segunda-feira, 25 de junho de 2018


“Três Vezes Zumbi” – Jean França e Ricardo Ferreira



Resenha Livro – Três Vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro – Jean M. C. França e Ricardo A. Ferreira - Editora Três Estrelas

“Nenhuma categoria social lutou de forma veemente e consequente contra a escravidão que a dos próprios escravos. Nem por terem fracassado em seus esforços deixaram de condicionar em grau considerável o processo histórico brasileiro, em quase todos os seus aspectos mais importantes. No dia em que forem resgatadas da grande face oculta brasileira  - face mais ampla e importante que a visível e oficial – as revoltas escravas projetarão luz sobre um sem número de contradições históricas que de outro modo sempre permanecerão incompreensíveis. Na história das revoltas brasileiras, a de Palmares ocupa lugar ímpar. Não foi apenas a primeira, mas a de maior envergadura”. Décio Freitas in “Palmares: a Guerra dos Escravos”.

                
Este ensaio dos professores da UNESP Jean França e Ricado Ferreira não se propõe a ser mais uma biografia do Líder Zumbi ou um relato histórico do Quilombo dos Palmares. A proposta do trabalho é fazer uma síntese das diversas leituras e interpretações daquela insurreição e seu líder na história. Aqui reside o que há de mais interessante no ensaio: desde os cronistas, viajantes estrangeiros e homens de estado do Brasil colônia até as leituras mais contemporâneas daqueles eventos elaborando uma noção de resistência, de luta contra o elemento opressor Branco diante da barbárie da escravidão, até a construção do ícone de movimento negro, Zumbi.
                
Os autores identificam três grandes ondas que expressam diferentes noções acerca de Palmares. São diferentes visões sociais de mundo e contextos históricos que também vão se revelando conforme se observa como o Brasil colonial, o Brasil egresso da independência política em 1822 e as renovações dos estudos que se destacam a partir de Nina Rodrigues em fins do XIX e especialmente Edson Carneiro já em meados do século XX; como em cada período surgiu formas muito distintas envolvendo a figura de Zumbi e Palmares.

No período colonial a insurreição de Palmares era entendida como uma ameaça constituída à ordem vigente que se fundava no poderio quase incontrastável dos latifundiários. Sociedade construída à sombra da monocultura do açúcar, algodão e tabaco, sob a base do trabalho escravo. Como se sabe o Brasil colonial reduzia seu número de letrados a uma ínfima minoria: bacharéis e homens do estado que expressam o ponto de vista daquelas elites agrárias. Há paralelamente o relato dos jesuítas: os religiosos a princípio não se opõem a escravidão dos negros mas pretendem reformas no trato entre o senhor e seu escravo no sentido de sua adequação aos preceitos religiosos cristãos. Acerca da percepção dos colonos sobre a insurreição na Serra da Barriga:

“Ao longo dos Seiscentos e Setescentos, o quilombo despertou grande interesse e mereceu atenção de muitos letrados do período, holandeses e portugueses”. Pg.  149

O Palmares reconstruído por aqueles homens brancos e eventualmente ligados à administração da coroa se voltam aos contornos militares e administrativos do conflito.

“São extensas descrições da geografia da região, da configuração e disposição dos mocambos, estimativas sobre a população, notas sobre suas capacidades militares e, sobretudo, relatos de batalhas movidas contra os revoltosos”. Pg. 149

No séc. XIX com eventos bastante dinâmicos que envolvem a transferência da corte para o Brasil em 1808 e a nossa emancipação política ulterior, parece reduzir o interesse dos letrados de então pelos acontecimentos em Palmares. Quando se encontra menções, o grande Quilombo de Alagoas se mostra como um foco de barbárie, um empecilho ao desenvolvimento da civilização brasileira, nação que se constrói e identidade que deveria se forjar menos no negro e mais no elemento branco e indígena[1]. Certa literatura ufanista por outro lado ressalta os feitos do paulista Domingos Jorge Velho, bandeirante que alcançou a aniquilação de Palmares e foi erigido à condição de herói nacional.

Este mesmo Domingos Jorge Velho seria retratado na 3ª onda de interpretação não como um herói, mas como um cruel vilão, na verdade, um particular que à custa da destruição de palmares exige datas das terras então conquistas – alguém movido portando pela ambição de riquezas.  

Astrogildo Pereira, então secretário-geral do PC, lança as bases para uma primeira interpretação mais materialista do fenômeno histórico enxergando no quilombo manifestação de luta de classes, local de resistência em face dos poderes constituídos. Para os marxistas, Zumbi surge como um ícone dos oprimidos e com os movimentos identitários em fins dos anos 1980 como um símbolo da consciência negra[2]. Outro destaque dado pela mais recente historiografia revela o caráter multi-étnico de Palmares. Estudos arqueológicos que estão em curso revelam a presença de cerâmica  indígena, e mais de um historiador diz haverem no Quilombo não só negros, mas índios, mestiços e até brancos.

Uma questão a ser formulada aqui é: quais das distintas versões se aproximam da verdade, do que de fato ocorreu em Palmares e quem foi seu líder. Os documentos são bastante contraditórios nesse sentido. Para alguns, Zumbi é uma espécie de patente político militar e não um indivíduo em específico. Outros dizem que Zumbi advém da cultura Banto e tem caráter de divindade. Outros ao contrário dizem Zumbi significar diabo. Mais recentemente a historiografia passou a se referir de um lado a Ganga Zumba, primeiro “rei” de Palmares, e que, ao fazer um acordo e ser morto pelos combatentes oficiais, abriria espaço para o verdadeiro Zumbi, aquele que se recusou a capitular até a morte. Algumas versões dizem que, ao constatar a derrota militar, Zumbi se suicida jogando-se de um penhasco. Outros combatentes também se suicidam revelando preferir a morte à vida no cativeiro, sujeito a castigos que vão do pelourinho até a amputação de braços e pernas. Outros relatos dizem que Zumbi pelejou até a morte, com honradez.

Os autores em seu prefácio sinalizam para certa concepção equivocada de intangibilidade da verdade na história. Não estamos com isso endossando o ponto de vista Positivista, que de fato pretendia uma história definitiva, a verdade vista através dos documentos (fontes primárias), ou nas palavras do pai fundador da historiografia positivista Von Ranke, “Die Geschichte wie es eigentlich gewesen hat” – a história como de fato aconteceu. As diferentes versões da história evoluíram ao lado das inovações no campo político e teórico- metodológico da disciplina História. É possível contar a história da Palmares sob diversos enfoques e vieses políticos, mas é a confrontação crítica dos documentos por meio do materialismo histórico o meio de se aproxima mais da verdade[3] da história. Negar a verdade pode simplesmente significar que os relatos dos jesuítas e cronistas dos séculos XVII e XVIII são tão verdadeiros quanto às pesquisas arqueológicas em curso na Serra da Barriga - são verdadeiros parcialmente na medida em que revelam à reação das autoridades e da sociedade colonial à rebelião. Para usar uma bela ilustração de Michel Löwy, se a verdade científica das ciências exatas e da natureza não se equiparam às das ciências sociais, pode  pensar-se num mirante com diferentes andares em que cada narrativa terá um campo de visão mais ou menos vasto, bem como mais ou menos próximo do que ocorreu no principal quilombo das Américas Espanhola[4] e Portuguesa. O que os autores chamam de narrativa esquerdista nada mais fez do que elaborar uma história materialista, chamando atenção para, não “o risco” de Palmares para país sob o jugo da escravidão, mas como iniciativa pioneira de resistência do setor mais oprimido daquela sociedade. 

