quarta-feira, 7 de junho de 2017

“Anistia Penal: problemas de Validade de Anistia Brasileira (Lei 6683/79)" – Lauro Joppert Swensson Júnior

“Anistia Penal: problemas de Validade de Anistia Brasileira (Lei 6683/79) – Lauro Joppert Swensson Júnior



Resenha Livro - “Anistia Penal: problemas de Validade de Anistia Brasileira (Lei 6683/79) – Lauro Joppert Swensson Júnior – Juruá Editora – Curitiba - 2008

Lauro Joppert S. Júnior é Bacharel em Direito pela USP, com doutorado realizado em Universidade Alemã. Nesta publicação datada de 2008 traça uma análise do problema de validade da Lei de Anistia Brasileira (Lei 6683/79), tema bastante controvertido e que suscita questões dentro do Direito envolvendo Anistia Penal, Justiça de Transição, Direito Internacional Penal (algo pouco desenvolvido na pesquisa, o que certamente poderia modificar as conclusões da tese) e Teoria Geral do Direito e da Norma Jurídica.

E mais. A Lei da Anistia deve ser situada em seus termos históricos e políticos, como parte de um momento da chamada “lenta, gradual e segura” abertura do regime militar que se desenvolve em fins de 1970, concomitante à entrada em cena dos movimentos sociais e populares, a partir da comoção social engendrada com as mortes de Wladimir Herzog (Outubro de 1975), do metalúrgico Manuel F. Filho (Janeiro de 1976); além da própria articulação em nível nacional e internacional da campanha pela anistia com a Criação do Movimento Feminino Pela Anistia (1975); criação de comitês internacionais pró-anistia em Portugal, França e Suécia; chamados de dias de luta e manifestação, lançamento de jornais e panfletagens por todo país em torno da defesa dos direitos humanos, do fim do estado de exceção e da anistia dos presos e perseguidos políticos.

Tais eventos culminam em 1977 na criação no Rio de Janeiro do Comitê Brasileiro Pela Anistia, com adesão da ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL e CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Mas certamente o que feriria de morte a ditadura militar seriam o fim do ciclo de crescimento econômico (“milagre econômico”) e a entrada em cena política da classe trabalhadora com as greves no ABC Paulista nos últimos anos de 1970.  

A Lei de Anistia é resultado contraditório de movimento social por anistia ampla, geral e irrestrita.  Houve propósito de albergar crimes graves perpetrados por agentes estatais: ocorre que certos graus de violação de direitos fundamentais são indeléveis e não deveriam ser objeto de acordos políticos. Ademais, a Lei de Anistia provém de um regime de força e é aprovada após a eleição de Senadores Biônicos no início do mandato de João Batista Figueiredo. Qual é o grau de legitimidade do Congresso Nacional e do presidente para promulgar uma auto-anistia, ou seja, anistia concedida pelo próprio regime ditatorial em seu benefício, de molde a não permitir a punição de agentes estatais?

A Lei de Anistia Brasileira foi uma iniciativa de lei[1] do presidente João Batista F. que inicialmente excluía da anistia penal “agentes de crimes políticos”, em sentido contrário portanto aos movimentos de rua. Após 305 emendas e 9 substitutivos foi aprovado pelo Congresso Nacional o projeto de lei substitutivo, concedendo anistia: (a) a todas as pessoas que cometeram crimes políticos, crimes conexos aos crimes políticos e crimes eleitoras; (b) todas as pessoas punidas com base em todos os atos institucionais e complementares. 

O §2º do art. 1º da Lei de Anistia excetua da clemência estatal os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Como nenhum agente estatal até então sofrera qualquer processo ou condenação por sequestro, tortura ou assassinato, obviamente, o §2º dirige-se exclusivamente aos cidadãos que pegaram em armas contra o regime militar e que receberam condenação.

Pode-se dizer que os pressupostos teórico-metodológicos do professor Lauro Júnior em sua análise de validade da Lei de Anistia penal aproximam-no do positivismo jurídico. Não à toa são bastante reiterados autores como Noberto Bobbio e Hans Kelsen. Quando nas passagens decisivas da obra em que busca responder se a lei 6683/79 tem validade jurídica sente-se provocado a fazer cogitações sobre o que é direito e quais são os seus critérios de validade. Resgata a noção tridimensional do Direito de Miguel Reale (e outros) segundo a qual uma norma deve ser idealmente (i) juridicamente válida quando é criada segundo as regras do processo legislativo na constituição, formalmente válida; (ii) socialmente válida quando a norma é eficaz, ou produz os efeitos esperados observando sua plena vigência; (iii) axiologicamente válida quando afere-se a justiça da norma.

Consoante a tradição típica do positivismo jurídico que costuma colocar um sinal de igual entre direito e norma jurídica, o autor considera como direito o que é juridicamente válido. E só. No caso em comento o autor reconhece que o caso Brasileiro de auto-anistia é axiologicamente injusto ou ilegítimo, fato que não teria o condão de afastar a validade formal da lei de anistia brasileira. Será?

Partimos não do ponto de vista do positivismo jurídico, mas da tradição crítica, que dentro da filosofia e do direito tem como ponto de partida a contribuição da crítica da economia política e seus desdobramentos no âmbito do estado e do direito (forma jurídica e forma política) do velho Marx. Desde aqui, alertamos que os raciocínios estritamente jurídicos não presidem ou não devem ter primazia como chave explicativa da realidade e mais no que se refere à oportunidade ou necessidade da punição dos agentes estatais envolvidos em crimes como torturas, estupros, assassinatos, sequestros e demais práticas odiosas nos porões da ditadura. Mesmo argumentos estritamente jurídicos aqui são suficientes para demover o posicionamento formalista e os raciocínios lógico-formais que fazem com que o autor chegue a conclusões como:

“Pelo fato de a anistia revogar a norma de sanção, se o Estado decide pela punição dos agentes da repressão, eliminando a validade da Lei de Anistia que proíbe o Estado de aplicar a sanção contra aquelas pessoas anistiadas, ele acaba violando um dos princípios fundamentais do Estado de Direito ( o princípio da legalidade) e afetando a segurança jurídica”.

Como falar acerca de Estado de Direito e Princípio da legalidade sob um regime em que nem o direito elementar dos advogados assistirem presos pessoalmente, especialmente após o AI-5 foi respeitado? Em outros termos, só faz sentido falar em princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito e não numa Ditadura Militar, num estado de exceção, duas formas políticas bastante distintas e amplamente reconhecidas em seus traços distintos. O autor fala aqui em prescrição dos crimes, na exclusão da antijuridicidade afastando o crime pela excludente de estrito cumprimento de dever legal ou o princípio de que lei penal posterior não retroage quando é atua em prejuízo do réu de molde a afastar tratados de direitos humanos ratificados pelo país após 1979 e aplicação de artigo da Constituição de 1988 que define tortura como crime inafiançável. 

Ademais, não é razoável pretender que os agentes públicos que participaram do cometimento de graves violações de direitos fundamentais não tivessem consciência do caráter ilícito de suas condutas. Mesmo o princípio da legalidade ou da irretroatividade da lei penal agravante são princípios e na técnica jurídica comum não têm a mesma aplicação de regras jurídicas (tudo ou nada) mas devem ser sopesados com demais princípios, prevalecendo dignidade humana, direito à memória, à verdade e ao luto. 

Suscitamos aqui o interessante trabalho “Os Advogados e a Ditadura de 1964: A defesa dos perseguidos políticos no Brasil”, uma séria compilação da atuação de advogados durante a ditadura militar e a descrição dos crimes cometidos nos porões: arrancamento  de unhas, estupros, eventualmente humilhações sexuais na frente de companheiros ou cônjuges, choques elétricos e métodos mais sofisticados com o intuito de “não deixar marcas”, o que sinaliza justamente uma finalidade não incriminatória, coação e graves ameaças junto a familiares.

Agora estes são apenas os aspectos mais superficiais, as discussões jurídicas.

A lei de anistia do Brasil é reflexo de um processo obscuro e muito contraditório de transição democrática. Podemos nos servir aqui do conceito de Justiça de Transição, utilizado no âmbito do direito, com o cuidado, mais uma vez, de não reduzir seu alcance a uma dimensão meramente institucional: falamos em Justiça de Transição com o intuito de ilustrar um possível caminho não trilhado pelo Brasil na sua transição democrático e dos deletérios efeitos da não punição dos agentes perpetradores de violências nos porões da ditadura, efeitos visíveis até hoje. 

Mas o que preside a opção pela revogação da Lei de Anistia é uma opção política dentro do critério pressuposto pela teoria crítica do direito. A opção e aposta feita em torno do protagonismo do mundo do trabalho envolve uma escolha que será decidida no terreno da co-relação de forças na sociedade brasileira onde há de se disputar consciências e avançar nos discursos, o que envolve o pleno domínio do farto conteúdo jurídico. (Os conceitos, as normas jurídicas e a dogmática jurídica é um pressuposto  conhecimento para avançar na discussão sobre a forma jurídica e a forma mercadoria e deve ser discutido no mérito mesmo a dita dogmática jurídica e as normas legais, buscando avançar nos conhecimentos por ora muito alto em nível de generalização que temos do tema direito e marxismo/teorias críticas. Por exemplo, carecemos de comentários desde a teoria crítica do direito e da Lei de Improbidade Administrativa 8429/82 para enfrentar a discussão envolvendo problema da corrupção e a lei de organizações criminosas 11280/2013 para aprofundar a crítica às delações premiadas). 

