionamento entre Lenita e Manual Barbosa (esse é o nome do filho do coronel) é estimulado pelas circunstâncias do meio, ao melhor estilo naturalista e a sua ideia de determinismo. A luxúria da natureza estimula o pendor sexual da protagonista. O cheiro doce do açúcar na moagem de cana e a natureza exuberante da fazenda estimulam a protagonista a satisfazer os desejos da carne. A primavera é relacionada à sexualidade:

“No espelho calmo do lago refletia-se a vegetação luxuriante que o emoldurava (...) tudo isso se confundia em uma massa matizada, em uma orgia de verdura, em um deboche de cores que excedia, que fatigava a imaginação. (...) Um misto de perfume suavíssimo de cheiro áspero de raízes e de seiva, que relaxava os nervos, que adormecia o cérebro”.

Além da natureza, os estímulos sociais igualmente condicionam o comportamento de Lenita e o desenvolvimento de sua sexualidade. Desperta a sua atenção, em dado momento, um casal de escravos que se evade na mata para o sexo, o que ocorre em paralelo ao ato sexual presenciado pela protagonista envolvendo um boi e uma vaca. Num determinado momento, estimula o seu sadismo (de conteúdo sexual) ao presenciar o castigo de um escravo que tentara fugir da fazenda por meio de “açoites de bacalhau”, espécie de chicote feito de couro cru retorcido, que variavam em número, conforme a gravidade da falta cometida.

A luxúria de Lenita altera a ordem comum em que o macho persegue a fêmea; na história, é Lenita quem irá voluntariamente se entregar aos braços de Manuel Barbosa. Essa situação inusitada certamente despertou o furor negativo em torno do livro, inobstante uma leitura mais atual do romance autorize uma reflexão acerca da condição feminina e a sua evolução ao longo da história mais recente.

O término do enredo é trágico: Lenita descobre a traição de Manuel Barbosa ao tempo que constata estar gravida. Abandona a fazenda para se casar com um pretendente que havia rejeitado pouco tempo antes. É o meio que encontra para escapar da inapelável condenação social de uma mulher cuja gravidez se deu fora do casamento. Já Manual Barbosa, ao descobrir o abandono de Lenita, suicida-se com veneno. Sua morte, certamente a passagem mais interessante da obra, ocorre lentamente, com a consciência superveniente do arrependimento, quando, semi-morto, percebe o desespero de seus pais.

Os personagens são reféns de suas pulsações orgânicas. Não podem se furtar aos próprios instintos. Essa realidade, confrontada com as normas sociais, engendra a tragédia e sugere a interpretação de que o escritor, mesmo mantendo a equidistância do artista naturalista, não deixou de considerar negativa e trágica a subversão da moral pela carne.  

Não se trata portanto de uma literatura engajada em torno de mudanças sociais. Sua proposta, dentro da perspectiva naturalista, é a descrição objetiva dos fatos, tal qual a do cientista que observa fenômenos no laboratório.

Bibliografia:

DIOGO, Sarah Maria Forte. “De Parto Monstruoso a Sucesso de Público: análise da recepção crítica de A Carne de Júlio Ribeiro”. Universidade Federal de Uberlândia.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

“Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade

 "Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade



Resenha Livro - “Claro Enigma” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record

Quando Carlos Drummond de Andrade publicou “Claro Enigma” (1951) já havia percorrido uma longa trajetória como poeta.

Seu primeiro trabalho publicado, chamado “Alguma Poesia” (1930), foi lançado vinte anos antes; e, considerando-se que esse primeiro livro consistiu numa compilação de versos já publicados na imprensa, pode-se dizer que transcorreram quase três décadas de experiência e maturação até o livro que nos ocupamos de resenhar.

Poderíamos dizer que “Claro Enigma” (1951) é um livro de maturidade do poeta de Itabira.

Não no sentido de que as obras anteriores sejam reconhecidas como trabalhos de menor qualidade, livros de juventude, frutos de uma percepção ingênua da realidade. Mas por expressar uma ruptura com o experimentalismo típico do movimento modernista de suas primeiras obras e, especialmente, com o desencanto da política e do horizonte ideológico socialista, prenunciado na obra que o consagrou com o maior poeta brasileiro, “A Rosa do Povo” (1945).