A direita ainda mantém os seus heróis como os Bandeirantes e homens de estado que nomeiam rus e avenidas das cidades brasileiras. A esquerda aliada aos setores explorados e oprimidos deve se permitir a eleger os seus heróis, papel legítimo atribuído ao Quilombo dos Palmares e especialmente a Zumbi.  




[1] A maior expressão do “nacionalismo” indianista é José de Alencar.
[2] Nesse sentido, o 20 de Novembro, dia da consciência negra ocorre na provável data da morte de Zumbi em 1695.
[3] Sem com isso “torturar” os documentos para que eles digam o que se tem como pressuposto teórico, o que foi o caso de nossos primeiros marxistas pouco familiarizados na doutrina de Marx.
[4] A título de exemplo, o Quilombo de Saramaka no Suriname.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

“Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda


“Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda



Resenha Livro - “Raízes do Brasil” – Sérgio Buarque de Holanda – Companhia das Letras - 26ª Edição

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” Holanda. S. B. Pg 146-7
                
Sabe-se que o primeiro cronista da nossa a história foi o Frei Vicente do Salvador, franciscano da Bahia. Seu “História do Brasil” data de 1627. Assim como ele, outros cronistas e viajantes deixaram relatos valiosos sobre o nosso passado colonial, nossa herança rural, patriarcal cuja opulência e hábitos de fidalguia herdados da tradição ibérica conviviam candidamente com o trabalho servil. Todavia àquela altura não se pode cogitar de uma História enquanto disciplina ou fonte de conhecimento autônomo, com seus próprios pressupostos teórico-metodológicos. A História, bem como a Sociologia e demais ciências humanas irão ter seus contornos e sentido de especialização só no séc. XIX com o alemão Von Ranke e aqui no Brasil com o fundador da historiografia brasileira propriamente dita, Varnhagen.

Pode-se aqui falar de uma primeira geração de historiadores positivistas cuja história acerca das coisas brasileiras não raro cae num certo ufanismo: uma história dos grandes eventos e das personalidades dos estadistas e demais notáveis. Influenciados pelo naturalismo francês, alguns destes pioneiros da nossa historiografia como um Euclides da Cunha ou um Capistrano de Abreu interpretam o Brasil influenciados pelas noções de raça, pelo determinismo geográfico, com certo protagonista do elemento Português – em seu Capítulos da História Colonial, Capistrano embaralha o índio com elementos paisagísticos, quase como um elemento irrelevante e acidental da nossa trajetória – quando se sabe que o índio, em especial os tupis da região litorâneo, jogaram um papel estratégico no desbravamento do interior, ou mesmo antes associando-se aos portugueses na exploração do Pau Brasil, além de miscigenação profunda envolvendo os mamelucos de modo que na São Paulo colonial os habitantes, incluindo os colonizadores, falam a língua tupi, inclusive no recinto doméstico.

Se a Semana da Arte Moderna de 1922 criou as condições para a edificação de uma arte genuinamente nacional, não só quanto à temática – considerando o “nacionalismo” dos românticos indianistas – mas quanto à forma, ao estilo e mesmo aos propósitos, anos depois a revolução de 1930 colocaria em marcha mudanças estruturais, com o desenvolvimento associado à intervenção decisiva do Estado na economia e na sociedade. Uma revolução modernista na historiografia brasileira ocorreria na década de 1930, com o advento de “Casa Grande e Senzala” (1933) de G. Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de Caio Prado Júnior e este “Raízes do Brasil”[1] (1936) de Sérgio Buarque de Holanda.

Trata-se de um momento em que a História se aproxima das Ciências Sociais. Cada qual parte de pressupostos teóricos bastante distintos mas movimentam-se no mesmo sentido de busca da especificidade Brasileira. Num país donde o Estado antecedeu a Nação, cumpria a este grupo de intelectuais forjar uma identidade nacional ou buscar as especificidades do Brasileiro sempre a partir da reflexão acerca do nosso passado, de nossa herança colonial. “Raízes do Brasil” é um notável ensaio que traça as linhas gerais da psicologia brasileira, da cultura e da história das nossas ideias. 

Para Sérgio Buarque o que há de mais essencial no povo brasileiro envolve por um lado nossas raízes ibéricas e por outro nossa herança rural, expresso no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, o desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de cana o métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados, a nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais para o espanto de viajantes estrangeiros no país. Nada mais avesso ao trabalho repetitivo, cotidiano, a longo prazo, em contraponto ao espírito de aventura que busca grandes fortunas no menor intervalo de tempo.

Ao contrário da tradicional historiografia positivista ou naturalista que interpreta o homem a partir das influências do meio, Sérgio Buarque segue uma orientação culturalista. Apropriação da dialética tratando de explicar nosso país a partir de oposições como cidade x campo, família x estado, aventureiro x trabalhador.

Vejamos algumas passagens que revelam a propósito a orientação webberiana do nosso autor:

“É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor”. Pg. 38

“Se semelhantes característicos predominaram com notável constância entre os povos ibéricos, não vale isso dizer que provenham de alguma inelutável fatalidade biológica ou que, como as estrelas do céu, pudessem subsistir à margem e à distância das condições de vida terrena. Sabemos que, em determinadas fases de sua história, os povos da península deram provas de singular vitalidade, de surpreendente capacidade de adaptação a novas formas de existência. Que especialmente em fins do século xv puderam mesmo adiantar se aos demais Estados europeus, formando unidades políticas e econômicas de expressão moderna. Mas não terá sido o próprio bom êxito dessa transformação súbita, e talvez prematura, uma das razões da obstinada persistência, entre eles, de hábitos de vida tradicionais, que explicam em parte sua originalidade?”. Pg. 36

De uma certa maneira a incapacidade do português de desenvolver a colônia a partir de uma orientação bem delimitada e estratégica ao invés do furor, da anarquia, do retirar o máximo da terra com o menor dos esforços tem definitivamente explicações que envolvem a questão da cultura. Em Portugal como se sabe o feudalismo não deitou raízes profundas. Uma burguesia mercantil granjeou ascensão social e o independência nacional portuguesa foi consolidado já no séc. XIV com a Revolução de Avis, antes de qualquer outro país europeu. Por suposto, tal burguesia estava muito longe de se assemelhar aos seus pares franceses da Revolução de 1789 que constitui o Estado controlado pela lei e condições ótimas para o desenvolvimento do capitalismo – a burguesia mercantil portuguesa aspira não ao acúmulo de riquezas, mas à fidalguia, despreza o trabalho, em especial o trabalho manual, em detrimento da busca de títulos de nobreza, consoante a visão social de mundo medieval. O gosto pelo discurso rebarbativo, o bacharelismo e o desprezo pelo trabalho manual causou estranheza ao pintor francês Auguste F. Biard que nos trouxe belos quadros retratando o Brasil do séc. XIX. Aquela influencia de cultura de fidalguia observou o pintor quando foi orientado a contratar um escravo para carregar seus instrumentos de trabalho, sendo mal visto pelos brasileiros quando pintava e carregava seus instrumentos por conta própria.

