quinta-feira, 1 de novembro de 2018

“Que Fazer? Problemas Candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin


“Que Fazer? Problemas Candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin



Resenha Livro – Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin. Ed. Expressão Popular

“Por isso, nossa atenção deve estar voltada principalmente para elevar os operários ao nível dos revolucionários e não para descermos, nós próprios, ao nível da “massa operária” como desejam os economistas, ao nível do operário médio como quer o Svoboda (que, sob este aspecto, eleva ao quadrado a “pedagogia” economista). Longe de mim negar a necessidade de uma literatura popular para os operários, e de uma outra especialmente popular (mas não uma literatura de má qualidade) para os operários atrasados. Mas o que me indigna é essa recorrente mistura da pedagogia com as questões políticas, com as questões de organização. Porque, afinal, os Senhores que se arvoram defensores do “operário médico” insultam, antes de tudo, esse operário, sempre que manifestam o desejo de inclinarem na sua direção , em vez de lhe falarem de política operária ou de organização operária.”  

Se há um denominador comum que informa toda obra de Lênin é a pertinência entre as ideias socialistas e a ciência do marxismo e sua aplicação à certa realidade concreta. As ideias de Lênin são em geral partidárias no sentido de que aqueles que reivindicam de forma coerente o leninismo inevitavelmente estará tomando partido acerca de questões concretas, como um certo modelo de organização partidária, uma certa percepção do capitalismo monopolista consubstanciado no imperialismo e uma prática política que, baseada no enfrentamento à ordem constituída, envolve o realismo político, as palavras mais duras ditas de forma franca por alguém que não se deixa iludir pelo palavrório acerca de “democracia”, “liberdade” ou “pacifismo” com as quais oportunistas e reformistas se opõe ao socialismo revolucionário.O partidarismo no bom sentido de Lênin explica também o silêncio ensurdecedor de professores universitários de Ciência Política ou Teoria Geral do estado sobre a contribuição leninista, com raríssimas exceções.

Florestan Fernandes já dissera que “Lênin converte o marxismo em processo revolucionário real”. Assim em trabalhos de alcance mais teórico como “Estado e Revolução” (1917) ou “Imperialismo Fase Superior do Capitalismo” (1917), as ideias sobre a transição socialista e o papel do estado, bem como a nova etapa histórica imperialista do capitalismo[1], estas questões serão sempre acompanhadas de uma crítica muitas vezes em forma de polêmica que busca intervir objetivamente no movimento revolucionário russo.

Por outro lado, textos mais explicitamente polêmicos de Lênin como “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (1920) e este “Que Fazer” (1901) envolvem ideias cujo alcance vai muito além do contexto revolucionário das primeiras décadas do séc. XX. Muito do que Lênin propõe acerca dos papeis da organização certamente dirá respeito às condições específicas da Rússia sob o czarismo em que a polícia política exigia uma organização do tipo clandestina de revolucionários profissionais que se credenciassem a atuar com agitadores, propagandistas e tribunos populares. Por outro lado, o tema da consciência operária, a função do partido no sentido de elevar a consciência sindical para a  consciência política revolucionária, a importância da imprensa operária, a superação dos métodos artesanais de organização e atuação ainda são candentes: considerando que o inimigo vem ganhando posições especialmente desde o fim da URSS, bem como se identificando o recrudescimento do autoritarismo e da extrema direita na Europa e na América, é não só possível como em alguns lugares provável ou uma realidade a exigência de organizações políticas adequadas a contextos de perseguição política.

Contexto  

“Que Fazer?” foi livro escrito por Lênin entre 1901-1902. O texto diz respeito à polêmica no seio do Partido Social Democrata Russo acerca de temas como a consciência operária, a organização e as funções do partido, os limites do espontaneísmo, da luta sindical e da imprensa operária reduzida aos problemas locais. O movimento revolucionário russo de então se dividia entre diversas frações – Lênin é chefe diretor da revista Iskra, fundada em 1900, e defende as posições deste grupo.

O contexto que vai das últimas décadas do XIX (19870) e início do XX (1905-7) é rico de mobilizações nas fábricas mas também de um despreparo da social democracia no sentido de fazer evoluir movimentos espontâneos para a mobilização contra o inimigo direto da luta política operária: o governo russo tzarista. O chamado ensaio geral da Revolução Russa correspondente ao período revolucionário que se abre de 1905-07 na verdade foi precedido de outras mobilizações sindicais importantes. Em 1896 houve uma massiva greve em Petersburgo. A primeira organização marxista da Rússia “Emancipação do Trabalho” foi fundada antes, em 1883, com a participação de Plakhanov. O partido operário social democrata russo  foi fundado em 1889. Em 1901, uma nova onda revolucionária perpassa pela Rússia. Ou seja, movimentos espontâneos e organizações diferentes, como os marxistas legais, os sindicalistas- economistas, os populistas adeptos de táticas terroristas e os socialistas revolucionários naquele momento se encontravam abrigados no partido social democrata que posteriormente irá se dividir entre bolcheviques e mencheviques.

Teoria

Para Lênin a organização política tem como função essencial de mediação entre a teoria e a prática revolucionárias. Antes de Lênin, Engels já discutia acerca de três frentes de luta: a econômica, a política e a teórica. Enquanto setores vinculados ao jornal Robotcheie Dielo defendem um modelo de partido que reduza seu alcance e horizonte à luta meramente sindical, Lênin coloca que o trade unismo não só limita os horizontes da luta como pode efetivamente servir de obstáculo no movimento pelo socialismo. O que Lênin coloca como verdade que a primeiro momento pode chocar é que se o movimento russo for o melhor do melhor dos sindicalismos, tanto pior para o povo pois deste modo o czarismo jamais cairá – como demonstra a experiência trade-unionista e diversos exemplos na história, o governo faz concessões para ganhar credibilidade e destruir a ameaça real da elevação da consciência trade-unista no sentido do socialismo pelos trabalhadores e o povo[2].  Neste aspecto, a luta social democrática revolucionária é a única que pode levar de forma consequente e até o fim a luta sindical. O partido deve garantir a unidade ideológica entre os diversos movimentos dos trabalhadores, o que é imprescindível para uma luta geral pelo poder.