Por marcar uma ruptura em relação às obras anteriores, faz-se necessário recapitular o itinerário do escritor para melhor caracterizar o “Claro Enigma”. (1951).

O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

Em “Alguma Poesia” (1930) vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em “Macunaíma” (1928) de Mário de Andrade, por sinal, amigo e incentivador de primeira hora do poeta mineiro.

Em “A Rosa do Povo” (1945) escrito apenas seis anos antes de “Claro Enigma” (1951), o horizonte modernista sofre a influência da conjuntura política do pós-guerra. A derrota do Nazi-fascismo e a democratização do país com o fim da Era Vargas criam as condições para um alinhamento de diversos intelectuais ao socialismo, o que significava, àquele momento, ao Partido Comunista Brasileiro.

Já na Constituinte de 1946, o PCB elegeu nada menos do que 14 deputados, um deles o escritor baiano Jorge Amado. Outro escritor modernista que aderiu ao partido, após algum tempo de prisão durante o estado novo, foi Graciliano Ramos. E o próprio Carlos Drummond de Andrade, ao tempo de “A Rosa do Povo”, também se aproximou do Partido Comunista. No mesmo ano de 1945, o poeta deixa a chefia de gabinete de Gustavo Campanema, interventor em MG, e, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como co-editor do diário comunista “Tribuna Popular”.

Não seria difícil de supor que a sensibilidade do poeta logo iria entrar em choque direto com o dogmatismo do PCB que, desde a sua fundação em 1922, atuou como uma sucursal do partido soviético presidido por Joseph Stálin.  

Em pouco tempo abandonou a “Tribuna Popular”. E, nas obras subsequentes ao “A Rosa do Povo” (1945), vai se notando um desencantamento que também refletia as circunstâncias histórias daquela conjuntura: aos poucos, o otimismo em torno da vitória da democracia do pós guerra vai sendo desconstituído pela Guerra Fria e o recrudescimento das hostilidades entre EUA e URSS.

Com a morte de Stálin, seu sucessor Nikita Kruschev, no XX Congresso do PC (1956), apresenta um relatório denunciando seu antecessor, o que levaria diversos grupos políticos a romperem com a orientação soviética. O desencanto de alguns, como Carlos Marighella, levaram à ruptura pela esquerda, com a defesa da revolução armada, sob o impacto e influência da guerrilha cubana. E, no caso de Drummond, a nova conjuntura o conduzirá a um novo estilo de poesia.

Nas obras anteriores, os poemas revelam o desejo de formular respostas, enquanto em “Claro Enigma” o que se busca é a formulação de perguntas. Nos seus poemas de antes imperava a liberdade formal e a oralidade. Já em “Claro Enigma” o autor retoma a preocupação com a metrificação do poema e elabora sonetos.

A nova orientação em torno de uma poesia mais formal se revela na dedicatória que o escritor faz a Américo Facó, um estudioso da língua portuguesa, para quem Drummond encaminhou os poemas para análise, antes da publicação.

E, no que toca aos propósitos da obra, ainda na introdução, o poeta cita uma frase de Paul Valéry que diz “os acontecimentos me aborrecem”.

A frase de abertura já denota uma mudança de orientação.

Em “A Rosa do Povo” e obras anteriores, a poesia gira em torno do imediato, faz descrições de acontecimentos que sugerem uma sucessão de imagens que remetem às cenas de cinema:

“Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu (“A Flor e a Náusea”)

 

Stop.

A vida parou

ou foi o automóvel? (“Cota zero”)

 

Em “Claro Enigma”, os acontecimentos são substituídos pela contemplação, sem a imediata preocupação (política) do agir:

“Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar

Nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,

E olho para os pés dos homens, e cismo.

Escultura de ar,  minhas mãos

Te modelam nua e abstrata

Para o homem que não serei.” (Contemplação no banco).

 

Nos poemas de maturidade há a aceitação dos limites da expressão poética por conta da não tangibilidade da realidade. Os versos fazem remissão ao sonho embaralhado com a realidade. Há a predominância da incredulidade, da melancolia e do niilismo.