Todavia, uma análise restrita ao problema cultural se por um lado nos oferece retratos preciosos do passado, ainda possui limites nas questões mais fundamentais: por que o brasileiro é cordial? Por que da confusão entre o público e o privado que revela nosso patrimonialismo. Qual a base que engendra a nossa aversão natural à burocracia que remete a impessoalidade, à norma jurídica abstrata que contrasta com as vicissitudes da realidade – este último fato relacionado com a forma deturpada com que o liberalismo grassou entre nós. Ausente em Sérgio Buarque de Holanda uma análise mais materialista da história capaz de conferir-lhe sentidos que ultrapassem uma interpretação pessoal, ainda que muito bem feita. Ainda assim, além da riqueza de informações, este notável livro de história oferece interpretações pertinentes e de certa forma se soma ao marxista Caio Prado Júnior quando propugna uma revolução que dissipe nossas raízes ibéricas – até então, a respostas dadas pelos homens ilustrados deu-se em torno de sistemas em geral teleológicos e com suposta vocação de aplicabilidade universal, como o nosso positivismo, muito em voga em fins do XIX. Uma colônia agro-exportadora de poucos produtos suscetíveis às variações do mercado europeu, sob o predomínio dos Senhores de Engenho e dos Barões de Café e sob a base do modo de produção escravagista. De opinião semelhante ao de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda:

“Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior, não foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até à Abolição. 1888 representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável”. Pg. 73


[1] Outra edição modificada de “Raízes do Brasil” foi publicada em 1947.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Joseph Stálin – Textos Diversos


Joseph Stálin – Textos Diversos

A imagem pode conter: Paulo Marçaioli, close-up

Resenha Livro – Joseph Stálin – Textos Diversos[1]

“A essência do trotskysmo consiste, antes de mais, na negação da possibilidade de edificar o socialismo na URSS pelas forças da classe operária e do campesinato no nosso país. O que é que isso significa? Significa que se, num futuro próximo, o apoio da revolução mundial vitoriosa não chegar, teremos de capitular diante da burguesia e abrir o caminho à república democrática burguesa. Portanto, temos aí uma negação burguesa da possibilidade de edificar o socialismo no nosso país, negação mascarada por uma frase revolucionária sobre a vitória da revolução mundial”.  Stálin 1930.

No ano passado por ocasião dos 100 anos da Revolução Russa ocorreram diversos debates envolvendo intelectuais, estudantes, trabalhadores e militantes partidários por todo o país.

Há uma certa narrativa sobre a Revolução de Outubro que sintomaticamente teve hegemonia dentre as diversas forças de esquerda no país a partir da derrocada da URSS e com o fortalecimento em nível global do neoliberalismo. Tal narrativa basicamente entende que a Revolução Russa evoluía no sentido do Socialismo até Lênin e seu afastamento por enfermidade da direção do partido para, com Stálin, observar-se um processo contra-revolucionário que resultaria num “estado operário degenerado”. Estamos obviamente nos referindo à narrativa dos trotskystas, havendo alguns que levaram esta delirante versão ao cúmulo do irracionalismo: nos anos 1920 da Rússia Soviética, em plena guerra civil contra as potências imperialistas da entente e seus prepostos capitalistas russos, estaria o poder soviético a caminho de passar por uma restauração capitalista. Indivíduos trotskystas como Tony Cliff e Alex Callinicus[2] advogam que na etapa em que Stálin e seus camaradas dirigiram a URSS houve a consolidação naquele país de um “capitalismo de estado[3]”. Ora para haver capitalismo, deve haver propriedade privada dos meios de produção (o que não era o caso) e luta de classes entre trabalhadores e burguesia (o que pela lógica deveria supor que a URSS saída da revolução de Outubro, trincheira a partir da qual evoluem novas revoluções por todo o mundo, sempre com o apoio decisivo da III Internacional, que esta nação era tão capitalista quanto seus mais encarniçados inimigos). Enquanto alguns trotskystas falam numa burocracia no poder, outros chegam a sugerir que o Partido Comunista e a sua direção transformaram-se numa classe social, e mais, numa classe social burguesa em luta contra os trabalhadores. Trabalhadores russos que na prática seguiram os comunistas sob Lênin e sob Stálin em sua maioria, não só na Rússia, mas no movimento comunista internacional.

Felizmente, em decorrência de fatores que envolvem a própria desmoralização de forças políticas trotskystas nas lutas concretas aqui no Brasil, cada vez mais se observa como a narrativa supracitada ganha menos peso e se constata que Stálin é a solução de continuidade de Lênin. Stálin foi um dirigente político extremamente lúcido e coerente com o leninismo: se Lênin foi o maior dos ortodoxos em face de Marx, ler as intervenções de Stálin é compreender que o mesmo foi o maior dos leninistas ortodoxos.

Tróstky não foi um bolchevique da velha guarda como Stálin que ainda em 1903, junto à fração leninista, já atuava politicamente no Cáucaso, especialmente em ações práticas que envolviam expropriação de bens da burguesia através de assaltos e ações armadas. Stálin é preso em Batum de onde foge e dirige-se a Tíflis em 1904 onde é levado à frente do Comitê do Partido Operário Social Democrata do Cáucaso.

É absurdo dizer que Trótsky seria a solução de continuidade de Lênin quando o primeiro adveio da ala menchevique, polemizou publicamente a vida toda com Lênin, com posições e concepções antagônicas em vários momentos – os dois tinham opiniões distintas sobre a Guerra Imperialista, sobre a questão da Paz com a Alemanha, sobre o papel dos camponeses na luta revolucionária – aliás não só na Rússia mas também na Revolução Chinesa, donde Trótsky subestima a etapa democrático burguesa da Revolução.

Trótsky apenas ingressou no partido bolchevique em Agosto de 1917 e, em que pese ter participado da insurreição de Outubro, intimamente não acreditava na vitória da revolução soviética sem a correspondente vitória dos trabalhadores contra a burguesia nos países adiantados do ocidente.