Outra questão que merece destaque e tem reiterações na história é a habilidade com que setores oportunistas se apoiam no atraso da consciência dos trabalhadores. Servem-se de críticas aos ideólogos do partido de vanguarda no sentido de que os mesmos seriam substitucionistas, avessos à “liberdade de crítica”, não democráticos, etc. Lênin demonstra como se tratam de críticas demagógicas que no fundo subestimam a capacidade dos próprios operários.

Na situação russa, e não há por que pensar que a atual “democracia” norte americana seja menos autoritária, era extremamente necessária a conformação de um grupo de revolucionários que atuasse na clandestinidade. Seu papel é o de elevar o nível de consciência, de iniciativa e de energia dos trabalhadores e cada quadro deve ser recrutado entre o que há de melhor nas fábricas, escolas e universidades, no campo e nas municipalidades. Enquanto a luta sindical se situa no âmbito de uma ou algumas fábricas, a intervenção dos revolucionários deve-se dar no seio de toda a sociedade russa denunciando e politizando as formas de descontentamento no trabalho, mas também nas cidades, nos estabelecimentos de ensino, nas greves e nas manifestações públicas. Os revolucionários profissionais devem garantir que os ataques da polícia política não impeçam uma solução de continuidade dos trabalhos que frequentemente são abandonados ou começados do zero com outra orientação política.

Em junho de 2013 um movimento acéfalo, inicialmente reformista, que lutava contra o aumento das passagens de ônibus sofreu dura repressão da polícia militar paulista implicando numa onda de mobilizações por todo o país, bem como numa série de greves de trabalhadores no segundo semestre daquele ano. Todavia, houve um momento em que se inverteu o impulso de junho de 2013: dos estudantes e black blocks aos provocadores ultra-direitistas insuflando manifestantes contra o PT, contra os partidos de esquerda e finalmente contra a esquerda em geral. Estamos neste momento colhendo os frutos amargos da derrota de junho de 2013 o que envolveu ilusões de movimentos “apartidários” como o MPL acerca de “democracia” e "assembleísmo”, enquanto os inimigos do povo buscaram se construir e destruir o movimento por dentro. Mais de 100 anos após a publicação de “Que Fazer” os apologistas dos “movimentos”, bem como da crítica “do modelo de partido autoritário” ainda encontram espaço de atuação o que já era denunciado por Lênin a seu tempo.A falta de um preparo estratégico das mobilizações em Junho de 2013 permitiu em primeiro lugar a infiltração de provocadores, culminando na destruição de concessionária de carros numa ação isolado, movida por elementos estranhos aos manifestantes e com intuito claro de desmoralizar a luta. Permitiu em segundo lugar a dispersão da mobilização em torno de pautas confusas e o fortalecimento de elementos direitistas médios que tomaram as ruas e garantiram a derrubada da presidenta do PT pouco depois.

Para além dos métodos artesanais e de discursos demagógicos sobre democracia, a esquerda precisa, para fazer com que os trabalhadores ocupem o espaço que a história lhes reservou, de organizações de tribunos populares, de ativistas profissionais que dediquem suas vidas à Revolução Brasileira, de uma imprensa tanto local quanto nacional, de uma literatura que longe de ser de má qualidade sirva para elevar a consciência de setores médios e atrasados da classe. Lênin de forma sintomática dizia que o pior inimigo da classe operária são os demagogos. Justamente pelo fato dos demagogos serem capazes de ludibriar uma maioria de trabalhadores sob o senso comum e minar o movimento por dentro. Já estamos verificando que o democratismo dos movimentos sociais nos vem levando a derrotas e desmoralização, isso quando não pautados também pelo discurso anti-partido.     


[1] Quando o capitalismo de livro mercado e a revolução industrial são substituídos dialeticamente pelo novo protagonismo dos bancos e dos monopólios/oligopólios. Nas palavras de Lênin a etapa imperialista do capitalismo é uma era de crises, guerras e revoluções.   
[2] A revolução de outubro e o impacto do fim da II Guerra Mundial com a destruição político militar do nazi-fascismo pelo exército vermelho; e o fato dos trabalhadores voltarem da guerra armados e se depararem com patrões que haviam sido colaboracionistas dos nazi-fascistas; estes dois elementos fizeram com que governos burgueses do pós-guerra negociassem o Estado de Bem Estar Social – concessão de direitos para evitar novas revoluções de outubro.

domingo, 21 de outubro de 2018

“A Construção Nacional – 1830-1889” – José Murilo de Carvalho (Coordenação).


“A Construção Nacional – 1830-1889” – José Murilo de Carvalho (Coordenação).




Resenha Livro – “História do Brasil Nação: a Construção Nacional – 1830 – 1889 - Volume 2” – Vários Autores – Ed. Objetiva

“O período considerado nesse capítulo, do ponto de vista econômico, político, social e cultural, representa o momento consolidador de vários e decisivos aspectos da nacionalidade, seja na afirmação de algumas de suas características fundamentais, seja na abertura de oportunidades, ou mesmo pelos impasses que explicitou e que têm marcado o país até os dias atuais.

Entre o 7 de Abril de 1831[1] e o 15 de novembro de 1889, da abdicação de D. Pedro I à República, o Brasil experimentou transformações, modernizou suas instituições políticas, sua estrutura econômica, suas relações sociais, sem que tenham sido superadas certas mazelas e contradições que, permanentemente atualizadas, têm confirmado o apego à desigualdade, à exclusão e à marginalização sociais, que estão na base de impasses históricos que o Brasil tem reiterado”.