A natureza metafísica da poesia se revela numa conversa do poeta com o fantasma no poema “Perguntas”:

“Numa incerta hora fria

Perguntei ao fantasma

Que força nos prendia,

Ele a mim, que presumo

Estar livre de tudo

Eu a ele, gasoso,

Todavia palpável

Na sombra que projeta

Sobre meu ser inteiro: (...)”.  

 

Não seria exato, contudo, dizer que a poesia de “Rosa do Povo” é engajada e politicamente comprometida e a poesia de “Claro Enigma” seria uma ruptura total com os escritos anteriores.  

A complexidade e as nuanças da poesia de Drummond não autorizam nem remotamente uma percepção assim tão esquemática. E o escritor, em todo o caso, jamais poderia ser considerado como um panfletário de esquerda.  Há ainda elementos de continuidade que informam todas as fases do escritor.

Em todo o trabalho do poeta mineiro verifica-se uma profunda e comovedora sensibilidade, seja ao formular perguntas filosóficas ou descrever acontecimentos. Essa sensibilidade possibilita criar um forte laço de intimidade com o leitor. As emoções do poeta são deflagradas pela experiência diante dos sentimentos do mundo, nome que dá título a uma das suas obras.  A ironia e o humor também perpassam as diversas fases do escritor. E, na construção da arte, a poesia, de fato, nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  Como diz um poema de seu primeiro livro:

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira. (“Poesia”).

sábado, 3 de agosto de 2024

“Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva

“Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva 



Resenha Livro - “Dona Guidinha do Poço” – Manuel de Oliveira Paiva – Ed. Iba Mendes

“Dona Guidinha do Poço é uma obra prima da arte regional. Sem as pretensões universalistas de muitos livros dos grandes centros, esse romance encanta pela maneira como focaliza os traços arcaicos do mundo interiorano. Manuel de Oliveira Paiva acreditava que retratar a própria terra basta para atribuir dignidade ao trabalho literário.”. (TEIXEIRA, Ivan. “A modernidade de Dona Guidinha”. Prefácio.).

Manuel de Oliveira Paiva é um exemplo de escritor que, pela morte precoce, não pôde dar vazão e desenvolver ao máximo o seu talento literário. Tratou-se de uma promissora carreira literária, interrompida antes do tempo pela morte por tuberculose, quando o escritor tinha trinta e um anos de idade.

Nessa curta carreira, lançou apenas dois livros.

O primeiro romance chama-se “A afilhada” (1889) e se passa no ambiente urbano de Fortaleza, cidade natal do escritor.  

 E “Dona Guidinha do Poço” (1890), a sua obra prima, que retrata um crime conjugal real, ocorrido no sertão do Ceará.

Escreveu ainda contos e crônicas jornalistas. Participou dos movimentos em prol da República e da abolição da escravatura. Desenvolveu uma literatura de tipo social e, na imprensa, defendia o naturalismo literário, então uma novidade, como a via que artistas como ele deviam trilhar.  

Manuel de Oliveira Paiva veio de família humilde. Seu pai era um artesão, responsável por projetar igreja e edifícios  na cidade de Fortaleza. Pertencia a um setor social remediado, uma nova classe média citadina, num momento em que ainda emergia a capital do Ceará. Alfabetizou-se num seminário religioso, onde ficou apenas por um ano. Consta ter sido expulso por se recusar a denunciar um colega infrator das regras do claustro.

Aos quinze anos, mudou-se para o Rio de Janeiro a fim de se matricular na Escola Militar. Isso foi no ano de 1877, poucos anos após o término da Guerra do Paraguai (1864/1870), momento em que as forças armadas se municiavam das ideias abolicionistas e republicanas que ensejariam as grandes transformações do país de 1888 e 1889.