Lênin polemizou com Trotsky acerca da questão sindical, sua opinião era diferente do “ex-menchevique” no sentido de que os sindicatos longe de se reduzirem ao tradeunismo e às lutas econômicas, deveriam ser uma “Escola de Comunismo” – por sinal, as greves políticas que estouraram na Rússia na etapa revolucionária de 1905-7 num nível espantoso obrigou o Czar a conceder 4 diferentes Dumas .

A política de boicote a Duma foi defendida tanto por Lênin quanto por Stálin:

“Duas condições são necessárias a uma boa tática social-democrática: a primeira é que não deve estar em contradição com o curso da vida social e a segunda é que deve elevar cada vez mais o espírito revolucionário das massas.

A tática da participação  nas eleições está em contradição com o curso da vida social, uma vez que a vida mina os alicerces da Duma e a participação nas eleições reforça-a e portanto se contrapõe à vida”.  Stálin 1906
De qualquer modo, a narrativa predominante de que Trótsky corresponderia a um caminho justo da revolução e, pior, seria a solução de continuidade de Lênin revela-se como falaciosa diante das atividades do “ex-menchevique” em sua “oposição de esquerda”. Como se sabe a Revolução Russa deu-se em meio a 4 anos de Guerra Mundial e 3 anos de Guerra Civil, com a Intervenção Militar da Entente, guerras com a Finlândia e Polônia e a contra revolução interna representada por Anton Ivanovich Denikin que chegou a marchar sobre Moscou e o terrível Kolchak uma espécie de versão russa piorada de Adolf Hitler. Há de se constatar que os revolucionários em pouco tempo tiveram que criar um exército, o exército vermelho, considerando que a revolução envolvia a destruição do aparato-repressivo ideológico do estado capitalista, incluindo a desmobilização do antigo exército – os vermelhos tiveram que lutar começando um exército do zero. A fome assolava as cidades com as ferrovias paradas e o boicote do trigo e a sua especulação pelos proprietários rurais. Neste contexto de guerra civil, quando a unidade dos trabalhadores e a mais sólida disciplina partidária exigiam que o partido se colocasse como verdadeiramente um Estado Maior do proletariado na guerra contra os imperialistas e a reação, nesta conjuntura, Trótsky, em 1923, lança carta pública denunciando o CC do partido e dizendo que a direção proletária levaria o país à ruína – uma intervenção no mínimo ultra-divisionista.
Em 7 de Novembro quando do aniversário da Revolução Russa os trotskystas ousaram fazer uma manifestação contra o poder soviético. Consta que os próprios operários de Moscou desmascararam estes inimigos da revolução e expulsaram-nos literalmente da manifestação. Ainda em 1927 Trótsky e Zinoviev foram expulsos do partido e desde então o “ex-menchevique” desenvolveu atividades anti-soviéticas em Rússia e no exterior. Seus correligionários discutiram com a Alemanha e o Japão fascistas a possibilidade de uma guerra contra a URSS o que geraria a restauração capitalista em Rússia e a tomada de poder pela “oposição” – Stálin refere-se aqui a uma mudança qualitativa do trotskysmo de fração interna do movimento operário a um instrumento objetivamente contra-revolucionário, à serviço do imperialismo. Aliás, ainda quando esteve na oposição Trótsky reivindicava a possibilidade da criação das frações no partido, rompendo inteiramente com a essência do modelo leninista de partido que mantém a unidade (sem ser monolítico) baseando sua intervenção na teoria revolucionária de Marx e, importante, na auto-crítica constante.
Poucos dirigentes da história mundial do movimento comunista foram tão caluniados e injuriados como Stálin: a direita e os imperialistas hoje chegam ao ponto de equipararem-no à Hitler quando se sabe que foi o exército vermelho “estalinista” que destruiu militarmente o nazi-fascismo granjeando a URSS após a II Guerra Mundial o respeito e a admiração de proletários no mundo inteiro, colocando o capitalismo numa crise em que se viu obrigado a construir o Estado de Bem Estar Social – concessões para impedir novas Revoluções de Outubro.
Em que pese haver claramente uma nova tendência de resgatar e reivindicar corretamente Stálin como patrimônio de grandes homens que deram contribuição decisiva ao socialismo, ainda grassa entre nós as narrativas falaciosas dos grupos trotskystas. Iniciativas como a legalização do PCR (partido que reivindica Stálin) e a publicação das obras completas de Stálin pela editora Nova Cultura são dois indicativos de mudanças.
Ler as intervenções de Stálin significa quebrar mitos, ressignificar o desenvolvimento da Revolução Russa, compreender tanto a importância do vasto desenvolvimento industrial e militar da URSS quanto a relação entre as vitórias do socialismo sob Stálin e a concepção do socialismo num só país que é o verdadeiro internacionalismo leninista contra o “internacionalista” Trótsky. O internacionalismo de Trótsky era o resultado da sua não convicção na possibilidade de um país como Rússia avançar em direção ao socialismo sem o socorro do movimento internacional – e assim os trabalhadores não deveriam lutar e caminhar em direção ao socialismo, inclusive como norte ou trilha a ser caminhada nas frentes de trabalho e de batalha.
O Trotskysmo envolve práticas políticas como a calúnia dos adversários e uma concepção “moral” ou “teológica” do marxismo, extremamente vulgar, com ideias nada originais (como a concepção de “revolução permanente”[4] que se chocou com as 3 etapas distintas da Revolução em China, ou mesmo com a experiência de fevereiro e outubro em Russa).
É preciso avançar no trabalho de esclarecimento acerca da: (i) história da Revolução Russa e os seus desdobramentos ao longo do século XX; (ii) a prática objetiva política de Trótsky o que não se confunde com os seus pronunciamentos; (iii) um estudo acurado de Stálin, de seus textos, especialmente sobre a Questão Nacional, que oferecem ideias originais e se desdobram até em artigo sobre linguística[5]; (iv) e finalmente a conclusão inevitável que é a rejeição total de Trotsky e do trotskysmos nas suas mais variadas vertentes.   
        




[1] Textos Lidos: “Como a Social-Democracia considera a Questão Nacional?” 1904; “A Duma de Estado e a Tática da Social Democracia” 1906; “Marx e Engels Sobre a Insurreição” 1906; “A Luta de Classes” 1906; “Fortalece-se a Reação” – 1905; “Anarquismo ou Socialismo” 1907; “A RADA Ucraniana” 1917; “A Independência da Finlândia” 1917; “Carta a V. I. Lênin” 1918; “Relatório a V I Lênin” 1919; “A Frente de Petrogrado” 1919. “O Novo Ataque da Entente Contra a Rússia” 1920. “Três anos de Ditadura do proletariado” 1920.  "Sobre o Marxismo na Linguística" 1950
[2] Ligado ao partido SWP (Socialist Workers Party) britânico, uma espécie de PSOL inglês.
[3] Talvez os defensores desta tese nunca pararam para refletir que o Estado é capitalista, o Direito é especificamente capitalista e que não existe “capitalismo” sem “estado”.
[4] O conceito é de Marx e Trótsky o deturpa em benefício de sua política vacilante.
[5] Aqui se quebra outro mito: o de que Stálin era despreparado teoricamente em face do cosmopolita e intelectual Trótsky, o camponês dominava o marxismo-leninismo de forma invulgar.

sábado, 2 de junho de 2018

Resenha – Textos Diversos[1] – V. Lênin


Resenha – Textos Diversos[1] – V. Lênin



“Sou obrigado apresentar o pedido de demissão do CC, o que faço, mas reservando a mim a liberdade de agitação nas bases do partido e no Congresso do partido.