O conceito de Justiça de Transição já foi utilizado em contextos como nos das guerras de restauração dos Bourbons ou mesmo na Grécia antiga, mas parece haver um consenso que sua incidência e marco inicial dá-se com o Tribunal de Nuremberg na Alemanha do Pós II Guerra. Trata-se dos problemas suscitados para contextos de transições envolvendo nações em mudanças da guerra para a paz, ou da ditadura para a democracia, com um norte da reconciliação nacional.

Uma real justiça de transição envolve a consecução de uma série de direitos: (i) direito sobre a memória, de molde a que familiares de desaparecidos e a sociedade descubra o que de fato aconteceu; 2- após a apuração total, irrestrita e incondicional do passado, seria possível indenizar as vítimas. Aqui é importante salientar que sem uma apuração de fato sobre o passado, as indenizações podem ser objeto de dúvidas quanto a sua legitimidade; 3- Finalmente, após a apuração do passado é necessário responsabilizar os agentes estatais pelos graves crimes cometidos, para alguns inclusive em face da ordem pública internacional. O Direito Internacional Penal tem sido uma importante fonte de pressão para afastar a aplicação da lei de anistia do direito interno e possibilitar a imputação de agentes responsáveis por crimes durante ditaduras, fato negligenciado pelo autor do livro[2]; 4- Reformas institucionais com o objetivo de impedir que os erros do passado não se repitam.

Neste sentido, a anistia no Brasil deveria ser um subproduto de uma justiça de transição e estar situada após uma comissão da verdade que abrisse todos os documentos da ditadura e averiguasse o passado, garantindo o direito à verdade, à memória e mesmo o direito ao luto, com acesso aos corpos dos desaparecidos. Dos 62 desaparecidos na Guerrilha do Araguaia (PCdoB) só foram encontrados 4,  e ainda assim graças aos esforços das famílias.

Direito à memória, Indenização, Punição e Reformas Institucionais deveriam seguir esta ordem sequencial. Não foi o que ocorreu no Brasil

Primeiro foi concedida a Anistia já em 1979, e crimes políticos e conexos, inviabilizando desde logo as possibilidades de punição, ao menos num primeiro momento.  A 1º Lei 9140/95 (Governo Fernando Henrique) dá início a procedimentos de reparação, antes de abertura dos arquivos da ditadura e sem a devida apuração, clareza e transparência necessárias. E por último se faz o que deveria ter sido o primeiro: a Lei 12.528/2011 (Governo Dilma) instaura a comissão da verdade, sendo fato que muitos arquivos da Ditadura já foram queimados e outros permanecem inacessíveis.


    Frutos da transição problemática no país é a perpetuação de instituições autoritárias como a Polícia Militar e a continuidade de crimes que podem ser considerados como violações do direito internacional penal, muito pouco considerado pelo trabalho do Prof. Lauro Júnior: crimes contra a humanidade que lesionam a ordem internacional.

No último dia 25 de Maio de 2017 tivemos notícia da Chacina em Redenção (PA) com a morte de 10 trabalhadores Sem Terra em reintegração de posse. Quem passar neste momento pela Praça João Mendes Jr. próximo ao Tribunal de Justiça de São Paulo na região central da cidade poderá observar aos arredores uma larga faixa estendida com os dizeres: “Intervenção Militar Já”. Nesta mesma cidade, há duas semanas o prefeito higienista perpetrou um ataque brutal contra moradores de Rua na região da “crackolândia”. Há alguns meses tivemos notícia de uma sentença penal falando em legítima defesa[3] dos responsáveis pela morte de 111 presos no Carandiru que foram mortos desarmados dentro do presídio. Não há notícia de reação ou manifestação popular contra tal decisão.  

A violência perpetrada cotidianamente pela Polícia Militar (uma instituição em si derivada da época da ditadura) e a banalização dos atos de violência oficial, sua aceitação social resignada pelo povo e a falta de indignação política em face das arbitrariedades tem clara relação com a impunidade, que advém também de uma problemática Justiça de Transição, da qual a Lei de Anistia é um sub-produto. Daí a necessidade ainda atual de reverter a situação, abrindo os arquivos do passado e iniciando uma justiça de transição ainda que tardia que perpassa pela revogação da Lei 6683/79 - qual era em termos jurídico a legitimidade daquele congresso para votar tal lei? Ademais tem-se como um costume internacional desde a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Crimes Contra a Humanidade a noção de que faz parte do costume internacional a noção de crimes contra a humanidade e crimes de guerra são imprescritíveis. Crimes contra humanidade tem como fonte histórica o Tribunal de Nuremberg e são crimes que violam a ordem internacional: no Brasil foram cometido assassinatos, sequestros e torturas em larga escala. 

O Direito Internacional Penal foi um instrumento decisivo para a Argentina revogar a suas leis Ponto Final e Obediência Final (1986-7). Obviamente, naquele país, há especificidades e características particulares – as estimativas de assassinatos na Argentina gravitam entre 9000 e 20000 pessoas, numa proporção de uma população total muito menor do que a brasileira[4]. Todavia, o que chamamos atenção aqui é que existem mesmo ferramentas jurídicas que podem ser reivindicadas pelo campo democrático, popular e marxista para fazer avançar uma consciência no sentido da necessidade da revogação da Lei de Anistia (Lei 6683/79) e da necessidade da punição dos eventuais agentes de estado perpetradores de violação de direitos humanos, na época da ditadura militar. Importante frisar que o Estudo do Professor Lauro é de 2008 e em 2010  a corte interamericana de direitos humanos declarou que a lei é inconvencional, ou seja, não está de acordo com Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil. Se estas convenções foram incorporadas e são vigentes no ordenamento jurídico brasileiro conclui-se que a lei de anistia é incompatível com o sistema jurídico brasileiro. Ponderamos que a posição do professor Lauro Júnior mudou com a decisão da Corte Interamericana. 

Certamente, todo cuidado aqui deve ser levado quando se reivindica a punição nos marcos do estado capitalista, controlado pela burguesia, especial na nova etapa política em que a burguesia brasileira como um todo se unifica e trava uma luta contra os trabalhadores e as organizações de esquerda - como as próprias lideranças mais lúcidas da esquerda já identificam os setores da burguesia brasileira se unificaram no golpe e romperam o acordo democrático que garantiu inclusive os governos de conciliação de Lula e Dilma e não parecem estar dispostos a sequer transigir com o reformismo. Não deve ser objeto de confiança o judiciário e juízes brasileiros que estão a fazer frente da operação lava jato, iniciativa golpista em curso com a finalidade de comandar a orientação política/ econômica do imperialismo no país, além de criminalizar dirigentes da esquerda – desde o ponto de vista crítico, a forma jurídica é a forma mercantil, e foi através de uma operação orquestrada pelo discurso jurídico de pedaladas fiscais até o presente momento da criminalização de Lula e da esquerda, vem sendo levado a cabo um golpe de estado que vem devastando a economia nacional, destruindo a indústria do país, criando 14 milhões de desempregados, aprovando mudanças da Constituição Federal que congela gastos com saúde e educação por 20 anos, aprovando a ampla terceirização quando se sabe por dados do Dieese que o terceirizado ganha em média 24% menos que um não terceirizado, e com expectativa de graves mudanças no regime de aposentadoria, diminuição do intervalo intrajornado de uma hora para meia hora e o negociado em condições adversas prevalecendo sobre o legislado nas relações trabalhistas.

Não está fora de pauta a intervenção militar e o recrudescimento do aparato repressivo do estado em face das organizações operárias e populares – o que for necessário para levar a cabo o projeto de contra-reformas de destruição das leis trabalhistas, privatizações dos recursos naturas, da saúde e educação e devastação da economia nacional. Sindicatos e partidos de esquerda,  organizações populares (CUT, UNE, MST, PT, PCO, etc) estão totalmente fora do “pacto democrático” que foi rompido pela própria burguesia através do golpe, fato aliás já observado pelas próprias lideranças do PT, o que deve pressioná-las à esquerda – e criando a possibilidade de uma unidade de ação desde que os movimentos se unifiquem pelos métodos de luta com ocupações, passeatas e palavras de ordem que unifiquem o conjunto da classe trabalhadora direcionadas contra o golpe de estado, sem desvios ou rumos confusos como a consigna de “diretas já”.  

É preciso incorporar dentro desde movimento de luta contra o golpe e os golpistas uma luta contra a arbitrariedade dos agentes estatais, desde os tempos da ditadura militar (revogação da lei de anistia LEI 6683/79) até a completa apuração dos assassinatos dos militantes do MST , tratando-se aqui de uma solução de continuidade entre a impunidade do passado e do futuro. Enfrentar o debate jurídico sim, mas não encará-lo como um fim em si mesmo – o que é basicamente o que o velho Engels e Kautsky denunciam no "Socialismo Jurídico”.