A guerra fortaleceu o exército como instituição autônoma e independente, e marcou o início do fim da monarquia. A participação de negros egressos do cativeiro nas forças armadas tem relação direta com o sentimento abolicionista. O Brasil indenizou proprietários que libertaram escravos para fins de luta na guerra, com a condição de que os libertos se alistassem imediatamente. Em áreas próximas ao conflito, os escravos aproveitaram para escapar e alguns escravos fugitivos se ofereceram para o exército. Havia o fato de negros, pardos e brancos lutarem ombro a ombro contra o inimigo comum. Juntos, todos esses efeitos ajudaram a ruir a instituição da escravidão. É certo que o influxo destas novas ideias republicanas e abolicionistas na escola militar impressionou o jovem escritor, influenciando o seu trabalho como jornalista e escritor.  A sua origem social humilde também deve ser relacionada com o seu ponto de vista político e literário.  

O romance “Dona Guidinha” foi encontrado no espólio de Oliveira Paiva, após a sua morte, e foi publicado por amigos, de forma incompleta, na imprensa cearense em 1890. Passaram-se sessenta anos até o livro ser “descoberto” pela crítica literária Lúcia Miguel Pereira no ano de 1952. Foi pela primeira vez publicado de forma integral e desde então passou a pertencer ao rol das grandes obras literárias brasileiras.   

Ou seja, até meados do século passado, o nosso escritor era apenas conhecido em seu Estado natal, onde efetivamente ocupou uma posição de destaque em torno do “Clube Literário”, movimento intelectual por ele fundado. Também colaborou num jornal local chamado “O Libertador”, escrevendo contos e crônicas. Foi talvez o mais talentoso escritor de um pequeno grupo de pensadores e artistas daquela província distante do centro cultural do Império, com reduzido número de leitores, motivo pelo qual passou a maior parte do tempo apenas conhecido no Ceará.

O seu mais importante romance se baseia numa tragédia real envolvendo uma rica fazendeira de Quixeramobim, chamada Maria Francisca de Paula Lessa, cúmplice do assassino de seu marido.

Na história, a protagonista, Dona Guidinha, é uma matrona que preside os trabalhos de uma fazenda chamada Poço da Moita no sertão cearense. Foi a rica herdeira de um capitão mor, que lhe deixou como espólio, além das terras, muitas peças de ouro, prata e cobre.

Dona Guidinha se revela como uma sertaneja de gênio forte, ciosa e centralizadora do seu poder. Não teve filhos, nem foi namoradeira, quando jovem, denotando uma certa altivez masculina no espírito. É respeitada pelos escravos e agregados, além de ter influência política junto ao partido conservador. Casa-se com o major Joaquim Damião de Barros (Quimquim), um homem cujo gênio se opõe por completo ao da sua mulher. Por ser de origem pobre, dependia do nome e da riqueza da Dona Guidinha, se submetendo ao poder irresistível da sua mulher. Não tinha a força espiritual da mulher e hesita diante da matriarca do Poço da Moita.

   A situação familiar se altera após a chegada à Fazenda de Secundino, um sobrinho de Joaquim que fugira do Recife, por ter sido acusado como mandante de crime de homicídio. Acolhido no Poço da Moita, desperta a paixão de Dona Guidinha e com ela vive um romance ilícito.  O caso extraconjugal aos poucos vai despertando a atenção dos moradores, até ao ponto do escândalo.

O major desconfia do caso, após escutar rumores e insinuações de moradores. Chega a pensar em se matar, mas o seu espírito recalcitrante o impede de levar adiante a resolução extrema. Em diligência à capital, entra em contato com o o bispo, com a finalidade de validar o seu divórcio. Estamos em meados do século XIX, momento em que a separação conjugal era uma medida mais do que excepcional; em regra, a traição era resolvida com o assassinato da consorte, alternativa inalcançável ao espírito fraco de Quimquim.

A matriarca descobre os intentos do seu marido e, como vingança, contrata um matador, que sorrateiramente mata o major. A morte sub-reptícia, através de uma facada nas costas, remete à violência dos cangaceiros.

A tragédia se encerra com a prisão de Dona Guidinha e o colapso da fazenda do Poço da Moita.

O romance regionalista, ao tempo de “Dona Guidinha do Poço”, não era exatamente uma novidade. Dele já havia se ocupado José de Alencar, outro cearense, por exemplo. Contudo, é certo que o autor de Iracema retratou a realidade através dos livros que leu, ao passo que Oliveira Paiva retrata o sertão cearense de acordo com aquilo que viu, escutou e experimentou.  Neste passo, estaria menos próximo de Alencar e mais próximo de Franklin Távora, que polemizava com José Alencar justamente pela exigência de se conhecer e experimentar a vida que pretende retratar na literatura.