Porque estou profundamente convencido de que se “esperarmos” pelo Congresso dos Sovietes e deixarmos passar agora o momento, deixaremos a perder a revolução”. Lênin Set. 1917. 

A noção de que a política é uma interface da guerra pode ser extraída de diversas fontes[2] e definitivamente denota o legado teórico prático do dirigente da Revolução Russa Vladimir Ilich Lênin.

A passagem acima supracitada refere-se ao texto “A Crise Amadureceu” de 29 de Setembro de 1917 em momento decisivo na história em que os bolcheviques se colocam na possibilidade  imediata de tomar o poder político sob pena de perder uma única chance na história. A situação na Rússia naqueles meses era caótica com o governo republicano de Kerensnky em meio de uma intensa crise política especialmente em face da esmagadora maioria dos camponeses. A diferença aqui é que apenas os Bolcheviques apontavam a política correta para a questão camponesa que envolvia o fim imediato da Guerra, a saída do país do conflito imperialista enquanto no começo centenas e depois milhares de caixões voltavam com os filhos dos camponeses alistados mortos – e os reformistas reiteravam que o importante era a luta pelo território e não pela vida de milhares de soldados. A terra não havia sido distribuída como prometido e sob o governo revolucionário nada sequer havia sido feito para suprimir as relações de servidão no campo.

Outro dado importante é a consideração, conforme as análises de Marx, de que a insurreição é uma arte de modo que dias, semanas e meses valem anos sendo contra-revolucionárias as vacilações que puseram empecilhos à tomada do poder conquanto toda a sociedade, com os camponeses, rompiam com os mencheviques e socialistas revolucionários. Outro ponto de vista advogado por Trotsky era de que a revolução deveria esperar o Congresso dos Sovietes que teria a incumbência (ilegítima segundo Lênin) de “entregar o poder” aos bolcheviques. Por razões militares tal espera seria inviável com a perspectiva de tropas cossacas desfazerem qualquer movimentação com uma revolução fixada temporalmente. Lênin chama a posição de Trotsky de idiotice ou completa traição:

“Esperar pelo congresso dos Soviets é uma completa idiotice, pois isso significa deixar passar semanas, e as semanas e mesmo os dias agora decidem tudo. Isso significa renunciar cobardemente à tomada de poder, pois 1-2 de Novembro ela será impossível (tanto política como tecnicamente: concentrarão os cossacos para o dia da insurreição fixada estupidamente)”.

Abrir mão do elemento surpresa da insurreição quando as condições objetivas pavimentam a tomada do poder – este era o fundo do debate

Alguns desavisados ou pouco experientes acreditam ter sido Trótsky a solução de continuidade do leninismo. Nada mais falso e dado que precisa ser desmistificado com a leitura dos textos originais do próprio Lênin.

Trótsky apenas ingressou no partido bolchevique em meados de 1917 quando a rigor o movimento revolucionário russo inicia-se com o 1905-07.

E mesmo quando esteve Trótsky à frente de órgãos dirigentes como delegado da conferência de Brest-Litovsk[3]: uma acirrada crítica leninista.

Trótsky lançou mais uma de suas palavras de ordem confusa de “nem guerra, nem paz”, se opondo à orientação leninista.

“Durante as conversações com o comando alemão, Trótsky violou conscientemente as instruções de Lênin e do comitê central, recusando-se à conclusão imediata da paz, o que acarretou para a república dos soviets condições de paz ainda mais desvantajosas. “

Durante a Guerra Trótsky tem uma posição vacilante. Enquanto o internacionalismo leninista era bastante enfático quanto à luta do proletariado dos respectivos países contra a sua própria burguesia mesmo implicando na derrota militar, havia setores que buscavam conciliar o inconciliável, a luta contra a guerra e a não derrota no conflito.

É interessante que esta fórmula confusa do “nem...nem” já pode ser motivo de anedota para quem analisa as posições, especialmente diante do problema internacional, de algumas organizações trotskystas. A Política do PSTU na Síria assim se revela, contra Assad e contra supostamente o campo imperialista norte-americano mas, ainda assim, reivindicando armas do imperialismo para derrubar o governo nacionalista de um país periférico atacado pelo mesmo imperialismo. A neutralidade em política costuma ser ilusória e favorece o mais forte em litígio. 

Em contrapartida, em Lênin não há vacilações mas uma linha orientada e bem traçada pelo marxismo ortodoxo. Por ser um ortodoxo, conhecer a teoria revolucionária e ter uma atividade prática, Lênin soube prever o desenvolvimento da revolução russa no sentido da vitória.   



[1] Textos Lidos: “Carta a um Camarada” (1902); “O Começo da Revolução Russa” (1905); “Do Artigo: a Greve e a Luta de Rua em Moscou” (1905); “Os Destinos Históricos da Doutrina da Karl Marx” (1913); “Os Armamentos e o Capitalismo” (1913); “V Congresso Internacional de Luta Contra a Prostituição” (1913); “O Direito ao Divórcio” (1916); “Resolução Sobre a Guerra” (1917); “A Crise Amadureceu” (1917); “Sobre os Sindicatos, o Momento Atual e os Erros de Trótsky” (1920)
[2] Talvez a mais conhecida delas, em Maquiavel.
[3] Paz com setor imperialista da Guerra dirigido pelos alemães. A situação extremamente defensiva dos russos naquele momento pode sugerir que tal negociação equivaleria à coação mediante arma de fogo a um indivíduo desarmado e incapaz de reagir objetivamente. O indivíduo é obrigado a entregar o que tem. Esta paz vergonhosa foi revertida pela URSS posteriormente.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Direito do Trabalho Esquematizado – Carla Teresa Martins Romar - Parte I


Direito do Trabalho Esquematizado – Carla Teresa Martins Romar  - Parte I



Resenha Livro – Direito do Trabalho Esquematizado – Ed. Saraiva – Coordenação Pedro Lenza

1-      Primeira Consideração Preliminar
               
                
Não é difícil supor que um curso tradicional como o de Direito, disciplina mais antiga a ser ministrada em nível superior no Brasil[1], igualmente tende a ser de certa forma conservador quanto aos métodos ou mesmo finalidades de estudo. O que gostaríamos de salientar em primeiro lugar é que esta série de “Direito Esquematizado”  talvez não seja o primeiro livro a ser suscitado por um professor de Direito do Trabalho num estabelecimento de ensino superior. Em particular nas unidades de ensino públicas onde não raro a vaidade se espraia ao nível intelectual.  