Quais são os elementos que especificam a nação brasileira e a distinguem em sua evolução história face aos demais países? Como se deu tal evolução face às demais repúblicas sul-americanas? Repúblicas que assistiram à consolidação da emancipação política das nações através de processos de amplas guerras e fragmentação político-territorial, num processo distinto da experiência brasileira. 

Quais são as raízes históricas que explicam o Brasil do presente e que revelam as reiterações históricas que explicam por que as mudanças sociais em terras brasilienses frequentemente se deem através de vias conservadoras, como foi particularmente o caso da gradual abolição do tráfico e do trabalho escravo?

O problema da nacionalidade brasileira e os traços distintivos que circunscrevem o Brasil foram questões que surgiram a partir do processo revolucionário de longa duração envolvendo a emancipação política brasileira (1822) – as diversas mudanças no país decorrentes da transferência da corte portuguesa ao Brasil (1808), a abertura dos portos que colocou fim ao exclusivismo comercial que informa o sistema colonial (1808), e a revolução constitucionalista do Porto (1820) que criou graves animosidades entre brasileiros e portugueses, criando, estes entre outros fatores, as condições objetivas e subjetivas para a emancipação política. Não poderiam resultar numa nação consolidada, com consciência de si e clareza de suas peculiaridades. Pelo contrário, na Independência sequer o mapa territorial brasileiro era certo: àquela época o atual território do Uruguai pertencia ao Brasil e o Acre pertencia à Bolívia. As províncias tinham cada uma um sentimento de pertencimento que colocou em risco mais de uma vez a unidade territorial do país.

Neste 2º Volume da coleção “História do Brasil Nação” estamos diante de um período que envolverá importantes agitações políticas, especialmente durante o período da regência, com movimentos separatistas e autonomistas como a Confederação do Equador, até uma temida revolta de escravos na Bahia, a revolta dos malês, que envolveu parcela de escravos de origem muçulmana e tinha entre os seus objetivos a libertação dos escravos daquela origem do cativeiro. Podemos citar ainda a Sabinada e Balaiada como exemplos de revoltas que contaram com o apoio popular, além da revolta Farroupilha no Rio Grande do Sul. Com a antecipação da maioridade de D. Pedro II em 1840, assistiremos a uma segunda etapa de relativa estabilidade política que apenas será revertida com o fim da Guerra do Paraguai, mais de 30 anos após o início do II Reinado, com a crise militar, a crise do sistema de mão de obra escravo (este extinto de forma gradual, porém ao final sem as pleiteadas indenizações dos proprietários a partir de iniciativa da princesa Isabel movida por sentimentos cristãos), além da crise instaurada pela maçonaria e Igreja no país – sem o apoio do exército, da Igreja e dos proprietários, o Império sucumbiu ao golpe militar que instaurou a republico num evento que o povo assistiu bestializado, sem entender do que se tratava, muitos pensando tratar-se de um desfile militar.

Trata-se de qualquer forma de um período decisivo em face das mudanças econômicas – com destaque para a expansão do café a partir dos anos 1830, a vinda dos imigrantes e a consolidação de uma força de trabalho baseada no trabalho livre, além do desenvolvimento das ferrovias e da iluminação das cidades a gás, da criação do Instituto Histórico Geográfico e das primeiras universidades do país, as escolas de direito de São Paulo e Recife. O peso da influência de ideias e filosofias francesas, alemãs e norte-americanas a disputar a hegemonia e o peso da tradição cultural portuguesa de até então. Período em que se assiste aos primeiros lances de um nativismo poético e artístico, como o indianismo da primeira fase do romantismo em Gonçalves Dias e José de Alencar e o naturalismo/realismo de Machado de Assis e Aluísio de Azevedo que servirão de importantes e fieis retratos  de tipos populares, predominantemente urbanos, além das figuras burguesas que já seriam retratadas desde o nosso primeiro romance conhecido, “A Moreninha” de Joaquim Manoel de Macedo, um sucesso já em sua época.  

Estudar a história do Brasil, conhecendo os aspectos decisivos que atribuem sentido à nossa evolução histórica, é passo fundamental para uma aproximação acerca do Brasil de hoje, bem como para responder dilemas que são reiterados em nossa história: a exclusão dos mais pobres e a grave desigualdade reforça a tese de que as grandes transformações sociais, quando não feitas com base em movimentos de ruptura com a ordem constituída, frequentemente são concretizados em mudanças promovidas com o fito de garantir a ordem de coisas colocadas, a hegemonia social das classes dominantes. A renitência com que o país lidou com o tráfico, postergando leis que já vedavam o comércio de humanos desde 1831 até 1850, bem como a lei de terras de 1850 que tem claro intuito de dificultar o acesso dos não remediados à terra diz muito acerca desta tendência da história brasileira seguir a chamada via prussiana, da conciliação que permite a unidade sob a direção das classes proprietárias que dirigem virtualmente a colônia e concretamente o país após a emancipação. O caminho a ser trilhado no sentido da Revolução Brasileira envolverá a resolução de contradições que estão na essência do período da "Construção Nacional" como a grave exclusão política de uma massa de escravos e trabalhadores livres pobres, a reiteração do sentido geral da economia agroexportadora voltada para o exterior e o desenvolvimento insuficiente de um mercado interno bem como de bases institucionais para a reprodução do modo de produção capitalista e consolidação da hegemonia da burguesia, na condição indiscutível de classe dominante desde a onda de revoluções de 1848.   