A arte de Manuel de Oliveira Paiva, neste sentido, é telúrica.

Sua descrição da terra tem um tom lírico, é uma poesia que vem da terra, e dessa forma, ele já prenuncia o modernismo regionalista, do qual foram expoentes Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e, particularmente, o mais telúrico deles: José Lins do Rego.

O seu sertão não é apenas um rol de descrições geográficas; é antes parte de uma paisagem que projeta o estado de espírito dos personagens. Aquele mundo de retirantes, escravos, fazendeiros, bispos e bacharéis se misturam com o cenário de aridez, as pastagens do gado, as pequenas vilas e cidades. Dentro da proposta naturalista, o sertão e o sertanejo foram um quadro único, são indivisíveis.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Obrigações Tributárias à Luz do Código Tributário Nacional

 Obrigações Tributárias à Luz do Código Tributário Nacional




 

A obrigação civil consiste num vínculo jurídico envolvendo um credor e um devedor e uma obrigação correlata de dar, de fazer, de não fazer ou de pagar. Está em oposição aos direitos reais, que, ao seu passo, consistem nas relações jurídicas entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis, tendo como fundamento principal o conceito de propriedade.

Os direitos obrigacionais veiculam necessariamente relações pessoais (entre credor e devedor), havendo uma relação de crédito e um dever correlato. O credor tem direito ao crédito e o devedor tem o dever de satisfazê-lo.

Já os direitos reais dizem respeito a um poder jurídico direto e imediato de uma pessoa sobre uma coisa, submetendo-se esse poder ao respeito obrigatório de todos (efeito erga omnes).

O exemplo mais lembrado dos direitos obrigacionais são os contratos. Já o direito real por excelência é a propriedade, que consiste na faculdade do seu titular de “usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”. (artigo 1.228 CC/02).

As obrigações tributárias, assim como as obrigações civis, igualmente instituem uma relação pessoal vinculando um credor e um devedor e uma prestação de dar, de fazer, de não fazer ou de pagar. Pode ser definida como uma relação jurídica pessoal que tem por objeto uma prestação e que nasce quando a situação prevista pela hipótese de incidência da norma tributária ocorre no mundo real.

O crédito tributário nada mais é do que a obrigação tornada líquida e certa, o que se dá através do lançamento tributário.

Assim, a obrigação de pagar o IPTU surge quando ocorre a situação prevista na regra-matriz: ser proprietário de bem imóvel urbano no dia 1º de Janeiro de cada exercício fiscal. O crédito tributário dá-se com o lançamento do tributo, quando a obrigação se torna líquida e certa, o que, via de regra, ocorre pela entrega do carnê ao contribuinte (Súmula 397 STJ).

As obrigações tributárias podem ser classificadas como obrigação principal e obrigação acessória.

A obrigação tributária principal será sempre uma obrigação de pagar, ao passo que a obrigação acessória será sempre uma obrigação de fazer ou de não fazer.

A definição de cada uma dessas espécies de obrigação tributária está prevista no artigo 113 do CTN:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interêsse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

A obrigação principal envolve, portanto, o pagamento do tributo ou o pagamento de uma multa pecuniária pelo descumprimento de uma obrigação acessória.

Já a obrigação assessória consiste numa conduta do contribuinte no interesse de facilitar a arrecadação e a fiscalização do pagamento pelo Ente Público.

A  emissão de documentos fiscais para que posteriormente seja realizada a apuração e o recolhimento de tributos pode ser mencionada como um exemplo de obrigação acessória. O seu descumprimento enseja uma sanção pecuniária que se converte então numa obrigação principal (§3º artigo 113 CTN).

Falamos que a obrigação tributária principal ocorre no momento da ocorrência do fato gerador.

O fato gerador descreve um determinado comportamento ou estado de coisas cuja realização faz nascer a relação jurídica de direito tributário.