Trata-se de o direito um instrumento defensivo. O que não nos autoriza a atual situação: ora um socialismo jurídico cheio de ilusões no direito a perder de vista seu vínculo indissolúvel com a forma mercantil e a lei de acumulação geral sob capitalismo em seu desenvolvimento na história; e por outro lado uma velha noção escolástica de estrutura e superestrutura que costuma visualizar apenas o direito no seu momento negativo como aparato repressivo ideológico a serviço da classe dominante desconsiderando ser também um fenômeno positivo, real e constitutivo da reprodução da sociabilidade capitalista, partícipe da vida real e que engendra questões bastante concretas - não se trata aqui portanto de se furtar à discussão jurídica, mas antes de não basear as respostas de fundo como a legitimidade da lei da anistia a critérios "jurídicos"; trata-se de ter em mente seus limites, os limites do jurídico a começar por não tornar medidas jurídicas e reformas em geral como a linha estratégica ou a solução para os problemas de fundo que envolvem uma relação geral de determinação baseada na propriedade privada (expressão jurídica do capital), na extração da mais valia (exploração do trabalho), na separação dos produtores dos meios de produção, na conformação do trabalho em mercadoria, na evolução da luta de classes num antagonismo cada vez mais acentuado entre capital e trabalho, em suma, pelo modo de produção capitalista. Atuar pelo direito significa agir em face de um terreno pertencente à forma mercantil (o direito é um fenômeno específico do modo de produção capitalista), mas que, ao se desenvolver também no âmbito da ideologia, também oferecer possibilidades quanto ao despertar de consciências. Há sim uma perspectiva de abolicionismo jurídico, o que não significa abandonar princípios (Bloch) que se projetam para sociedade almejada ("Sonhos Diuturnos"):


“Os trabalhadores organizam-se e declaram: ‘A nossa organização é a mais elevada de todas; não tem o direito de participar nesta organização nenhum explorador, nem nenhuma pessoa que não trabalhe. Esta organização tem um único objetivo – a destruição do Capitalismo. Não nos enganaram com falsos slogans como ‘fetiches’, tais como ‘liberdade’, ‘igualdade’. Nós não reconhecemos nem a liberdade nem a igualdade, ou mesmo a democracia do trabalho se se opuserem aos interesses da emancipação do Trabalho da opressão do Capital”. Introduzimos isto na Constituição Soviética e já ganhamos a simpatia dos trabalhadores de todo o mundo. Eles sabem que por mais difícil que seja implantar a nova ordem, por mais difíceis provas e mesmo derrotas que caiam sobre as várias Repúblicas Soviéticas, nenhuma força no mundo fará recuar a humanidade”. (Lênin).

 “Como Iludir O Povo Com Os Slogans de Liberdade e Igualdade” – V.I. Lênin – Global Editora

Este manuscrito corresponde a um discurso de V. I. Lênin proferido em 19 de maio de 1919 no Congresso sobre Educação Extra Tutorial. Observar que mesmo Lenin denunciando palavra de ordem lançadas de forma oportunista, incorpora outras palavras na Constituição Soviética.





[1] Assim previa a Constituição Vigente.

[2] É o caso por exemplo de Barrios Altos, massacre ocorrido em 1991 em Lima no Peru em que 15 pessoas incluindo uma criança foram assassinadas pelo esquadrão da morte colina ao serem confundido como membros do Partido Comunista do Peru. Em decisão de 14.03.2001, a Corte Interamericana de Direitos Humanos Considerou que são inadmissíveis disposições de anistia, prescrições e excludentes de responsabilidade que pretende impedir investigação e sanção dos responsável por graves violações de direitos humanos como torturas e execuções. Em 2010 a mesma Corte Interamericana julgou a Lei de Anistia Brasileira incompatível com o Pacto de São José de Costa Rica. Mas não há dúvidas que este mesmo Direito Internacional Penal pode ser utilizado de forma imperialista. De certa forma pode-se dizer que a prisão e execução de Saddam Husseim enforcado após invasão norte americana. 

[3] Art. 25 Código Penal Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

[4] O que está muito longe de nos autorizar a fazer comparações para lá de infelizes como a da Folha de São Paulo que caracterizou a ditadura brasileira como “Ditabranda”. Não se qualifica ou se dosa por critérios de nº de mortes a “dureza” de uma ditadura. Ademais mesmo se fosse possível este tipo de consideração, não seria a FSP quem teria credibilidade para fazê-lo: sabe-se que o jornal emprestou carros da empresa para a repressão perseguir opositores. 

segunda-feira, 22 de maio de 2017

“O Caso Lula” – Vários Autores

“O Caso Lula” – Vários Autores



Resenha Livro – “O Caso Lula: A Luta Pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil” – Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins, Rafael Valim (Org.)  - Editorial Astrea – ContraCorrente

“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.” PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.
                
No momento em que escrevemos esta Resenha a Operação Lava Jato segue o seu curso e o momento político do Brasil está numa situação de indefinição e expectativa: se há algo que se pode extrair das revelações do furo de reportagem da Rede Globo de Televisão acerca de delação de empresários da JBS envolvendo gravemente o presidente Temer é que a notícia da última quarta feira (17.05.2017) foi uma intervenção orquestrada junto ao poder  judiciário e especificamente à Operação Lava Jato, responsável pela investigação. Foi assim também com relação à revelação da interceptação telefônica envolvendo Lula e Dilma, ao atropelo da lei, em conluio com a mídia, em particular com a Rede Globo, revelando uma relação de cumplicidade entre promotores, Juizes e mídia no sentido de subverter mesmo a ordem legal para incriminar o ex-presidente e impedir àquele momento uma eventual nomeação de Lula à Casa Civil.
                
Que o poder Judiciário se soma aos demais poderes como parte integrante do Estado, sendo de uma forma geral aparato repressivo-ideológico a serviço da classe dominante não deveria ser uma surpresa àqueles que compartilham a “visão social de mundo” ou o pressuposto teórico-metodológico marxista, marxista-leninista ou remotamente crítico. O problema é que especificamente o problema do direito e do judiciário, em face da crise brasileira, vem se acentuando de tal maneira que, parece-nos, a militância que se dedica a lutar e educar o povo e os trabalhadores para os grandes embates envolvendo a nova etapa da luta de classes que esxurge com a tomada do poder pelos golpistas[1] precisa ela mesma de uma nova educação.

Este livro é um importante instrumento de esclarecimento acerca do processo judicial envolvendo o ex-presidente Lula e as arbitrariedades promovidas pela operação Lava Jato. Foram convidados diversos juristas da área de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direitos Humanos para dar detalhamentos acerca do problema jurídico envolvendo a defesa de Lula.

Lula é digno de críticas pela esquerda em face de governos que deixaram a desejar num sentido de ruptura anticapitalista: foi um governo reformista quase sem reformas, em que pese algumas medidas democráticas paliativas que num país como o Brasil estão longe de serem insignificante com as políticas de redução da miséria, a começar pelo Bolsa Família.

Mais do que isso, e independente de suas qualidades ou defeitos pessoais, Lula é produto de uma importante etapa de reorganização do movimento operário e greves dos últimos 3 anos da década de 1970 que criou as bases para um ascensão de diversos movimentos populares que fez esmorecer a ditadura militar e deu condão para um processo contraditório de redemocratização: por um lado através de leis como a de anistia em que houve o esquecimento das torturas e bestialidades praticadas pelos torturadores – lei considerada constitucional recentemente pelo STF; e por outro a consecução de uma constituição relativamente garantista, que incorpora uma série de direitos, por exemplo o das crianças, do meio ambiente e o da função social da propriedade, e que só poderia ser resultado de um momento em que os movimentos sociais, pastorais, movimentos do campo e partidos de esquerda estavam em reais condições de intervir na cena política.

Lula é o principal dirigente do PT e é uma peça estratégica do tabuleiro político – um líder popular que na atual situação pode canalizar um programa numa orientação diametralmente contrária à agenda de medidas de devastação da economia nacional, retirada de direitos sociais e privatizações. As arbitrariedades jurídicas que Lula sofre revelam algo: o aspecto jurídico aqui apenas denuncia algo. Como a passagem supracitada do grande jurista soviético, este “algo” não pode ser buscado na norma jurídica mas numa análise materialista, na análise da história que situa a Operação Lava Jato em primeiro lugar como um instrumento central da operação golpista que está em curso[2].

Infelizmente, mesmo setores da esquerda estão presas em seus sensos comuns e a demagogia da luta contra a corrupção faz vítima nas fileiras do movimento popular: não seria de se estranhar que “movimentos de massa” como os da Ucrânia ou os que presentemente infestam a Venezuela, patrocinados por provocadores a soldo do imperialismo, arrastassem bem intencionados lutadores[3]. Daí ser necessário alguns esclarecimentos básicos, mesmo jurídicos.