[1] Dom. Pedro I abdica em nome de seu filho D. Pedro II.

domingo, 23 de setembro de 2018

“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin


“A Guerra Guaranítica” – Tau Golin



Resenha Livro – “A Guerra Guaranítica: o levante indígena que desafiou Portugal e Espanha” – Ed. Terceiro Nome – Coleção Brasil Rebelde

É bastante usual escutar-se certo senso comum segundo o qual o povo brasileiro é pacífico, conciliador, cordial, não se rebelando face às injustiças que grassam toda a evolução histórica do país. Esta mesma história revela que o senso comum, operando como uma ideologia[1], desconsidera revoltas e rebeliões que remetem pelo menos desde o início da colonização.

O Quilombo dos Palmares ainda no séc. XVII foi um exemplo de organização que em si desafiou os poderes constituídos em Brasil e Lisboa. O Quilombo não tinha um programa político definido nem fazia propaganda política seja pelo fim do tráfico de escravos seja pelo fim da própria escravidão. 

Mas um núcleo populacional situado no interior do atual estado de Alagoas (Serra da Barriga) bem como seu rápido crescimento tornando-se o maior quilombo de então provocou o medo de que o movimento se alastrasse, para não dizer os efetivos prejuízos causados aos proprietários da região que perdiam sua mão de obra para o quilombo. Seu final foi a completa destruição e morte do refúgio de negros, índios ou até brancos que por diferentes razões rompiam com a sociedade colonial e buscavam uma outra alternativa societária, por sinal, bastante influenciada pela cultura Banto.  

As Guerras Guaraníticas (1753/1755) também foram um movimento que, como Palmares, abria uma polarização entre os poderes constituídos e setores oprimidos da população. Todavia, tratou-se de um movimento muito diferente de Palmares, coincidindo, no entanto, com o mesmo fim trágico.

Como se sabe, desde o início da colonização durante séculos a região meridional do país foi objeto de guerras e disputas territoriais envolvendo as coroas portuguesa e espanhola. No início da colonização, o tratado que deveria delimitar as fronteiras corresponderia ainda ao defasado Tratado de Tordesilhas de 1494 que estabelecia uma linha divisória ao norte no atual estado do Pará (Belém) e ao sul pela cidade de Laguna. O tratado não impediu que bandeirantes paulistas e mineiros avançassem sobre os domínios espanhóis na caça de índios e promovendo o comércio. O domínio da região da bacia do rio prata que abrange os atuais estados do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai e era estratégico – por este roteiro passavam  traficantes de mercadorias que comerciavam sem pagar os impostos relativos à coroa espanhola.

O ponto de partida das Guerras Guaraníticas foi todavia o Tratado de Madrid (1750). Numa conjuntura em que as animosidades entre espanhóis e portugueses foram reduzidas com o casamento do rei espanhol com uma filha dos Bragança, Portugal e Espanha determinaram neste tratado a entrega pelos espanhóis dos “Sete Povos das Missões[2] enquanto o Império Luso Brasileiro em permuta entregaria a Colônia do Sacramento onde até então cinco guerras envolvendo as duas coroas tiveram lugar.

O Tratado de Madrid também previa uma expedição local conduzida pelas duas coroas para se definir os contornos das fronteiras do meridiano. O critério geral adotado pelo Tratado de Madrid foi o do uti possidetis – a posse e a fixação em determinado lugar confeririam o domínio definitivo do território.
A região das sete missões, conforme o pactuado pelas coroas, deveria ser liberada do domínio dos índios sob a condução dos padres jesuítas. A organização política local dava-se através da liderança não tanto dos padres como se costuma supor mas dos caciques indígenas, a maioria de origem guarani, e que mantinham, através de relações familiares, um domínio envolvendo dezenas de milhares de pessoas – estima-se só na região de Sete Povos 30 mil indígenas.

Ante o ultimato das tropas portuguesas e espanholas quanto à exigência dos índios abandonaram suas terras, as lideranças caciques se dividiram. Alguns setores buscavam negociar e protelavam o ataque sobre as missões – no limite ganhavam tempo para se preparar militarmente. Alguns setores mais radicalizados afirmavam que a terra em que habitavam fora concedida por Deus e só ele poderia tirá-los de lá. Com o avanço das tropas, o principal dirigente militar Sepé Tiaraju defendia uma guerra de movimento em campos abertos, evitando sempre um embate final e frontal – os índios atacavam também em poucos bandos através de estratégias de guerrilha, como a tática de deixar nos campos vacas e cavalos a serem apropriados pelo elemento estrangeiro e depois o ataque aos soldados que caíam na armadilha.

Em que pese as enormes dificuldades operacionais de mobilizar um exército com cavalaria para adentrar um terreno fechado, encharcado pelas chuvas, por enchentes e pelo frio, a campanha luso-espanhola saiu vitoriosa – os índios que lá habitavam também chamados de missioneiros se dispersaram pelo território que em que hoje se situa o Rio Grande do Sul. Foram reduzidos pela força e obrigados de certa forma a se inserir na sociedade colonial em condições de decadência. Ainda assim aqueles índios guaranis deixariam importantes influências que marcam a cultura e os costumes gaúchos.

“É notável que o cotidiano contemporâneo rio-grandense sustente-se ainda na herança indígena. Expressões identitárias icônicas, como assado/churrasco (a espetada de carne tribal), o mate/chimarrão e dezenas de alimentos constitutivos da “comida caseira” vêm do universo nativo”.  (Pg. 168).

O fato é que a violência do aparato repressivo do estado, no Brasil, resultou em novas tragédias que são parecidas com as Guerras Guaraníticas. Cada reintegração de posse de lutadores sem terra e sem teto experimentam ainda hoje a intransigência da classe dominante com as formas mais simples e embrionárias de resistência como a luta pela terra e pela moradia – direitos democráticos elementares. Sete Missões ou Canudos em fins do séc. XIX tiveram o mesmo fim trágico que o bairro do pinheirinho em São José dos Campos quando a polícia militar sob a direção do governo estadual do PSDB expulsou milhares de famílias de um bairro consolidado para atender aos interesses econômicos da especulação imobiliária .