O fato gerador do IPTU ocorre com o exercício da propriedade, domínio útil ou posse sobre o imóvel urbano contatada no dia 1º de janeiro de cada exercício financeiro. O fato gerador do ICMS pode ser descrito, de maneira geral, como o momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte. O fato gerador do ITCMD causa mortis, ocorre no momento da abertura da sucessão hereditária (legítima, testamentária ou provisória), ou seja, na data do óbito.

A noção de fato gerador auxilia a dimensionar o que é a obrigação tributária principal ou acessória.

O fato gerador da obrigação tributária principal é a situação definida em lei necessária e suficiente à sua ocorrência (artigo 114 CTN).

Já o fato gerador da obrigação tributária acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de um ato (obrigação de fazer ou não fazer) que não configura a obrigação principal (artigo 115 CTN).  

Paulo Marçaioli – OAB/SP 431.751 | Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco) | Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero | Especialista em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito.

Contatos: paulomarcaioli@gmail.com  

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Notas Sobre o Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784/99

 Notas Sobre o Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784/99




O processo é inerente a todas as áreas do Direito. 

Pode-se, neste sentido, falar em “processo legislativo”, “processo constitucional”, “processo do trabalho”, “processo penal”, “processo civil” e, finalmente, o “processo administrativo”, cuja principal fonte normativa consiste na Lei Federal nº 9.784/99.

E em que consiste o Direito Processual?

Trata-se de completo de normas jurídicas que disciplinam a constituição dos órgãos jurisdicionais e sua competência; regula ainda a relação jurídica processual, envolvendo Autor, Réu e Juiz, bem como a sucessão de posições jurídicas por eles assumidas (poderes, deveres, faculdades, direitos, ônus, etc).

Seu objetivo fundamental é a resolução de conflitos através de uma decisão, que poderá ou não resolver o mérito da lide. É um ramo do Direito Público e a edição de suas normas compete privativamente à União, na forma do artigo 22, inciso I, da CF/88.

O procedimento, ao seu passo, consiste na forma de exteriorização do processo.

Em outras palavras, é a forma pela qual os atos processuais são praticados. É a série coordenada de atos tendentes à produção de um efeito jurídico final, que, no caso do processo jurisdicional, é a decisão judicial e a sua eventual execução.

O processo administrativo consiste na expressão do processo no âmbito da administração pública.

Pode ser conceituado como uma relação jurídica marcada por uma série de atos administrativos concatenados, que observam uma ordem estabelecida em lei (ou seja, um procedimento) e, assim como o processo jurisdicional, também tem como escopo uma decisão, no caso uma decisão administrativa, que irá pacificar um conflito.

O processo administrativo federal está regulamentado pela Lei nº 9.784/99 que trata das “normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.” (artigo 1º).

Não se trata de uma Lei nacional, mas de uma lei federal. Ou seja, sua aplicação se aplica aos processos da Administração Federal (Poder Executivo) e aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa.

A Lei nº 9.784/99 não obriga os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, que devem editar as suas próprias regras de processo administrativo. Anote-se que a constituição estabelece a competência exclusiva da União para legislar sobre processo, ao passo que o ordenamento jurídico autoriza os demais entes administrativos a editarem leis sobre processo administrativo.

Em todo o caso, o Superior Tribunal de Justiça admite a aplicação subsidiária da Lei nº 9784/1999 aos Estados e Municípios quando inexistente norma legislativa própria das unidades subnacionais.

É o que dispõe a Súmula 633 do STJ:

"Súmula 633 STJ - A Lei nº 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria."

Dentre os princípios que regem o processo administrativo, podemos citar: (i) a informalidade e instrumentalidade das formas; (ii) a gratuidade; e a (iii) a busca pela verdade material. Dentre os princípios, também consta o dever de fundamentação das decisões, devendo-se ressalvar que o dever de motivação rege toda a atividade administrativa, e não só o processo administrativo.

Algumas diferentes entre o processo administrativo e o processo jurisdicional são dignas de nota.

Pelo princípio da inércia da jurisdição, o início do processo civil de natureza jurisdicional decorre de iniciativa da parte interessada. Não cabe ao Judiciário a iniciativa da ação (artigo 2º do Código de Processo Civil).