O que os demais ramos do conhecimento costumam se referir como teoria ou metodologia[2] , os juristas tratam sintomaticamente pelo nome de “doutrina”. A doutrina, ao lado da jurisprudência e dos costumes, são fontes do direito e corresponde à análise hermenêutica (interpretativa) das normas, dos princípios e demais informações concernentes a dado ramo do Direito. No Direito do Trabalho a doutrina mais autorizada (no sentido de mais prestigiada nas salas de aula ou como causas de pedir de reclamações trabalhistas, contestações, recursos ordinários, etc) envolvem 3 ou 4 autores. Maurício Delgado Godinho, Alice Monteiro de Barros e Amauri Mascaro do Nascimento são os mais lembrados. Tal fenômeno curioso revela tradicionalismo, conservadorismo e uma tendência que poderíamos considerar mesmo da literatura brasileira encarada de forma genérica que envolve a consolidação de poucos notáveis a quem a deferência eventualmente se mistura com a mediocridade intelectual geral, com a falta de ideias novas e com a mera repetição de ideias acerca de conceitos, princípios e normas – um vício da nossa literatura tão bem retratado por Lima Barreto em seus romances, com o discurso rebarbativo dos bachareis, prosa ociosa, repetitiva, eivado de obviedades e não raro de mera ode aos poderosos.

Em suma, seria pouco provável que em escolas de Direito tradicionais os cursos do “Esquematizado” sejam indicados como bibliografia de curso. Ocorre que tais livros primam pelo aspecto didático, tem uma função primordial de preparar bacharéis para as provas da OAB ou concursos públicos, além de fazerem um tratamento integral da disciplina jurídica. Sua leitura não depende de um curso de direito concluído ou em andamento pelo leitor. Um trabalhador pode e deve ler capítulos deste livro. E aqui entramos na....

Segunda Consideração Preliminar

Direito é uma palavra polissêmica e podendo significar distintas coisas, a forma como abordamos o Direito pode revelar uma concepção mais geral sobre seu objeto ou sua finalidade, sua conformação histórica e os vínculos entre a evolução das relações humanas – por exemplo da transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil com as correspondentes transformações jurídicas na medida em que o escravo até então não é um sujeito de direito, mas mera res, havendo quando muito previsões no âmbito do direito penal (punição) na seara trabalhista.

No curso do Direito fala-se em matérias dogmáticas e matérias zetéticas. As disciplinas dogmáticas envolvem mais diretamente o chamado direito posto, o estudo das normas jurídicos em vigor dentro de cada ramo do Direito, com seus respectivos princípios, regras de interpretação, e em alguns casos, sistemas processuais (e aqui se fala em direito material do trabalho e direito processual do trabalho). Em geral as disciplinas dogmáticas são mais prestigiadas nos cursos, são em essência o conteúdo da prova para ingresso nos quadros da OAB e concursos, que não raro cobram dos candidatos a memorização do texto da lei. Todavia, são as matérias zetéticas como a Introdução ao Estudo do Direito, a Filosofia do Direito ou a Sociologia do Direto aquelas destinadas à compreensão mais global do fenômeno jurídico – aqui não reduzido ao Direito Positivo, mas a diferentes concepções divididas pelo jurista Alysson Leandro Mascaro em três grandes tendências da filosofia do direito contemporâneo: (i) as correntes juspositivistas; (ii) as correntes decorrentes da teoria crítica que em filosofia tem como origem a crítica da economia política de Marx; (iii) uma categoria residual de filosofias de direito não juspositivistas como o decisionismo jurídico de Schmitt (confirmado em sede recursal no âmbito da Lava Jato quando um desembargador do Tribunal Federal do Paraná afirmou que a excepcionalidade da operação autorizaria as ilegalidades cometidas por Moro)  e a crítica das múltiplas formas de poder e controle que submetem grupos estigmatizados em Foucault.

A corrente juspositivista tem a sua hegemonia, sendo corrente dentre o jurista médio a noção de que a prática concreta do jurista não envolve a ponderação acerca do justo ou do não justo em dada situação com as suas especificidades. Aliás, tal concepção do Direito, aplicado ao caso concreto, não como uma técnica, mas como uma Arte, é muito próximo da noção de  Diké da Grécia Antiga. Diké significa concomitantemente norma jurídica emanada do poder político votado pelos cidadãos e a própria noção de justo. Foi a partir de Sócrates que o direito deixa de ser um argumento manipulado pelos sofistas, uma narrativa que se impõe pela retórica e pelo poder de persuasão e passa a ser uma espécie de verdade a ser perquirida pela razão.

Mas, desde Marx e particularmente Pachukanis, temos que o Direito tal como conhecemos é um fenômeno moderno, especificamente capitalista, havendo uma relação de múltiplas determinações entre ambos, Direito e Capitalismo. E o juspositivismo que é a maior expressão dessa especificidade do Direito seria um conjunto de conhecimentos sob o qual não se espraiam outros saberes como a história, a sociologia ou mesmo a linguagem: Hans Kelsen, principal expoente do juspositivismo, fala em ciência pura do Direito reforçando um certo senso comum segundo o qual o Direito é um conhecimento especializado das normas jurídicas em vigor, regras igualmente jurídicas (pré-determinadas) de interpretação, princípios consolidados  - ao jurista não consta cogitar acerca do justo mas da aplicação da norma certa em cada caso concreto. A jurisprudência, as decisões dos tribunais vão assumindo um caráter também normativo através de súmulas vinculantes e novas figuras processuais como Incidente de Assunção de Competência (Art. 947 CPC)[3], o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (976 CPC) além da previsão do recurso de Reclamação quando há violação da competência e das decisões vinculantes dos tribunais superiores– são institutos que por um lado buscam a segurança jurídica, a isonomia e ausência de decisões conflitantes dentre os tribunais, além de maior celeridade processual quando causas repetitivas passam a ser julgadas sumariamente conforme a orientação jurisprudencial decidida. Por outro lado, a jurisprudência vinculante se desdobra na prática na conformação de novas normas jurídicas, por sinal emanadas não pelo poder legislativo, mas através da atividade legiferante ampliada do Poder Judiciário.

Quanto ao Juspositivismo, preleciona Alysson Mascaro

“O juspositivismo, em termos quantitativos, é aquele que mais alcança a prática do jurista e do teórico do direito contemporâneo. A maioria dos profissionais do direito, pela limitação teórica, pela prática e pelas estruturas  institucionais do direito contemporâneo, exerce um ofício cujo pensamento é adstrito às normas do Estado”.

Há por detrás desta vertente dominante uma noção – denunciada por Lênin ao seu tempo – de que o Estado (e o Direito) pairam sobre a sociedade com seus conflitos, e, com os olhos vendados (Deusa Romana Justitia) a representar uma neutralidade impossível. Incide o Direito sobre os conflitos intersubjetivos por um lado promovendo a pacificação social e por outro lado conseguindo a “justiça” que se confunde com o direito positivo.