Sepe Tiaraju por sua vez teve um fim tão trágico quanto zumbi[3]. Encontrado após ter levado uma queda de cavalo, foi levado até as autoridades espanholas, quando teve seu corpo queimado por pólvora. Levou um tiro de misericórdia e teve sua cabeça arrancada. Se há uma lição ao longo destas tragédias é a de que a história do povo brasileiro envolve a presença de movimentos e lideranças que, a seu modo, se insurgiram contra a ordem estabelecida – a segunda lição é que a ausência de uma organização político-militar bem como o relativo isolamento de movimentos revolucionários inviabilizaram por ora uma transformação revolucionária no país, com a derrota política de uma classe dominante que secularmente serviu-se da violência sem escrúpulos contra os setores oprimidos da população.

Igreja de São Miguel das Missões


[1] Ideologia no sentido em que falam o marxismo, qual seja, um conjunto de ideias que beneficiam a classe dominante mas que se revelam como se fossem de interesse universal.
[2] Este é o nome que se deu ao conjunto de sete aldeamentos indígenas fundados pelos Jesuítas espanhóis na Região do "Rio Grande de São Pedro", atual Rio Grande do Sul
[3] Na verdade há duas versões na historiografia acerca da morte de Zumbi. A primeira: após constatar a derrota definitiva da resistência, Zumbi teria se matado jogando-se de um morro. A segunda, mais convincente, diz que o líder morreu em combate.  

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

“Crise Colonial e Independência (1808-1830)" – Alberto da Costa e Silva (Cordenação)


“Crise Colonial e Independência (1808-1830)" – Alberto da Costa e Silva (Cordenação)



Resenha Livro - “Crise Colonial e Independência (1808-1830) – Alberto da Costa e Silva (Cordenação) – Ed. Objetiva

“Foi nesse cenário econômico que, em rápidos movimentos, ocorreram as grandes transformações do capitalismo e a criação do Estado nacional brasileiro. No ponto inicial do séc. XIX, a onda burguesa era percebida na colônia como notícia distante, assunto apenas de debate entre pessoas cultas, preocupação que não fazia parte do cotidiano econômico. De um dia para outro, em 1808, com o desembarque da corte de D. João, que fugia de Napoleão Bonaparte, a onda chega e ganha forma física instantânea. Ela muda não apenas a percepção do cenário como a situação da economia real e, especificamente, o quadro institucional da economia. A existência de um Estado soberano de fato molda o período de permanência da corte. Nele, “Brasil” deixa de ser uma utopia nacional e passa a ser uma ideia dotada de conteúdo real, mesmo sem independência formal”.  (Pg.169)
                
A História como disciplina específica, com seus pressupostos teórico-metodológicos e objetos de investigação delimitados, é relativamente recente. Certamente, pelo menos desde Heródoto (485-425 a.C) houve cronistas e todo o tipo de homem de letras que legaram valiosos relatos sobre o passado. Mas é apenas no fim do séc. XIX com Leopold Von Ranke e aqui no Brasil com Francisco Adolfo Varnhagen  que a história ganha contornos de uma disciplina específica, separada da filosofia, da sociologia e da política. 

Podemos falar aqui de uma historiografia positivista, cujo foco dá-se em torno do que hoje chamaríamos de história político-administrativa, com a pretensão, todavia, de ser um relato imparcial, através da narrativa sequencial dos grandes eventos e datas que nem sempre correspondem à relevância percebida pelos contemporâneos que presenciaram dado evento[1].   

Hoje o positivismo historiográfico está superado. A partir do movimento modernista da historiografia nos anos de 1930 com as contribuições de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Paulo Prado e Gilberto Freyre, observou-se um movimento de aproximação da História e das Ciências Sociais. A influência da missão francesa vinculada à escola dos Annales quando da criação da primeira faculdade de história em São Paulo também contaram para o avanço nas pesquisas, em particular no que tange à história da cultura e à história das ideias.

Todavia, a História enquanto disciplina de ensino superior tem frequentemente suas pesquisas circunscritas a temas extremamente específicos afastando a produção acadêmica de um público leitor não especializado. A título de exemplo, estuda-se em nível de pós-graduação temas de pouca abrangência, como “a alimentação da população citadina da capitania de São Vicente no séc. XVI” ou “o envio das ordens carmelitas à América Portuguesa em 1580”. São estudos que por um lado ganham em profundidade, mas por outro perdem em envergadura, frequentemente com um tratamento exaustivo sobre o objeto de pesquisa sem uma contextualização que ao menos conduza a leitura de não profissionais.

Daí a importância de trabalhos como o desta coleção “História do Brasil Nação: 1808-2010”. Neste primeiro volume temos ensaios de um período extremamente dinâmico, e em dado momento revolucionário, que envolve a fuga da corte portuguesa e sua instalação no Brasil (1808), a abertura dos portos rompendo com o exclusivismo comercial da era colonial (1810), a elevação do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algavres (1818) e, destaque, a revolução constitucionalista do Porto em 1820, para suscitarmos alguns eventos importantes.

Pode-se dizer que a vinda da família real no Brasil foi antes uma retirada militar: tropas napoleônicas já avançavam sobre o território português quando o monarca D. João VI, sob pressão da Inglaterra, transfere a sede do Império Português ao Rio de Janeiro. Os relatos descrevem uma situação dantesca com pessoas buscando embarcar submersas na água bem como a separação de famílias em meio à conturbada retirada.