A Operação Lava Jato tem como inspiração a Operação Mãos Limpas (década de 1990) de Itália. Seu procedimento na Europa foi em muito semelhante ao que acontece no Brasil: criações de “forças tarefas” com mobilização aparatosa e midiática o que em si fere de morte a presunção da inocência; uma perspectiva de eliminação pelo descrédito de toda a classe política através das denúncias de corrupção; e a popularidade do Procurador Di Pietro e Juiz Giovanni Falconni. Desde a Itália, aliás, o Brasil importa institutos jurídicos como o da delação premiada, além da prisão cautelar com a finalidade da delação e a execração pública mancomunada com a mídia. O resultado na Itália da operação Mãos Limpas foi um vácuo dentro da classe política criando condições para a ascensão do semi- fascista  Sílvio Berlusconi em 1992. Não há notícias de que a corrupção tenha diminuído na Itália desde então: apenas de que ela tenha se tornado mais sofisticada e difícil de se combater. A Itália continua sendo um dos países onde se detecta na população maior sentimento de impunidade em face deste tipo de crime.

O grande problema da Corrupção é que este tem sido utilizado como carro mote para o recrudescimento do aparato repressivo-ideológico do estado que implicará num endurecimento do regime político como um todo: é o que vem sendo ora proposto ora aplicado na prática como a relativização da proibição do uso de provas ilícitas o que permitiria o uso de grampos ilegais como forma de obtenção de prova atropelando a lei, ou mesmo a obtenção de uma confissão por meios de coação ou tortura, como em tempos sombrios de ditadura; violação do princípio do juiz natural com a ilícita prorrogação da competência do processo de Lula para Curitiba e mesmo do princípio primário da imparcialidade judiciária, quando até em entrevistas para imprensa, o Juiz Moro, fora dos autos, vem demonstrando qual é o seu lado na lide.

Aliás, de tão parcial a posição do Judiciário, restou claro o apoio ao ex-presidente no último dia 10.05.2017 com um ato com 50 mil pessoas  em frente ao 4º Tribunal Regional Federal de Curitiba. Estamos aqui diante de um momento importante: desde os rudimentos mais elementares do marxismo, sabemos que a função ideológica mais primária dos tribunais é zelar ao menos nas aparências pela imparcialidade. Quando se escancara a parcialidade do Tribunal ao ponto de uma manifestação angariar milhares, além de transformar Curitiba num palco de manifestação militar, com praças desfilando, denota-se que há um desajuste, uma crise.

Todavia, a esquerda precisa avançar, e avançar aqui significa entender que “a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil” não é um problema jurídico. Os autores suscitam a Lei Processual Penal e criticam o modelo em que o Juiz que conduz a investigação seja o mesmo que julgue. Fala-se mesmo em Processo Penal do Espetáculo (Guy Deborad) diante das conhecidas relações promíscuas entre mídia e poder, podendo se suscitar a abusiva condução coercitiva de Lula (sem nenhum amparo legal, desde que nunca se recusou ao comparecimento perante o juízo do 4ª TRF) transmitida em todos os telejornais com o fito de desmoralizar o adversário político. Suscita-se mesmo a tese do jurista Carl Schmitt de Estado de Exceção quando numa inusitada decisão sobre eventual punição disciplinar envolvendo o Juiz Sérgio Moro e a sua ilícita revelação das interceptação telefônica, absolve-se o magistrado pois o desembargadores entenderam que a Operação Lava Jato é uma “exceção” e não se enquadra no procedimento comum – e de acordo com o jurista alemão, com alguma razão, quem decide o que é a exceção, detém o poder[4].

Todavia, a tradição marxista avançou bastante nos conhecimentos sobre o fenômeno jurídico e hoje mais do que nunca, precisamos estudar com mais afinco e profundidade o direito: são juízes e promotores que estão conduzindo junto às frações subordinadas ao imperialismo o atual rumo da história brasileira e do golpe de estado no país. Para além de duas divisas – por um lado o reformismo e o socialismo jurídico que irá buscar soluções no sistema jurídico através de reformas, o que surge na maioria dos artigos, e por outro lado, pela simples negativa com a ideia da representação em fetiche do estado como uma ideologia – é tempo de se voltar ao velho Marx e Pashukanis, dois autores que deram uma concretude ao direito, situando-o não dentro de uma velha escolástica de “estrutura” e “superestrutura”, mas no próprio DNA do capitalismo.

O Direito é um fenômeno especificamente capitalista. A forma jurídica deriva da forma mercantil. A compra e venda da força de trabalho esteve lastreada pelo liame jurídico dos contratos e de seu pressuposto, pessoas dotadas de uma capacidade jurídica que referimos como Subjetividade Jurídica. Foi necessário que rompessem com relação de dependência e domínio pessoal que marca o modo de produção escravista e feudal e se conformassem no mercado como sujeitos de direitos aptos a livre negociarem a força de trabalho como mercadoria para sua compra e venda.  

A existência do Direito é sistema de uma sociabilidade voltada à acumulação lastreada em exploração do trabalho assalariado e atravessado por contradições de classe.

Em Pashukanis, o Direito não é só ideologia e fetiche, portanto, mas também é um fenômeno real.

Diria o grande jurista soviético que do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas.

Para além da contraposição estrutura e superestrutura, o direito é dialeticamente considerado forma do processo real de troca – o direito está no plano da troca, ou em termos marxianos, é parte da sociedade civil. 

A especificidade da relação jurídica gira em torno da relação social engendrada entre proprietários de mercadorias. A crítica à jurisprudência burguesa do ponto de vista do socialismo científico deve tomar como modelo a à crítica da economia política burguesa.

Nestes termos, há algumas consequências: a luta pelo fim do capitalismo é a luta pelo fim do direito; não há espaço para ilusões acerca de promoção de justiça ou combate de corrupção através do direito burguês, a não ser num âmbito limitado, contraditório e que deve estar em primeiro lugar livre de ilusões jurídicas. O direito não é o terreno dos trabalhadores e do povo: deve ser utilizado como um instrumento de defesa, no âmbito da tática e no limite como forma para revelar as suas próprias contradições quanto ao seu particular e específico caráter ideológico.

Ganhar a disputa ideológica acerca da corrupção será uma árdua batalha de entendimento do que é o Estado e do que é o Direito. De outro modo, sempre ter em mente que não se trata de uma discussão moral mas de um problema de base, ou do que Althusser chama de determinação. 

Ademais, a curta experiência da Comuna de Paris nos trás sim algumas lições que nos servem como referência mesmo para enfrentar por fora do âmbito da moral o debate sobre corrupção: naquela revolução, cada representante do povo recebe a remuneração média de um trabalhador, nenhum centavo a mais; controle popular sobre os mandatos e revogabilidade a qualquer instante dos cargos eletivos; eletividade do cargo de juízes; fim do trabalho noturno; separação da religião do estado e fim do ensino religioso. O sistema igualitário com uma perspectiva de fim de sociedade cingida em classes sociais. 

Foram apenas 72 dias e esta curta experiência é um lapso que dá conta da originalidade de uma nova forma de fazer política para além das fronteiras do direito burguês e seu corolário, a sociedade pautada pela produção de mercadoria e pela lei da acumulação.   






[1] Setores lastreados por afinidades junto ao imperialismo que no presente momento identificamos mas ainda não sabemos dosar com precisão. Cerca de 25% do PIB brasileiro está vinculado à moeda internacional. É um bom ponto de partida para se perceber a origem de uma base de deslocamento da burguesia que irá romper com o governo Dilma e assumir um posicionamento mais radicalmente associado aos interesses externos.  
[2] Muito errado portanto o pensamento de que o Golpe de Estado se exauriu com a retirada de Dilma R. da presidência. Mais do que isto, a palavra de ordem que deve unificar a frente única (que não é um programa político) é a luta contra o golpe, pela anulação de todas medidas tomadas pelos usurpadores golpistas e pela restituição do mandato. Só este pode ser o sentido de “Fora Temer!”.
[3] No Brasil CST/PSOL e PSTU sempre apoiam o imperialismo e seus agentes provocadores. Quem leva esta político ao extremo é o grupelho universitário MNN.
[4] LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

domingo, 30 de abril de 2017

“A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr.

“A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr.



Resenha Livro - “A Revolução Brasileira / A Questão Agrária no Brasil” – Caio Prado Jr. – Companhia das Letras

“Uma revolução agrária, antifeudal, anti-imperialista...Que não se tratava de nada disso, verificou-se amargamente quando uma simples passeata militar bastou para deitar por terra a aventura e dispersar sem mais esforços os iludidos pseudorrevolucionários. Mas enquanto a aventura durou, foi a ilusão alimentada por grosseiros erros de interpretação teórica da realidade brasileira – a sua parte honesta e sincera, sem dúvida, porque interesses personalistas também tiveram aí o seu papel – a prosseguirem em sua desacertada ação política. Ação essa que, por não contar com diretrizes justas, não foi capaz de despertar e mobilizar, senão em proporções mínimas e largamente insuficientes, as verdadeiras forças e os impulsos revolucionários. E que por isso se perdeu em estéril agitação”.  Ob. Cit. 1966. Caio Prado Jr.
                                