Lênin em diversos artigos e em seu importante trabalho “Estado e Revolução” revela como esta noção ideológica de um Estado que paira sobre a luta de classes como um instrumento de mediação dos conflitos garantindo ordem, segurança e previsibilidade nas relações pessoais, obrigacionais, contratuais, etc.; tal percepção envolverá as ilusões dos reformistas quanto ao papel do estado, que é, acima de tudo, um instrumento de dominação de uma classe pela outra e não um órgão de mediação neutro perante as classes e frações de classes em luta.  (Percepção ideológica que informa a prática política dos reformistas. Uma das consequências históricas foi o apoio dos partidos de esquerda às suas respectivas burguesias nacionais no âmbito da I Guerra Mundial, contra a posição bolchevique). 

Talvez a leitura do rol de direitos positivados em sede constitucional e particularmente os artigos 5º e 7º da CF/88 com direitos respectivamente de cidadania e dos trabalhadores gerem alguma dúvida quanto à concepção leninista. Ocorre em primeiro lugar que os direitos positivados na nossa constituição são fruto de uma evolução histórica donde houve lutas. A origem do Direito são as lutas de classes, as pressões sociais por mudanças e o Direito é a expressão de um liame necessário para a reprodução e ampliação das relações capitalistas, inclusive quanto às normas protetivas.


“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.”PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.

                


O Direito do Trabalho tem como um dos seus preceitos basilares o princípio da proteção. Em sede jurídica reconhece-se uma relação de desnivelamento entre empregado e empregador – detentor dos meios de produção e sujeito de direito que vende sua força de trabalho se ungem através de um liame até então não possível em modos de produção pretéritos.

Tal situação de gritante desigualdade existia nos albores da Revolução Industrial em Inglaterra ao menos até fins de séc. XIX com o maciço trabalho infantil e feminino, sob condições insalubres e jornadas de 12 horas de trabalho[4].  Foram greves, paralizações e eventos históricos de grande envergadura como a Revolução Mexicana (que criou uma das primeiras constituições sociais do mundo) e principalmente a Revolução Russa que tiveram o condão de criar princípios e regras protetivas.  Assim diz Carla Romar:

“A concepção protecionista adotada pelo Direito do Trabalho remonta à própria formação histórica deste ramo do Direito e tem como fundamento a constatação de que a liberdade contratual assegurada aos particulares não poderia prevalecer em situações nas quais se revelasse uma desigualdade econômica entre as partes contratantes, pois isso significaria, sem dúvida nenhuma, a exploração do mais fraco pelo mais forte”.

Outrossim e de acordo com esta segunda preliminar, é de se destacar que a concepção crítica do Direito tem seguido estudos exaustivos acerca da filosofia do Direito, dos problemas zetéticos desta disciplina ou “ciência”, sem adentrar no mérito dos problemas dogmáticos sob pena de: (i) perder a oportunidade de prestar esclarecimento à classe trabalhadora acerca dos seus direitos positivados e principalmente dos fatos de que tais direitos são fruto de lutas no passado e estão sendo neste momento retirados; (ii) disputar a consciência e os discursos que envolvem a reforma trabalhista, que prometia em meados de 2017 uma diminuição do desemprego em face da diminuição do passivo trabalhista das empresas enquanto o desemprego desde então aumentou.

As regras de proteção ao trabalhador estão sendo suprimidas por algumas alterações substanciais do Direito do Trabalho, em prejuízo do trabalhador, como as jornadas 12x36, a ampliação das possibilidades de terceirização (agora nas atividades meio e fim da tomadora de serviços) e a prevalência do negociado sobre o legislado em situações menos benéficas ao trabalhador.

Outro fato é que as normas trabalhistas a começar pelas composições extrajudiciais entre empregadores e empregados  (Acordo Coletivo de Trabalho e Convenção Coletiva de Trabalho) são por natureza negociadas, não se podendo dispor contratualmente de normas de proteção, saúde e segurança do trabalho[5]. A Reforma Trabalhista (lei 13.467/17) e MP (808/17) não foram negociadas entre patrões e trabalhadores, bem como discutidas com a sociedade, mas como mais um ataque dos patrões em meio a um golpe de estado em curso com o objetivo de aniquilar a economia nacional, privatizar as riquezas do país e submeter o Brasil às principais potencias imperialistas. 

Não é  difícil de imaginar qual o resultado desta Reforma Trabalhista. Envolve retrocessos que ainda não são possíveis de serem aferidos a depender de como os tribunais irão lidar com as mudanças, bem como de questionamento da constitucionalidade de artigos da reforma a serem julgadas no STF. Cada um destes problemas deve ser objeto de intervenção dos marxistas-leninistas sem embargo à crítica política do Direito como um todo. 

A intervenção dos comunistas no que se refere ao problema do Direito vai além da crítica da economia política em Marx com o seu paralelo a partir da “Teoria Geral do Direito e do Marxismo” de Pachukanis, uma obra de qualquer forma notável ao descrever como o Direito, antes de uma superestrutura, reside no próprio DNA do modo de produção capitalista, conferindo a partir deste modo de produção sua especificidade histórica.

A crítica ao juspositivismo dá-se por esta perspectiva reduzir o Direito a uma ordem escalonada de normas jurídicas em vigor, tendo por topo a Constituição Federal e como pressuposto uma norma hipotética fundamental. É necessário também disputar os rumos do direito positivo, levando em consideração uma luta contra-hegemônica que envolve uma disputa política envolvendo direitos, cada um deles conquistados com suor e sangue. Este estudo dogmático do direito serve de esteio para o esclarecimento autônomo do próprio trabalhador, de modo a revelar as contradições do próprio estado capitalista sem embargo de ações judiciais mesmo em litígios individuais quando não observados os direitos que ainda restam aos empregados e demais espécies de trabalhadores (avulsos, domésticos, temporários, etc.).

Esta parte I da Resenha serve como justificativa para os estudos do Direito do Trabalho desde uma orientação e propósito marxista-leninista levando em consideração não apenas a filosofia do Direito mas o Direito material e processual. Nas próximas partes deste Trabalho abordaremos alguns institutos, normas jurídicas, princípios bem como as discussões nos tribunais sobre temas como Contrato de Trabalho, Relação de Trabalho e especificamente Relação de Emprego, Direito Internacional do Trabalho, Direito Coletivo do Trabalho, e outros.  

Para esta resenha foram lidas das páginas 1 - 633 do presente livro. 




[1] Escolas de Direito de Recife e de São Paulo fundadas em 11 de Agosto de 1826
[2] Como nos cursos de História quando da reflexão sobre o próprio saber do passado, há a filosofia da história, a metodologia da história e a teoria da história.
[3] Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos.

§ 1º Ocorrendo a hipótese de assunção de competência, o relator proporá, de ofício ou a requerimento da parte, do Ministério Público ou da Defensoria Pública, que seja o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar.