Salvador fora a sede do Brasil Colônia até 1763 e quando a corte desembarcou no Brasil encontrou no Rio de Janeiro uma vila modesta, com uma forte presença de escravos e sem condições imediatas para a instalação não só da dinastia Bragança, mas de um séquito de nobres que acompanharam a família real. Muito foi feito num curto espaço de tempo de modo a concretizar a cidade do Rio de Janeiro como a capital de um Império intercontinental. Criou-se o Banco do Brasil, o Jardim Botânico e a Imprensa Régia. Uma missão de artistas franceses, modistas e escritores serviu aos desígnios de uma elite, tanto brasileira quanto portuguesa, que buscava requintar-se através da moda europeia, ou mais especificamente, francesa. Foi criado o Real Teatro de São João (1813), bem como foi incentivada a vinda de artistas plásticos e cientistas que buscavam pesquisar a fauna e flora brasileiras.

Os ensaios deste trabalho abordarão aspectos da sociedade, cultura, política e economia através de uma narrativa panorâmica, pontuando as mais recentes descobertas da historiografia acerca daquele período de crise e desagregação do sistema colonial, da consolidação de uma nova nação (ainda que ausente um sentimento de identidade nacional que só seria consolidado muito tempo depois com o modernismo).

Todavia, enquanto os autores lançam luzes sobre diferentes aspectos daquela conjuntura histórica, fica a cargo do leitor uma reflexão posterior, que envolve o sentido geral do movimento histórico naquele período e explique a singularidade da emancipação brasileira num processo conservador em que o desenvolvimento comercial e do próprio capitalismo no país[2] irão conviver com a escravidão e com um regime político que em diversos aspectos não se difere do antigo Antigo Regime, transplantado para terras americanas.

A coroa teve de lutar contra tendências desagregadoras externas e internas. A Revolução Constitucionalista do Porto de 1820 buscava romper com o absolutismo e criar em Portugal uma Monarquia Constitucional com o retorno de D. João VI ao continente europeu, o que efetivamente ocorreu. No âmbito interno, criou-se um clima em que se via o movimento do Porto como partidário da re-colonização do Brasil, algo já impensável em face das transformações sócio-econômicas por aqui operadas desde 1808  - há uma polarização entre brasileiros e portugueses que impulsiona a emancipação. Internamente, há a revolução pernambucana de 1817, de caráter federalista, autonomista e republicano. Há a Confederação do Equador de 1824 com nítido caráter separatista e republicano. E houve as guerras de independência, frequentemente olvidadas, precedidas da adesão espontânea de algumas províncias às cortes de Lisboa em claro desafio ao poder central localizado no Rio de Janeiro.

Estamos assim diante de um período histórico singular que opõe ideias derivadas da Revolução Americana (17776) e da Revolução Francesa (1789) e a centralização política que informa o absolutismo. O liberalismo econômico, nas palavras de um historiador, um grande mal entendido no Brasil,  apareceu no país de forma contraditória, coexistiu com o tráfico de escravos até 1850 e a escravidão até 1889, bem como conciliou com o regime monárquico absolutista. Aliás, após a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, nunca houve um número tão alto de escravos ingressando no país – tratava-se, para além das culturas do açúcar e do tabaco, efetivamente do negócio mais rendoso do período, num comércio dominado principalmente por portugueses.  Considerando que em 1823 apenas 9% da população morava em cidades e em algumas das cidades mais de 50% da população era de escravos, percebe-se como seria difícil constituir um mercado interno que consolidasse uma economia capitalista.

O processo histórico contraditório de rupturas e continuidades criou uma base pouco sólida para a dinastia Bragança – a opulência real, as festas civis/religiosas e os rendimentos devidos aos nobres que para cá imigraram foram arcados com impostos sobre a produção agrícola. Em troca, tanto D.  João quanto D. Pedro conferiam títulos de nobreza a centenas de brasileiros de modo indiscriminado e, importante, perpetuando práticas já obsoletas em países da Europa que passavam por sua experiência histórica das revoluções burguesas.

Em que pese este trabalho não ter a pretensão de oferecer novas interpretações sobre a crise colonial e a independência, o livro, pelo seu aspecto didático sem comprometer a fidelidade junto às fontes históricas, é uma boa iniciativa no sentido de fazer com que os estudos da história venham além dos trabalhos especializados, eventualmente acessíveis apenas ao historiador de ofício.   
       

Joaquim Cândido Guillobel - "Fiel retrato do interior de uma casa brasileira. (1814-1816)




[1] Poderíamos suscitar como exemplo o 7 de Setembro de 1822 com o Grito do Ipiranga, fato noticiado por um único jornal em sua época, não correspondendo, ao contrário do que se sugere, em um marco de ruptura mas a consolidação de movimento em direção à independência que os historiadores costumam rotular como processo de longa duração.
[2] Bem como a inserção do Brasil nas relações internacionais face ao desenvolvimento geral do capitalismo no mundo.

domingo, 26 de agosto de 2018

“Um Outro Olhar Sobre Stálin” – Ludo Martens


“Um Outro Olhar Sobre Stálin” – Ludo Martens

 Resenha livro – “Um outro olhar sobre Stálin” – Ludo Martens - Para a História do Socialismo Documentos



O escritor alagoano Graciliano Ramos certa feita bem observou: “nenhum homem é mais odiado pela burguesia do que Stálin. E com razão”. De fato, se houve um dirigente da esquerda revolucionária mais atacado e caluniado pelos meios de comunicação do imperialismo mundial, bem como pelos fascistas ao seu tempo, foi Stálin. E isto não é gratuito.

Em sentido contrário ao que se é aprendido frequentemente na escola e em filmes de hollywood, não foram os americanos com seu dia D que impediram o nazismo de triunfar. A guerra àquela altura já estava definida desde a batalha de Stalingrado, Kursk e a heroica resistência do povo soviético face ao cerco de Leningrado. O exército vermelho destruiu militarmente o nazismo e esta verdade deve ser levada em consideração com todas as suas implicações, bem como suscitando razões do êxito soviético.  Já os americanos, num momento em que os rumos da Guerra já estavam decididos, mataram 500 000 civis com a Bomba Atômica numa manobra para intimidar a URSS e o movimento comunista internacional.