A passagem supramencionada de certa maneira dá uma síntese da orientação de “Revolução Brasileira”, escrito em 1966, dois anos após o golpe militar que derrubou João Goulart.  Tratava-se de uma derrota política que envolvia uma frente de forças políticas de esquerda, dentre elas a UNE, movimentos campesinos, sindicatos e o PCB, partido no qual Caio Prado Jr. filiou-se em 1931, mantendo gradualmente uma postura de críticas, particularmente em face de suas reservas no âmbito da teoria, da interpretação dos sentidos históricos do país e do significado da revolução brasileira.

 Em Caio Prado Jr. já a partir de seus livros de História do Brasil, “Evolução Política do Brasil”, pioneiro dentro de uma proposta de análise materialista de nosso passado (enquanto predominava na historiografia diversas matizes de história descritiva) e “Formação do Brasil Contemporâneo”[1]  o historiador consagrará novas bases para se pensar o Brasil, basicamente a partir de uma forte dependência de seu passado colonial, ganhando força a ideia de “Sentido da Colonização”.

“O Sentido da Colonização”  diz respeito à conformação do Brasil colonial voltando-se ao atendimento dos interesses comerciais portugueses e europeus, uma reiteração que informará a história do país até o presente em suas bases institucionais,  de sociedade e economia. É com base neste exclusivismo comercial, dependência econômica e conformação de uma propriedade fundiária altamente concentrada – já antes explorado pelos lusitanos nas índias – que se conformará toda estrutura social, política, administrativa do país. Fatos que servem como chave explicativa para o atraso do país, particularmente quanto a ausência de arranjo nacional envolvendo o conjunto de sua população ao acesso de bens de consumo e criação de mercado interno.

O conceito de Sentido da Colonização surge na Revolução Brasileira ao demarcar os aspectos de reiteração do atraso que dizem respeito à conformação da estrutura fundiária baseada na atividade agroexportadora de alguns produtos primários, na alta disponibilidade de terras e mão de obras a baixíssimos custos reproduzindo práticas e costumes que no limite advém da combinação do capitalismo comercial e da escravidão. O que está pendente é a conformação de um projeto nacional – desarticulação interna – de conformação de um mercado interno, que exigirá grandes reformas, com a reforma agrária em destaque, e a valorização geral da força de trabalho ensejando um mercado consumidor e o desenvolvimento tecnológico associado à valorização da mão de obra:

“É assim que se há de abordar a realidade brasileira atual, o que leva a considerá-la como situação transitória entre, de um lado, o passado colonial e o momento em que o Brasil ingressa na história como área geográfica ocupada e colonizada com o objetivo precípuo de extrair dessa área produtos destinados ao abastecimento do comércio e mercado europeus, e doutro lado o futuro, já hoje bem próximo, em que essa mesma área e povoamento, afinal nacionalmente estruturados, comportarão uma organização e sistema econômico voltado essencial e fundamentalmente para a satisfação das necessidades dessa mesma população que a ocupa, e  capazes de assegurar a essa população um nível e plano de existência consentâneos com os padrões de civilização e cultura de que participamos” (Pg. 82).     

 Esta herança do passado é algo implícito tanto na “Revolução  Brasileira” quanto em  “Questão Agrária”. O empreendimento comercial português levado a cabo a partir do sistema plantation, a produção monocultora destinada ao mercado externo e o desafio da criação de um projeto de nação derivado daquela herança colocava em primeiro plano o problema do campo, inclusive dentro da estratégia revolucionária.

A colônia nada mais foi do que uma empresa comercial destinada exclusivamente à grande exportação. Como um “resquício” deste passado colonial, enxerga-se a ausência de preocupação pela metrópole em desenvolver internamente sua colônia, com sua solução de continuidade com a presente dominação imperialista.

Hoje os historiadores do período colonial fazem algumas ponderações com tal noção de “Sentido da Colonização”: o elemento do povoamento, que não passou em todo caso desapercebido por Caio Prado Jr., e especialmente o interesse da comunhão religiosa estiveram articulados dentro de uma estrutura político-jurídica do tipo do “Antigo Regime” dentro e fora da colônia– e não se deve perder de vista que a atividade das grandes navegações esteve antes associada a uma visão social de mundo de um Europeu egresso do mundo medieval, inclusive de membros de uma comunidade cristã engajados na  luta contra os “infiéis” (judeus, mouros, etc) do que propriamente de capitalistas com uma cosmovisão do tipo renascentista/racionalista/etc – a própria noção de “guerra justa” em face dos índios ameríndios foi uma apropriação do conceito de guerras medievais, para não mencionar na presença tardia da Inquisição em terras da América Portuguesa. O Elemento indígena e as missões tiveram um papel estratégico, inclusive no domínio econômico – os beneditinos fizeram fama particular como bons administradores pecuniários no Brasil, para não se citar feitos de indígenas ou negros (Henrique Dias) que receberam graças e mercês reais pelo seu engajamento na luta contra estrangeiros[2].  

Seja como for, o importante é que a chave explicativa caiopradiana para a explicação da Formação do Brasil Contemporâneo (o que envolveria um projeto de superação do atraso colonial) deveria levar à Revolução Brasileira.

 Antes de Caio Prado Jr. as formulações do marxismo do Brasil a partir de nomes como Nelson Werneck Sodré ou Astrogildo Pereira têm graves limites diante daquilo que Leandro Konder bem pontuou como “Derrota da Dialética”. Estamos diante das primeiras décadas da recepção das ideias de Marx e marxismos no Brasil. Havia então certa  reprodução dogmática daquele repertório conceitual, como se a realidade tivesse de ser amoldada  aos pressupostos teórico metodológicos dos clássicos ou mesmo reproduzidas a partir de análises de outros países, fatos que  prejudicavam bastante o resultado das interpretações e consequentemente a prática das organizações (especialmente o PCB) no país.

A novidade com Caio Prado Jr. já a partir de suas obras de História Colonial é aplicação do marxismo como um método para interpretar e agir e não como um conjunto de fórmulas com valor universal – daí conclusões como a da negação do feudalismo no Brasil; a ênfase de que no Brasil não há como em Ásia uma “Burguesia Nacional” em oposição a uma “Burguesia Compradora” ligada ao imperialismo, mas a associação subordinada da burguesia brasileira ao imperialismo, explicando a capitulação e as derrotas da esquerda, como as de 1964; sua concepção de “Revolução” aplicada ao Brasil sem qualquer pressuposto socialista, ou coloridos do tipo, e uma ideia original de “Reforma Agrária”, bem como das reivindicações dos trabalhadores no campo.

Sempre a determinação das modificações e reformas constituídas pela Revolução Brasileira – nunca pela dedução a priori de esquemas teóricos. A Revolução Brasileira não é uma fatalidade histórica, mas os fatos constituídos de premissas da realidade objetiva.
A Revolução Brasileira não envolve teses originais/novas. O livro todavia tira o autor da marginalidade diante do contexto histórico. É um escrito que deve situado sob o signo da derrota de 1964 mas também sob o impacto da vitória da Revolução Cubana de 1959. Por que fomos derrotados aqui e a esquerda saiu vitoriosa na pequena ilha de Cuba?

Desde Cuba, Caio Prado Jr. já enuncia que o Movimento 26 de Julho que derruba Batista não tinha colorações socialistas: o socialismo é uma resultante prática e original do desenvolvimento objetivo de Revolução Cubana e não um apriorismo como o procedimento teórico de nossos formuladores que procediam vendo na revolução Brasileira as mesmas “etapas” de revoluções envolvendo países de outros contextos históricos.

Ao que tudo indica, a obra Revolução Brasileira realmente teve grande repercussão. Caio Prado recebe o prêmio de União Brasileira dos Escritores de 1966 e Prêmio Juca Pato.
E há interfaces importantes aqui entre o intelectual do PCB que rompe com partido e outro dirigente que se notabilizou não tanto pela originalidade das ideias mas pela vontade, pelo ímpeto, audácia e pela ação, Carlos Marighella.

Pois é exatamente em 1966 (ano do lançamento da “Revolução Brasileira”) que Carlos Marighella rompe com o Partido Comunista Brasileiro. E este rompimento é fruto de uma viagem de alguns anos antes a Cuba que convenceu o dirigente baiano sobre as possibilidades de se adequar num país de dimensões continentais como o Brasil a viabilidade da tática das guerrilhas em confronto com a posição do PCB: resistir à ditadura militar sem se socorrer às armas.
Todavia,  na carta de desligamento ao PCB de Carlos Marighella há um ponto em comum entre o dirigente da ALN e  Caio Prado Jr.: a denúncia do reboquismo dos comunistas a uma burguesia vacilante representada por Goulart.