Já o processo administrativo, ao seu turno, pode ter início a requerimento do particular ou de ofício, ou seja, por iniciativa da própria administração pública (artigo 5º Lei nº 9.784/1999).

Enquanto a regra geral do processo jurisdicional é a da representação processual da parte por advogado devidamente habilitado pela OAB, no âmbito do processo administrativo, entende-se que a ausência de defesa técnica por advogado não gera nulidade do processo:

Súmula vinculante 5 – STF - A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

Por fim, outra diferença importante diz respeito à ideia de busca pela verdade real inerente ao processo administrativo que afasta algumas regras aplicáveis ao processo civil.

Não há revelia no processo administrativo.

Justamente em decorrência do princípio da verdade material, o desatendimento de uma intimação (ou que poderíamos dizer entre aspas “citação”) não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia ao direito pelo administrado faltante.

Ainda que seja desatendida a intimação, o interessado continuará tendo a garantia de ampla defesa no processo, podendo se manifestar livremente.

Paulo Marçaioli – OAB/SP 431.751 | Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco) | Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero | Especialista em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito.

Contatos: paulomarcaioli@gmail.com  

segunda-feira, 8 de julho de 2024

O Teatro Popular de Ariano Suassuna

 O Teatro Popular de Ariano Suassuna





SIMÃO PEDRO

Há um ócio criador;

Há outro ócio danado,

Há uma preguiça com asas,

Outra com chifres e rabo!

MIGUEL ARCANJO

Há uma preguiça de Deus,

E outra do Diabo!

MANUEL CARPINTEIRO

E então, a moral é essa,

Que mostremos à porfia!

SIMÃO PEDRO

Viva a preguiça de Deus

Que criou a harmonia,

Que criou o mundo e a vida,

Que criou tudo o que cria!

MANUEL CARPINTEIRO

Viva o ócio dos Poetas

Que tece a beleza e fia!

 

No próximo dia 23 de Julho vai completar dez anos da morte do romancista,  dramaturgo e artista plástico Ariano Vilar Suassuna (1927/2014). Morreu aos oitenta e sete anos de idade, pouco depois de concluir um romance ao qual havia se dedicado havia mais de vinte anos, chamado “O Romance de Dom Panteiro no Palco dos Pescadores”.  

Transitou pela literatura e pelas artes plásticas. Foi professor da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) onde lecionou diversas disciplinas ligadas à arte e cultura. Mas foi certamente no teatro, reproduzindo jogos de cena dos espetáculos populares nordestinos e temas da dramaturgia universal, que se tornou conhecido do público e consagrou-se como um dos principais artistas da história do teatro do Brasil.

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro.

O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular, ou mais especificamente a cultura nordestina, com a sua literatura de cordel, o seu teatro de mamelungos (aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos) e ilustrações de xilografia.

Os folhetos populares de literatura nordestina já congregavam em si diferentes expressões artísticas. Deles constam a poesia, o teatro e as imagens de xilografia que ilustram as suas capas. Também agregam dentro de si a música, já que encerram espetáculos populares, encenados ao ar livre, com acompanhamento musical - o musical dos cantos e músicas que acompanham a leitura ou a recitação do texto.

Também estavam relacionados à história oral e às primeiras formas de sedimentação e divulgação dessas histórias do povo, contadas pela primeira vez na forma impressa em pequenos folhetos, expostos para venda pendurados em cordas, barbantes ou “cordéis”, atraindo o nome “Literatura de cordel”.

A Farsa da Boa Preguiça

Quando perguntado qual era a sua peça de teatro favorita, Suassuna respondia sem pestanejar: “A Farsa da Boa Preguiça”. Trata—se de uma comédia encenada pela primeira vez em 1961, no Recife, quando o escritor já havia se consagrado nacionalmente com o seu “Auto da Compadecida” (1955). Ambas as peças retomam o tema do trovadorismo português representado pelo “Auto da Barca do Inferno” (1517) de Gil Vicente.