Aqui aparece o interesse deste livro de Ludo Martens. Não se trata de biografia de Stálin, mas de uma análise objetiva calcada em vasto repositório de fontes que demonstram muito bem como somos muito mal informados acerca do que ocorreu na União Soviética e os fatos que se passaram no período de Stálin em particular.

No que tange à II Guerra, não haveria vitória em primeiro lugar sem a assombrosa industrialização que criou as condições para o desenvolvimento de um país extremamente atrasado, com uma maioria esmagadora de camponeses vivendo em condições medievais,  utilizando arados de madeiras e fortemente influenciados pela igreja com suas mistificações. Milhares de camponeses foram para a cidade e tornaram-se proletários e um forte estímulo no nível da cultura também fez avançar a consciência do povo - o engajamento na construção do socialismo. Não haveria vitória na II Guerra se não tivesse ocorrido igualmente importantes depurações dentro do partido e em particular no exército. As vésperas da guerra desbaratou-se a operação Tuckachév de inspiração bonapartista – dentro de URSS dos anos 30 havia atividade clandestina de todo o tipo de oportunistas que buscavam minar por dentro o primeiro país soviético. Se não houvesse depuração, o estrondoso número de 23 milhões de russos mortos na II Guerra Mundial seria maior.

O assassinato de Kirov em 1934 ou mesmo antes com a tentativa de morte de Lênin demonstram como havia uma intensa atividade clandestina buscando galgar posições para liquidar o regime soviético.

Talvez, a forma como se conta a história da Revolução Russa, muito inspirada nas narrativas anticomunistas, revisionistas e trotskystas, seria a de que a revolução correspondesse a uma data em outubro de 1917. Como se a revolução não fosse um processo histórico que perdura-se em encarniçada luta de classes em longa duração. Uma narrativa como se a revolução trinfou e uma suposta contra-revolução burocrático dirigida por Stálin engendrara um “estado operário deformado” desvirtua a realidade dos fatos. 

Para muitos militantes de esquerda, formados num ambiente onde ainda predomina os pontos de vista trotskystas e revisionistas, Stálin seria um ditador e um burocrata e de certa forma uma ruptura com a orientação leninista. Trótsky, aquele que aderiu ao menchevismo em 1903 e só aderiria ao bolchevismo em agosto de 1917; aquele que polemizou a vida inteira com Lênin nas questões mais essenciais como o problema a questão dos sindicatos (uma escola de comunismo em Lênin), sobre a I Guerra (enquanto Lênin dentro do espírito internacionalista proclama a guerra contra a guerra, Trótsky vacila achando oportuna a vitória militar do czar), sobre o socialismo num só país (que como veremos nada tem a ver com o nacionalismo e foi a tese defendida por Lênin).

Um novo olhar para o que foi a história da União Soviética nada mais é do que a constatação de que Stálin soube bem dirigir o partido num contexto que passa despercebido/desconhecido, com sabotadores de todo o tipo, com grandes proprietários especulando e com isso levando a fome às cidades, à infiltração de anticomunistas dentro do partido e até na direção, atuando no sentido de perseguir os mais capazes e mais valentes militantes, à destruição deliberada de Khulags de máquinas e animais para sabotar a coletivização da terra; uma situação de guerra de classes perdurou na URSS ao longo da segunda e terceira década do século passado fazendo com que alguns socialistas humanistas se chocassem com a “violência stalinista”.

Esta contextualização é importante para entender as razões da “unanimidade” de fascistas,  liberais, sociais democratas e trotskistas em caluniar Stálin. A vitória da revolução de Outubro despertou o ódio de todas as potências imperialistas que desde o início declararam guerra ao país dos soviets. Após a guerra perdura-se uma guerra civil numa frente ampla envolvendo a burguesia expropriada da Rússia, os grandes proprietários, militares do antigo regime e a intervenção de nada menos que 14 países diferentes operando em solo Russo. Além de consolidar a tomada do poder os bolcheviques tiveram que criar um exército desde o zero. As tropas do general branco Denekin e Kolchak, este último uma rara espécie de Hitler russo, estiveram perto de esmagar a revolução transformando a Rússia numa comuna de paris.

Este livro de Ludo Martens, nesse sentido, não pretende ser uma biografia de Stálin, mas a refutação das principais críticas que ouvimos sobre Stálin. Um trabalho altamente documentado que demonstra como foi montada uma verdadeira operação de guerra ideológica pelo imperialismo (e ao seu tempo o fascismo) contra a URSS[1].

As chamas depurações (1938/9) na verdade mostraram a sua justeza com o término da II Guerra. Quando os nazistas tomaram territórios soviéticos, a primeira coisa que faziam eram identificar as lideranças locais do movimento comunista e levá-los, com familiares, para morte nos campos de concentração: quantos colaboracionistas nazis, brancos, partidários do tzarismo, sociais revolucionários e kulags não prestariam ajuda a Hitler com o intuito de varrer os comunistas do poder. Criminosos políticos  foram devidamente afastados naquela conjuntura em que o país se preparava para uma guerra em proporção jamais vista. As fontes que são suscitadas em livros anticomunistas falam em 9 milhões de mortos na depuração. Após a abertura de arquivos nos anos 80, pesquisas de historiadores orçam em centenas de milhares de mortos – uma minoria por execução e uma maioria por problemas de saúde relacionadas a dificuldades de abastecimento as quais atingiam toda população. E mais, a primeira depuração foi entendida como exagerada e em 6 meses Stálin estabelece mudança de diretriz.