Marighella parece ser mais radical e levanta que o reboquismo é falso nem tanto por considerações teóricas (aparente contradição entre frações de burguesias distintas) mas pela vacilação dos setores burgueses que não reagiriam com força militar ao golpe de estado.  A estes pontos Marighella acrescenta como causas que levam à derrota os comunistas em 1964 uma confiança equivocada no dispositivo militar geral diante de uma não compreensão marxista do que significa as forças armadas nos quadros do estado burguês; finalmente, ilusões de classe que levaram o partido (PCB) a deformações importantes, como o apoio eleitoral a líderes burgueses como Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e populista direitista Adhemar de Barros – Caio Prado Júnior por sua vez ataca as alianças feitas com JK, um governo entreguista pro imperialista quanto a sua política econômica e Marechal Lott por declarações  anti comunistas.  

Mas se no diagnóstico há pontos em comuns, nos prognósticos parece haver duas saídas colocadas. Caio Prado Jr. entende que a derrota das esquerdas em 1964 envolvem uma incompreensão geral do problema Brasileiro, decorrente de uma má aplicação do método materialista dialético, o que o leva a redigir uma polêmica suscitando pontos essenciais de um programa de esquerda, desde o problema das alianças (o que seria uma burguesia nacional? Ela existe no Brasil tal qual existe na China? O proletariado deve se aliar com uma burguesia nacional em caso positivo? Por que é falso dizer que há feudalismo no campo no Brasil?); qual é a aspiração dos trabalhadores? E neste ponto Caio Prado entendia fulcral a aferição da busca da aspiração real dos trabalhadores do campo (e não “camponeses”) que à época somavam 50% da população; além da própria caracterização sumária da sociedade, da política e da economia do país.   

Se para o primeiro (Caio), os dilemas da esquerda são teóricos, para Marighella, estamos diante de um problema prático. A lição extraída da Revolução Cubana envolve a crença na viabilidade da atividade revolucionária através da tática das guerrilhas. Seu mini manual do guerrilheiro urbano é um livro sem muitas considerações políticas, voltado literalmente às ações diretas, construções de bombas, agitação e propaganda.

O problema do Campo e o Feudalismo

Um dos pontos mais reiterados no trabalho de Caio Prado Jr. é sobre o problema de se caracterizar o campo brasileiro como feudal. Uma das exigências, no programa tradicional da revolução seria suprir os resquícios feudais e semi-feudais do país. Não se trata apenas de um problema de terminologia. Ao enquadrar mal o problema, as organizações de esquerda não dialogam com o povo trabalhador do campo: apostam que os “camponeses” lutam para se desvencilhar das relações pessoais como as da corveia europeia e como se lutassem pela terra, como se houvesse uma relação do tipo milenar entre os trabalhadores do campo do Brasil do mesmo tipo do camponês mujique russo ou chinês. Caio Prado Jr. não era um tipo de intelectual de biblioteca. Além de um pesquisador bastante cuidadoso, fazia diversas viagens de carro pelo interior do país – conhecia como poucos os rincões do Brasil e a situação particular e a geografia brasileira, particularmente a geografia rural[3].

Demonstra com dados convincentes que no Brasil nunca houve resquício de feudalismo. Teríamos que falar de classe aristocrática que domina através de regime jurídico pessoal os camponeses. Haveria apropriação do subproduto através de privilégio assegurados pelo regime social e político vigente. Por exemplo através da prestação da “Corvéia” que não se confunde com o regime de Parceria que no Brasil é residual e se encontra no cultivo do algodão em São Paulo. No Brasil não há propriamente camponeses mas empregados, e a maior parcela é de assalariado – mais uma impropriedade da tese do feudalismo. Isso não afasta práticas de subordinação pessoal como retenção por atividade; o “barracão”; sanções e punições corporais. Ocorre que não se trata de resquícios “feudais” mas resquícios da escravidão.

A Questão Agrária mais uma vez diz respeito àquela reiteração do passado que informa os sentidos de nossa colonização: o êxito da empresa rural envolveu o latifúndio, a disponibilidade abundante de terras e de mão de obras extremamente barata; mão de obra abundante desde a escravidão, fato que não se transforma com a abolição implicando a miserabilidade dos trabalhadores do campo e exigindo políticas de sindicalização e lutas por direitos sociais – e não propriamente por terras.
A luta a ser efetivada pelas esquerdas no Campo deve ser no sentido da sindicalização dos trabalhadores rurais e pela extensão de todos os direitos trabalhistas celetistas aos trabalhadores rurais. Caio Prado Jr. propõe inclusive a criação de uma interessante Justiça do Trabalho Rural. E se pensar que a atual Reforma da Aposentadoria do governo golpista Temer retira a aposentadoria dos trabalhadores Rurais e mesmo a lei que regulamenta a criação de varas especializadas agrárias desde 1988 permanecem letra morta em alguns estados do Brasil, observa-se como a Questão Agrária em Caio Prado Jr., 50 anos depois, permanecem infelizmente atual e mesmo pendente.  

O grande dilema de fundo da Questão Agrária no Brasil para Caio Prado Júnior envolve portanto a Grande exploração agromercantil e concentração da propriedade fundiária que é causa, condição e efeito daquela economia. Todos estes elementos convivem com a pendência da Reforma Agrária. Não qualquer reforma, mas uma que faça da terra um benefício das massas que nela trabalham e não  um mero negócio,  enfrentando o problema da concentração fundiária, sem utopias, como implantar cooperativismo economicamente inviáveis – e aqui Caio Prado cita experiências cubanas como as Fazendas Estatais cubanas.

Não estamos de acordo que o agronegócio superou ou tornou datada as questões agrárias suscitadas por Caio Prado Jr (Chico de Oliveira). Houve pelo menos duas mudanças de fundo desde os anos 1960 quando os artigos foram escritos para 2017. Primeiro o êxodo rural massivo. Em meados do século XX metade da população brasileira residia no campo. Outro aspecto é a inovação tecnológica que não implica melhora nas condições de trabalha como se observa na conjugação do agronegócio e as condições de trabalho dos canaviais paulista.

O agronegócio da Soja, as tradicionais culturas do cacau na Bahia ou do café ainda envolvem mobilização de mão de obra que exigem proteção. O moderno e o atraso re colocam questões novas, mas não resolvem um problema que se posterga há décadas: a reforma agrária em face de um país que ainda reitera aspectos de seu antigo estatuto colonial, a começar pela concentração fundiária e pela grave espoliação do trabalhador camponês. A lição da “Revolução Brasileira”, para além de debates pontuais remete a como às dificuldades teóricas da esquerda conduziram-na à derrota de 1964, à incompreensão das demandas dos próprios trabalhadores e a um errado enquadramento da situação política, econômica e social do país.

“Há mais, contudo, pois uma reforma dessa natureza e profundidade, que significaria uma transformação completa da estrutura e organização dos principais setores da nossa economia agrária, não é possível realizar-se senão como resultante de um amplo movimento social reivindicatório. Sem uma base social dessa ordem, não se pode esperar, a não ser em fantasia longinquamente afastada da vida real e concreta, a efetivação da reforma de tamanho vulto e alcance econômico e social. Seria naturalmente ingenuidade pura imaginar que um simples texto legal estabelecendo a reorganização de nossas principais atividades agrárias e dando-lhes estrutura e funcionamento da produção completamente distinto e originais, tivesse a virtude, somente por si e sem o amparo, impulso e instrumento de poderosas e ativas forças sociais, de determinar tais consequências”. (PG. 410)          






[2] Foi o caso de Felipe Camarão - Líder Indígena proveniente de aldeia missionária da capitania do Rio Grande (RN) que se destacou nas lutas pela expulsão dos Holandeses. Como ele houve Tibiraçá da Capitania de São Paulo de Piratininga, amigo de João Ramalho. Camarão não foi o único índio que obteve no período colonial condecoração régia.
[3] Além de diversas viagens internacionais, inclusive uma retratada em livro pela URSS.  

terça-feira, 14 de março de 2017

“Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto

“Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo 1956

“ ‘Iria subir, iria remontar os ares, transmontar cordilheiras, alçar-se longe do solo, viver algum tempo quase fora da fatalidade da terra, inebriar-se de azul e de sonhos celestes, nas altas camadas rarefeitas...

A experiência seria de manhã e, à noite toda, não dormiu como se, no dia seguinte, fosse se encontrar com o amor que sonhou e, para realizá-lo agora, tinha aguardado muitos anos de angústia e de esperança.

Veio a aurora e ele a viu, pela primeira vez, com um interessado olhar de paixão e encantamento. Deu a última demão, acionou manivelas, fez funcionar o motor, tomou o lugar próprio...Esperou...A máquina não subiu’.

Eis o que havia na folha amarelecida de almaço encontrada por mim, no ano passado, entre os papeis que Gonzaga de Sá me deixou.

Não compreendi imediatamente a significação dessa fantasia; mas referindo a este e aquele aspecto de sua vida entendi bem que ele queria dizer que o Acaso, mais do que qualquer Deus, é capaz de perturbar os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções”.

*

A passagem supracitada sugere alguns traços mais peculiares deste pouco conhecido romance (em termos de biografia) do misantropo Gonzaga de Sá, comparado por alguns críticos ao Conselheiro Aires de Machado de Assis.