Nessas obras, as ações humanas são acompanhadas pelo escrutínio de Deus e do Diabo, e seu séquitos de anjos, que irão, ao final, dar à cada personagem o fim a que fizeram jus pelos seus atos em vida. O conhecido “Julgamento Final” que irá levar os bons ao céu e os maus ao inferno segue uma convenção que advém do teatro antigo conhecida como “licença” ou “moralidade”. Por essa convenção, no fim da história, o autor podia dar a sua opinião sobre o que acontecera no palco, o que poderíamos chamar de “lição da história” ou “moral da história”.

A “Farsa da Boa Preguiça” foi acusada ao seu tempo pelos intelectuais de esquerda como uma apologia reacionária à preguiça.

A peça data dos anos 1960, momento em que o pensamento de esquerda era majoritário nos meios intelectuais e artísticos do país. De acordo com esses intelectuais, o autor de peça estaria aconselhando o povo ao conformismo, à renúncia ao trabalho duro, e, supostamente, fazendo com isso o jogo daqueles que desejavam entravar a luta de emancipação dos trabalhadores e camponeses.

No prefácio da obra, o escritor desmonta esta interpretação artificial, típica da forma unilateral do militante ver a arte, seja na década de 1960, seja hoje através do identitarismo.

Diz Suassuna:

“Na verdade, o elogio que eu queria fazer na peça era, em primeiro lugar, o do ócio criador do Poeta. (...) Em segundo lugar, o que eu desejava ressaltar, na peça, era a diferença da visão inicial que nós, povos morenos e magros, temos do Mundo e da vida, em face da tal “cosmovisão” dos povos nórdicos. Não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’. Sempre olhei, meio desconfiado, para essa galegada que, de vez em quando, nos aparece por aqui, como quem não quer nada, que entra sem cerimônia e vai mandando para fora amostras de nossa terras, de nossas pedras, do subsolo, da água e até do ar, sem que os generosos Brasileiros estranhem nada. (...) Ora, na minha arbitrária e talvez torcida opinião de brasileiro que nunca saiu de sua terra, esses Povos nórdicos são raça com mais vocação para burro de carga que conheço. Nós, Povos castanhos do mundo, sabemos, ao contrário, que o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criador, livre e gratuito”.

Esta oposição entre a visão social de mundo dos “povos mestiços” e dos “povos nórdicos” é representada na peça pelo poeta popular Joaquim Simão e o ricaço Aderaldo. O primeiro de coração bom, mas que rejeita sempre que pode o trabalho duro para se dedicar ao descanso e ao fazer poesia, ao ócio criador. E o segundo, dedicado ao trabalho predatório de explorar os outros e acumular riquezas.

Dentro deste embate, participam como coadjuvantes anjos e demônios que irão tentar os personagens para o bem e para o mal.

Joaquim Simão, predisposto ao bem, acaba sendo seduzido por Clarabela, esposa infiel de Aderaldo; comete uma falta, mas se arrepende sinceramente depois. Já Aderaldo e sua mulher Clarabela, ambos convertidos ao ateísmo materialista, são ao final da peça confrontados pelos demônios que irão cobrar o preço por suas más condutas em vida.

Através do “trabalho”, acumularam o dinheiro. Desprezaram os pobres e miseráveis que lhes pediram esmola ou um pedaço de pão.

E ao final, são desafiados pelos anjos do mau: irão para o inferno se dentro de sete horas não encontrarem alguém que rezasse por suas almas o “pai nosso” e o “ave maria”.

Neste momento, todo o dinheiro que conquistaram não lhes serviu para a salvação da alma. Apenas a caridade do bom Simão e sua mulher Neivinha, através de um ato puro de amor, sem busca de benefícios, salvam os ricos. Ambos conseguem fazer a  reza dentro do tempo estipulado pelo Diabo, e garantem que os vilões passem do inferno ao purgatório.

Talvez poderíamos aqui incluir um novo ponto de diferenciação entre nós, “povos mestiços” e “povos nórdicos”, agora, no que diz respeito ao problema de Deus. Na tradição estrangeira, de tipo puritana, prevalece o castigo sem a possibilidade do perdão divino. E, na nossa tradição, que é o que vemos na peça, prevalece a justiça não dissociada do amor e da infinita misericórdia de Deus.