§ 2º O órgão colegiado julgará o recurso, a remessa necessária ou o processo de competência originária se reconhecer interesse público na assunção de competência.

§ 3º O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese.

§ 4º Aplica-se o disposto neste artigo quando ocorrer relevante questão de direito a respeito do qual seja conveniente a prevenção ou a composição de divergência entre câmaras ou turmas do tribunal.
[4] O atual ordenamento jurídico permite a jornada em escala de 12 por 36 horas. 12 horas de trabalho e 36 horas de descanso ininterruptos.
[5] É nula cláusula de Instrumento Coletivo que suprime o uso obrigatório de Equipamento de Proteção Individual.  

sexta-feira, 6 de abril de 2018

“História da Literatura Brasileira” – José Veríssimo


“História da Literatura Brasileira” – José Veríssimo



Resenha Livro - “História da Literatura Brasileira” – José Veríssimo – Iba Mendes – Projeto Livro Livre.
               
                
José Veríssimo foi dos maiores críticos literários da história das ideias do Brasil, ao lado de Sílvio Romero e Antônio Cândido. Revela-o o fato desta História da Literatura ter sido publicada após 25 anos de estudos específicos do autor acerca do desenvolvimento das letras em Brasil e sua principal fonte de inspiração, Portugal e França. A partir da era colonial, o classicismo e arcadismo portugueses, o romantismo nativista, o naturalismo e parnasianismo decorrente do influxo de ideias francesas na literatura nacional.
                
Esta História da Literatura foi escrita em 1915 e lançada ao público um ano depois. Poucos anos antes, portanto, da Semana de Arte de 1922. Trata-se esta última de advento de uma arte não só nacional na temática indígena, da exuberância dos aspectos mais exteriores da realidade nacional (as florestas, os mares, os animais silvestres, etc.), mas de um movimento de artistas incumbidos de produzir uma arte sem se servir das fontes formais estrangeiras. Arte em que forma e conteúdo reproduzem de diversas formas os traços particulares do brasileiro: é o Macunaíma de Mário de Andrade, um herói preguiçoso e sem caráter, que é concomitantemente índio, negro e branco; são os poemas provocativos de forma livre de O. de Andrade; são os retratos de tipos populares como trabalhadores de lavoura de Café de Portinari (1935) e Operários (1933) de Tarsila do Amaral; são os ensaios históricos de Paulo Prado acerca do Brasil e sua infinita tristeza.
               
Se por um lado nesta História da Literatura as propostas de classificação das obras literárias podem ser hoje questionadas, considerando-se o desenvolvimento ulterior da literatura brasileira, este trabalho de José Veríssimo permanece sendo importante fonte de informações e crítica da literatura brasileira, particularmente na etapa colonial. Em que pese Veríssimo revelar no prefácio uma concepção mais restrita do sentido de literatura, uma “arte literária” ou “o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição”, nesta obra contempla-se formas de expressão mais amplas. Considerando que o grosso das manifestações culturais no Brasil, especialmente na fase colonial, corresponde a versejadores, teatros instrutivos realizados pelos jesuítas para a catequização dos índios, sermões, além de uma cultura oral que muitas vezes deixou poucos resquícios em documentos expressos[1], seria difícil ao menos naquele tempo restringir o campo de análise com uma redução da literatura à prosa e verso.
                
Veríssimo divide a literatura brasileira em duas grandes etapas: a Etapa Colonial cuja primeira manifestação data de 1601 com Bento Teixeira (PE) e seu “Prosopopéia”. Um período em transição, que engloba o Barroco, ainda inserto na etapa colonial, mas com uma crescente orientação nacionalista das manifestações literária, um ufanismo incipiente que datam das descobertas das jazidas de ouro e da luta nacional pela expulsão dos holandeses (1624-59). E  finalmente a etapa Nacional da Literatura com o Romantismo indianista de Gonçalves Dias na poesia e José de Alencar no romance e posteriormente com a etapa que Veríssimo classifica de Moderna e que se diferenciará a partir de um esboço de uma percepção mais crítica da sociedade com a influência externa de Comte, Taine e Renan, bem como fatos históricos a partir de 1870 que engendram novas preocupações na sociedade como o republicanismo, o problema da abolição da escravidão, o fim da guerra do Paraguai e a questão religiosa opondo Igreja, o Império e Maçonaria, tendências a maiores liberdades espirituais e maior espírito crítico, bem como apontando maiores manifestações literárias de cunho político partidário do qual Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Eduardo Prado e Rui Barbosa são os mais importantes exemplos.

De todo este trabalho vasto de resgate de produções não apenas literárias, envolvendo a prosa, a poesia e o teatro, mas das manifestações culturais que especialmente na etapa colonial aparecem sobre a forma de histórias descritivas do Brasil,  tal retrato de nossa história da literatura elucida aspectos importantes da evolução histórica do Brasil. Pode-se constatar uma linha de continuidade com a importação de modelos literários portugueses, considerando-se o baixíssimo nível cultural dos colonos e inicialmente o restrito acesso à alfabetização através de Colégios Jesuítas. Nossa primeira Academia Literária data de 1720 mas inicialmente tais arcádias tem nulo papel cultural. Diante da proibição da imprensa e dos jornais no Brasil Colônia, as obras eram copiadas à mão. Muito da poesia, da música ou dos cantos eram nada mais do que odes ou formas mais vulgares de bajulação aos poderosos donos de terra que na prática protegiam como mecenas os poetadores. Até o aparecimento de  Gonçalves Dias, estes versadores produziam obras de discutível valor, com uma ou outra exceção. Mas aqui importa anotar a possibilidade de acesso direto às fontes de autores como um Gabriel Soares, Antonil e Frei Vicente do Salvador (que inaugura a prosa literária brasileira com uma história do Brasil hoje vista como ingênua) até as manifestações escritas de um Padre Vieira ou do também conhecido Gregório de Matos, este último reconhecido do público por sua verve burlesca e satírica e, ao que consta, pessoa que vivia pessoalmente a vida boêmia e desregrada que cantava em seus versos.

Já foi dito que a literatura é o retrato da sociedade. Concluímos esta resenha com uma descrição em detalhes de fato relatado pelo nosso primeiro prosador e, se quisermos, historiador, Frei Vicente do Salvador, de modo a ilustrar como os estudos literários são meio privilegiado para o conhecimento da história nacional.  

“Saindo o padre Francisco Pinto de sua tenda onde estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor e benevolência os quisesse quietar, e os seus poucos índios com flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça que lha quebraram e deixaram morto. O mesmo quiseram fazer ao padre Luís Figueira, que não estava longe do Companheiro, mas um moço de sua companhia, sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: “Padre, padre, guarda a vida” e o padre se meteu às pressas em um bosques (...)”. FREI VICENTE DO SALVADOR       


[1] A imprensa no Brasil data de 1808 com a vinda (ou fuga) da Família Real ao país.