Gonzaga de Sá é personagem que antes de tudo dignifica os baixos estratos sociais e singulariza uma narrativa cujas láureas não se destinam a chefes de estado, heróis de guerra e/ou aos donos do poder, como é o habitual, mas ao simples amanuense de uma certa repartição denominada “secretaria dos cultos”.  Esta é uma das grandes inovações literárias do escritor Lima Barreto: uma nova centralidade ou mesmo dignidade a personagens do subúrbio, desde o funcionário público com baixos estipêndios até a paisagem privilegiada de novos horizontes da cidade carioca para além da Rua do Ouvidor, dos Teatros de Gala e do Parque Botânico: o próprio Gonzaga mostra-se o conhecedor incomum da cidade e de sua história, igualmente deslocando aquele foco mesmo no que tange aos ambientes e paisagens, desde os bondes, até os subúrbios: na periferia da cidade, contempla-se os transeuntes trabalhadores, mulheres de vida fácil estrangeiras e as feições de pequeno burgueses, contemplando-se um universo popular e de certa forma antecedendo os romances regionalistas do modernismo em sua segunda fase.

É assim em “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”  em que o narrador Augusto Machado elege um amanuense como alguém digno de ser biografado: um personagem com cogitações filosóficas e uma certa empatia pelos fracos ao ponto de sugerir que seria melhor que morressem de molde a suprimir a dor em face da sociedade que engendra todo tipo de opressão e injustiças – uma empatia relativa, já que a compaixão pela dor é interpretada também por suposta “burrice” dos mais humildes em acatar sua situação e particularmente os abusos dos ricos e poderosos da República Velha; é assim também nos contos ora em “O único assassinato de Cazuza” em que o protagonista é um “derrotado pela vida”; ora em outro conto  em que o foco narrativo se dá pela mulher casada antes obediente ao pai e agora obediente ao marido; e de maneira geral, ao subúrbio em detrimento das zonas nobres da cidade do Rio de Janeiro.

Seria possível admitir que a literatura nacional de uma certa forma já iniciara a contemplar os marginalizados a partir da literatura do tipo naturalista, a se lembrar do “Cortiço” de Aluísio Azevedo ou mesmo ainda no século XIX a abordar o que hoje se fala em minoria, quando se referimos ao amor homossexual em “O Bom Crioulo” do escritor cearense Adolfo Caminha, para citar dois exemplos. Mas há entre estes escritores e Lima Barretos pelo menos duas diferenças substanciais: (i) na literatura do tipo naturalista, o procedimento literário torna os objetos da narrativa como “O Cortiço” ou “O Mulato” (e o problema racial na provinciana maranhão do séc. XIX) a serem descritos com a objetividade e temperos do mesmo procedimento das ciências naturais. Isto implica transformar o cortiço e particularmente toda sorte de suas personagens antes em objeto do que em agentes, em sujeitos e protagonistas de sua própria história. Em Lima Barreto, em outro contexto literário, o do 1900’s literário, um eventual Cortiço seria menos um mosaico de forças regidas por impulsos deterministas do meio social, e mais um subúrbio com figuras concretas, personagens uti sininguli, dotados de especificidades e humanidade particular; (ii) em conexão com (i), Lima Barreto não estava motivado por um conjunto bastante específico de pensadores que informam a literatura naturalista, como o positivismo que engendra a ideia de que o conhecimento poderia ser deduzido de preceitos científicos; o darwinismo, o evolucionismo e o determinismo social, havendo pouco espaço para o livre arbítrio dentre os personagens. O comportamento humano estaria condicionado pelos fatores hereditários, pelos fatores do ambiente físico e social.

Sabe-se que quando estudou sem concluir a escola Politécnica Lima Barreto teve contato com a filosofia positivista. Este contato serviu antes para aguçar no jovem leitor/escritor um interesse precoce por um estudo autodidata de filosofia. Consta que Lima Barreto leu Comte, Spencer, Kant e em “Gonzaga de Sá” vemos citações de Dostoievsky, Tolstói, Rousseau e Schopenhauer. Segundo o biógrafo Francisco de Assis Barbosa, foi entretanto Descartes e sua filosofia ancorada no princípio da dúvida a que mais motivou Lima Barreto – se por um lado sua literatura se destaca por descortinar o fundo da alma do povo carioca, por outro foi através da crítica avassaladora de quase todos os aspectos da vida social do Brasil da Velha República que Lima Barreto se torna provavelmente o mais importante intérprete do país dos 1900 literários. Caiu-lhe bem um espírito crítico que adveio em termos filosóficos de uma tendência ao ceticismo e à crítica.

O interessante é que os dois aspectos – a centralidade do subúrbio e dos tipos populares e a cerrada crítica social em face dos diplomados com conhecimento rasteiro; dos tipos medíocres que granjeiam projeção social e literária com base em bajulação e nepotismo; e do racismo que grassa a vida social inviabilizando a ascensão de vivas inteligências que se embotam no mar de imbecilidade reinante, tal qual Isaías Caminha – estes dois polos estão no que podemos colocar já como o ponto de partida da produção literária de Lima Barreto. “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” foi iniciado antes de seu livro de estreia e no entanto foi apenas o 4º livro publicado por Lima Barreto. O autor preferiu lançar de início o “Recordações do Escrivão Isaías Caminhas” (1909) e em carta a Gonzaga Duque revela que optava aparecer com “escândalo”: certamente era o caso desta espécie de memória amarga de um mulato que busca ascender socialmente no Rio de Janeiro e lá se depara com todo o tipo de vícios, pessoais e institucionais, que engendram, desde a crítica, uma narrativa insurgente em face do Brasil daquele contexto. Desde a crítica se constata as promíscuas relações entre os jornais e os poderes, a mediocridade do mundo dito “letrado”, o baixo nível (num sentido literal) dos políticos, a ser retratado em tom de galhofa até sessão parlamentar em que quando muito um deputado presta atenção nas pernas de uma bela moça em detrimento do discurso de seu colega. As críticas se estendem desde os críticos literários que são ignorantes quanto à arte e bajulam em troca de interesses pessoais até o racismo vivenciado na pele do protagonista nos primeiros momentos em que pisa no RJ – passagens que sugerem teor autobiográfico da história.  

Como iniciamos, “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” nas palavras de Lima Barreto é uma narrativa “cerebrina”, com passagens de filosofia a partir das cogitações de Sá e diálogo entre o narrador e seu biografado. Mas ainda se trata de um momento de maturação do processo criativo de Lima Barreto: não tem a mesma força imaginativa de um país que é a caricatura do Brasil, “Bruzundangas”; parece ser uma história um pouco sem vida, bucólica, não à altura de “Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos” em que o leitor é atraído também em razão do enredo vivo e dinâmico. Estamos diante dos primeiros escritos de Lima Barreto e aqui temos contato com uma personagem que nos leva a conhecer algo sobre concepções de filosofia que em Lima Barreto tem um tom ora de pessimismo ora amargura, mas que nem por isso se extrapola no desespero. Antes toma um sentido oposto, uma espécie de humor triste que lembra algumas passagens do velho Machado de Assis.

“É verdade que sempre o conheci triste; mas de uma tristeza, por assim dizer, filosófica, geral, essa tristeza de sentir profundamente a mesquinhez da nossa condição humana, em luta sempre com o imenso dos nossos desmarcados sonhos e desejos. Porém, agora, a sua tristeza era mais atual, mais terra-a-terra. Dir-se-ia que a presença do Aleixo Manuel, o afilhado, tinha levantado do fundo da pessoa do meu amigo lembranças dolorosas que sepultara para sempre; lembranças essas que eram o seu segredo e das quais nunca me falou e não encontrei o mínimo indício para descobri-las nos papeis que ele me legou, por testamento, juntamente com uma centena de livros. Lembro-me, ao escrever estas linhas, que um dia ele me dissera:

- Já tiveste algum amor?

- Nunca.

- Olha que falo de amor! Hein?

- Compreendo.


- É preciso tê-lo.... Tenho te dito sempre que os antigos afirmavam que Vênus é uma deusa vingativa... Não perdoa e tu sofrerás se não lhe prestares culto...”.

segunda-feira, 6 de março de 2017

“O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry

“O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry

(Imagem ilustrativa. Resenha feita a partir do texto original de Saint-Exupéry. Tradução Bruno A. Matangrano - USP)

Resenha livro - “O Pequeno Príncipe” – Antoine de Saint-Exupéry – Ed. Pé da Letra

“Levantei o balde até os seus lábios. Ele bebeu, com os olhos fechados. Era doce como uma festa. Aquela água era bem mais do que um alimento. Ela havia nascido da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana, do esforço de meus braços. Era boa para o coração, como um presente. Quando eu era menininho, a luz da árvore de Natal, a música da missa da meia- noite, a doçura dos sorrisos davam todo encanto do presente de Natal que eu ganhava.

- Os Homens de sua terra cultivam cinco mil rosas em um mesmo jardim .... – disse o pequeno príncipe – E eles não acham o que estão procurando.