Todos os mitos que escutamos sobre Stálin bem como a história da revolução russa precisam cair por terra. É preciso entender que o nascimento do socialismo na Rússia foi um evento cuja violência é proporcional à reação não só das classes sociais proprietárias derrotadas, mas do imperialismo mundial: a URSS constitui uma ameaça de novas revoluções de outubros e a URSS sob Stálin que transformou um país donde camponeses aravam a terra com arado de madeira na segunda maior potência mundial, que colocou centenas de milhares de pessoas em escolas, institutos e universidades, que em 13 anos desenvolveu a indústria num ritmo jamais visto até então, que coletivizou a terra e destruiu politicamente a última classe social exploradora do país, os kulags, um país poderoso e influente que reivindicava o socialismo foi uma ameaça real ao sistema de exploração capitalista. A existência da URSS e a vitória do exército vermelho sobre o nazismo contagiou os trabalhadores por todo o mundo, colocando o capitalismo nos países centrais em grave risco[2] – da mesma forma ocorre com os países da periferia que se mobilizam contra o neocolonialismo, com apoio da URSS.

Outros mitos envolvem o aspecto burocrático da direção stalinista, quando Stálin combateu da forma mais reiterada os desvios, o relaxamento e acomodamento de dirigentes e suscitava as bases a controlarem a direção. A noção leninista de que o exército deve ter comissários políticos, estabelecendo uma relação coerente entre princípios e estratégias políticas e atividade militar foi aplicada a risca por Stálin.  Trótsky por sinal tinha posição diferente de Lênin e Stálin até aqui: a rejeição da direção ideológica e política do exército pelo partido. O chamado “culto à personalidade” também não tem qualquer embasamento face aos documentos de pessoas que conviveram com Stálin. Quando Kaganovich, um bolchevique que se manteve fiel às ideias revolucionárias, emendou em texto uma passagem com a expressão marxista-leninismo-stalinismo,  foi imediatamente repelido por Stalin.  Stálin não aceitou a redação de um livro sobre sua infância identificando que a publicação era toda ela laudatória, inverídica e impertinente. A grande verdade é que Stálin foi marxista-leninista, e, se quisermos, um leninista ortodoxo. É da velha guarda bolchevique e seu espírito rebelde remonta ao tempo do seminário quando lia Marx escondido sob a capa de uma bíblia. Expulso do seminário, iniciou atividade de luta direta com a autocracia:

“Stálin tinha 26 anos, quando pela primeira vez se encontrou com Lênin, na Finlândia. Foi em Dezembro de 1905, por ocasião da conferência bolchevique. Entre 1905 e 1908, o Cáucaso é o palco de uma intensa atividade revolucionária. Durante esse período, a polícia registra 1150 “atos terroristas”. Stálin desempenha aqui um grande papel. Em 1907-1908, dirige com Ordjonikídze e Vorochílov secretário do Sindicato do Petróleo, uma luta legal de grande envergadura dos 50 mil trabalhadores da indústria petrolífera em Baku. Obtêm o direito de eleger representantes dos trabalhadores, que se reúnem em conferência para discutir uma convenção coletiva de trabalho. Lênin saudou esta luta travada num momento em que a maior parte das células revolucionárias na Rússia havia cessado toda a atividade”.

A oposição Stálin e Trótsky, com a adesão de boa parte da esquerda junto ao segundo, explica muito das nossas debilidades. Só um idiota acredita que o socialismo em um só país de que falou não só Stálin mas também Lênin nada tem a haver com o internacionalismo. Trata-se de garantir a existência de uma trincheira abatido o inimigo, e desde esta trincheira avançar (e não recuar). A verdade é que Trósky até meados de 1930 não acreditava que uma país atrasado como a Rússia poderia avançar rumo ao socialismo (crença compartilhada por Bukharin) – apenas a vitória da revolução em países avançados poderia salvar a Rússia. Se este espírito de derrotismo e de renúncia à luta de classes encarniçada que se seguia da revolução à guerra civil prevalecesse, não se teriam criado as condições para uma resistência heroica do povo soviético face ao imperialismo e à guerra – Lênin e Stálin orientavam o partido e o povo a avançar, a engajar-se no trabalho e construir o socialismo, bem como defendê-lo em todos os níveis. A URSS foi uma trincheira do socialismo em nível mundial e isto explica a fúria dos capitalistas internacionais face a Stálin. O derrotismo de Trótsky mostrou-se errado na prática. Trótsky foi um oportunista, criou divisões e facções internas no partido, desenvolveu atividade clandestina e antipartidária em período que abrande as mais duras lutas de classe. Trótsky teve a ousadia de sugerir que a derrota da URSS face aos nazis poderia ser algo de bom pois criaria as condições para a revolução “antiburocrática” contra o stalinismo.

Por isso em todo mundo são os marxistas-leninistas os que lutam, não se desmoralizam e são aqueles que a burguesia e os capitalistas mais temem e odeiam. Trata-se o marxismo-leninismo não de uma narrativa, nem de uma visão social do mundo, nem de uma “moral” como fala o menchevique Trótsky, mas de uma ciência com seus pressupostos teórico metodológicos que quando bem assimilados fazem com que cada um sinta a mais plena convicção da justeza desta orientação política, firmeza e intransigência na ação.   
  




[1] Stálin propôs à Inglaterra e França uma aliança anti-hitler, mas a proposta foi rejeitada. Logo os comunistas se aperceberam de que a expectativa dos anglo-saxões era a de que Hitler atacaria a Rússia e destruiria o socialismo como lhes convinha. O pacto de não agressão foi nada menos que uma trégua de dois país que sabiam caminhar para o conflito. O pacto foi assinado entre a URSS e Alemanha e em termos militares foi decisivo – junto com a vitória na guerra da Finlândia pelo Exército Vermelho – para preparar a URSS para guerra.
[2] Aqui reside a origem do Estado de Bem Estar Social: benefícios aos trabalhadores para que não ocorram novas Revoluções de Outubro.