- Eles não encontram – respondi.

- E, no entanto, o que procuram poderia ser encontrado em uma única rosa ou em um pouco d’água”.

Há diferentes interfaces entre a literatura e a infância. Podemos falar sobre uma literatura acerca da infância e temos como uma boa referência aqui o “Capitães de Areia” (1937) obra de uma primeira fase mais politizada e engajada de Jorge Amado. O enredo trata de um grupo de meninos que vivem num trapiche à beira mar no Salvador dos primeiros anos do séc. XX, retratando as graves desigualdades sociais da cidade alta (os ricos) e baixa (os pobres): os “Capitães” são crianças que vivem de pequenos roubos, furtos e bem articulados e executados planos de ilícitas engambelações, sendo todavia erigidos à condição de heróis em face de uma sociedade pouco atenta para uma explícita e cruel contradição envolvendo crianças morando nas ruas, tendo de buscar a cada dia seu sustento através do crime, sem lar e família. Por outro lado, crianças usufruindo da liberdade plena das ruas, de uma vida externa ao poder familiar e driblando os encalços da polícia. Há de se constatar como esta vida peculiar abre uma certa situação de ambiguidade quanto à condição infantil daquele grupo: de certa maneira os Capitães de Areia têm sua infância roubada e as exigências da vida fazem com que um personagem como o “Gato” atine com a vaidade e busque nos colos de um amor conjugal uma provável ausência de carinhos maternos; o personagem “Sem-Pernas” é deficiente físico, é humilhado por policiais numa delegacia e desenvolve algumas tendências de isolamento, de amargura, ressentimento, ódio e tristeza que não parecem coadunar com as cogitações e sentimentos de um menino; e Pedro Bala, líder do grupo, ao entrar em contato com histórias de seu pai que nunca conheceu e que fora liderança sindical seria ele mesmo no futuro um dirigente político.

Todavia, o que há de traço distintivo da infância? Há uma espécie de percepção do mundo associada ao encanto e fantasia, eventualmente com as coisas mais triviais: e a infância dos Capitães de Areia não se revela de toda roubada quando se observa os efeitos que um singelo carrossel itinerante ainda produz no grupo. A ambiguidade de crianças que derrubam negrinhas na praia para o ato sexual e brincam e se encantam com os efeitos de luzes e som de um velho carrossel se revela aqui.

Dentre as interfaces entre literatura e infância, predomina certamente a literatura destinada ao público infantil. E aqui é possível fazer uma diferenciação.  Há a literatura infantil que teria um interesse mais exclusivo ao público infantil: desde os gibis da Turma da Mônica até as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo de Monteiro Lobato, ou se quisermos extrapolar para outros meios, poderíamos citar os desenhos animados que encantam predominantemente as crianças, de Tom e Jerry à Pica Pau. Não se trata aqui de tripudiar todos estes exemplos: se os gibis de autoria de Maurício de Souza ficaram na memória de muitos, é porque souberam dialogar junto ao público infantil o que envolve uma capacidade de vencer uma certa tendência de dispersão das crianças, fruto de uma mente comumente imaginativa e inquieta.

Todavia há a literatura infantil que poderíamos classificar como uma espécie particular: são histórias que possuem vivo interesse também para adultos. Histórias aparentemente destinadas para crianças mas que costumam oferecer enunciados pedagógicos, adágios morais ou reflexões filosóficas que por um lado marcam num primeiro momento o leitor infanto-juvenil e posteriormente possibilitam novas possibilidades de interpretação ao leitor adulto, às “pessoas grandes” nos termos do presente livro. É exemplo da segunda espécie este “Pequeno Príncipe” do francês Saint-Exupéry, um livro notável pelas qualidades literárias em que se conjuga a simplicidade da narrativa e uma riqueza de temas que vão do amor (personificado tanto numa rosa quanto na ideia da criação de laços dentro de uma feliz opção de tradução de “domesticar” contendo a ideia de “criar vínculos”), da solidão, do valor do trabalho e da diligência (que criou “uma urgência” para o narrador abordar o tema do Baobá), da morte e até mesmo de Deus e das opções religiosas.

Sobre a Obra

O enredo é contado na forma de um realismo mágico, com palavras simples e acessíveis, conforme a proposta da obra - dedicada ao público infantil. Um Aviador que antes havia sido desencorajado a desenhar revela desde o início a ideia de oposição entre o universo adulto e infantil:  ao longo da narrativa afere-se que o os conselhos das pessoas grandes implicaram ao narrador no abandono da criança  que poderia viver dentro de si, para o posterior reencontro deste universo infantil através da aparição do pequeno príncipe em sua vida.

O Aviador cai no deserto do Saara. Com o avião quebrado, sem água e sem recursos para sobreviver, o adulto teme a morte, até a aparição mágica do protagonista que sucessivamente vai descrevendo sua vida no planeta asteroide B612, os cuidados diários com a planta daninha ressaltando o valor do trabalho e os perigos da preguiça, suas viagens sucessivas em diversos planetas, cada qual associado a vícios particulares de pessoas adultas como a vaidade, a culpa e o vício, ou a compulsão pela posse: o sentido do amor personificado na figura da flor e na domesticação proposta pela raposa, passagens prenhes de sentidos os mais diversos e que só ressaltam os méritos literários e aquele segundo aspecto ressaltado: o fato do livro ter vivo interesse aos adultos.

Parece-nos que a flor e a domesticação são dois problemas-chave para se desvendar o universo deste pequeno livro - pouco mais de 100 páginas.

Propomos a interpretação segundo a qual a flor invoca o amor conjugal: quando o pequeno príncipe faz menção ao tema pela primeira vez ao aviador e este, pouco atento à conversa e preocupado em ajustar seus equipamentos, provoca pela primeira vez o choro no pequeno príncipe. É como se os adultos não se importassem com a relevância do problema tão central quanto o do amor. Em sua aparição, a flor é orgulhosa e se recusa a chorar na frente do pequeno príncipe; ela forja uma gripe pois deseja que o herói construa uma proteção especial para ela - a presença feminina e um contrato social segundo o qual cabe ao parceiro masculino um papel de proteção; o pequeno príncipe percebe, todavia, a manipulação e em razão da flor o protagonista deixa o seu planeta, mantendo por ela, todavia, fidelidade.

“Assim, o pequeno príncipe, apesar da boa vontade de seu amor, logo passou a duvidar da flor. Levara a sério palavras sem importância, e tornou-se muito infeliz.

- Eu não deveria tê-la escutado- confidenciou-me um dia – Nunca se deve escutar as flores. Deve-se apenas olhá-las e cheirá-las. A minha perfumava meu planeta, mas eu não conseguia mais me alegrar com isso. Aquela histórias de garras que tanto me aborreceu deveria ter me comovido....”

Como se vê é uma passagem que sugere o tema da frustração amorosa, sugerindo como a história infantil, aqui, trabalha o problema da resiliência, pincelando não apenas o que é cândido e puro, mas o que é real e concreto, as frustrações e tristezas que as crianças se depararão na vida futura. E o livro segue e evolui com problemas ainda mais delicados como a morte e o sentido da vida, o mistério do que há para além das estrelas, possibilitando tanto risadas quanto o choro.

Seja como for, parece-nos que o “Pequeno Príncipe” também oferece uma importante lição aos adultos e que se expressa como uma expectativa final do aviador na passagem final da narrativa. O encontro entre os dois personagens (aviador e pequeno príncipe) envolve a possibilidade e a pertinência de manter dentro do aviador dali em diante uma viva criança dentro de si ao olhar o céu à noite. Isto envolve estar atento às passagens dos planetas do Rei, donde a solidão se associa ao vício da soberba. Ao Planeta do vaidoso, donde o ego precisa ser domesticado e não dominador. Pelo Planeta do alcoólatra, donde se expõe os riscos da culpa e do vício. E a lição da criança que poderia ser mantida viva dentro do adulto, em termos genéricos, envolvendo desde a noção de ver a vida com encanto – como o pequeno príncipe observa todas as noites as estrelas – até “não levar a vida tão a sério”, “desenvolver a habilidade de rir de si próprio”, “aprender que na vida o importante não é vencer, mas ser feliz”.

À guisa de conclusão, deixamos uma passagem que perfeitamente poderia ser trabalhada numa aula de filosofia para alunos do ensino fundamental ou médio. Parece-nos que o “Pequeno Príncipe” poderia ser melhor aproveitado no mínimo como fonte de reflexão em detrimento de outras leituras que se tornam obrigatórias nos bancos escolares exclusivamente em razão das provas dos vestibulares – livros este sim de “adulto” ou “pessoas grandes” que criam o risco de afastar os menores do interesse pela leitura. Sobre o excerto, sugerimos uma interpretação associada à ideia da religião e de deus, envolvendo uma lição geral de tolerância (deus está calado em face das distintas narrativas religiosas):

“- As pessoas não têm as mesmas estrelas. Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, que são sábios, são problemas. Para meu empresário, elas eram ouro. Mas todas aquelas estrelas se calam.”