quarta-feira, 15 de julho de 2015

“O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky

“O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky



Resenha Livro -  “O Socialismo Jurídico” – Friedrich Engels e Karl Kautsky – Boitempo Editorial
O artigo “O Socialismo Jurídico” foi planejado por F. Engels e escrito por ele e por Kautsky, com publicação no ano de 1887 pela “Die Neue Zeit”. Na verdade, com o tempo descobriu-se que o artigo começou sendo redigido por F. Engels e este, após ter sido cometido por enfermidade, delegou a tarefa de terminar este importante trabalho a Kautsky. Relevante texto na medida em que o parceiro de Marx, aqui, tinha como objetivo central dar respostas a ataques contra à Marx (falecido desde 1883)  desde o livro do professor de Direito Processual da Universidade de Viena, Anton Menger, obra denominada “O Direito ao produto integral ao trabalho historicamente exposto”. 

Para o leitor contemporâneo, a resposta de Engels ganha relevância nem tanto em sua tarefa de combater as falsificações de Menger sobre o trabalho de Marx. Menger alega que supostamente teria havido plágio de autores socialistas franceses que precederam Marx: isso valeria para a teoria da mais valia (que de todo resto é inteiramente incompreendida pelo jurista austríaco) bem como é debita à autoria de Marx uma formulação jurídica da qual ele nunca foi autor (e que remete ao socialismo utópico) que é a do “direito ao produto integral do trabalho”. 

Mais importante do que as refutações a Menger, são as críticas ao Socialismo Jurídico que perpassam o artigo. O Socialismo Jurídico conta com certa influência na ala direita da social democracia alemã, é uma ala reformista e pelo exposto contrária mesmo ao marxismo. 

Podemos identificar as origens do Socialismo Jurídico na história, conforme diz Engels:

“Mas a burguesia engendrou o antípoda de si mesma, o proletariado, e com ele novo conflito de classes, que irrompeu antes mesmo de a burguesia conquistar plenamente o poder político. Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional de mundo, também o proletário recebeu incialmente de sua adversária a concepção jurídica e tentou volta-la contra a burguesia. As primeiras formações partidárias proletárias, assim como seus representantes teóricos, mantiveram-se estritamente no jurídico “terreno do direito” , embora construíssem para si um terreno do direito diferente daquele da burguesia. De um lado a reivindicação da igualdade jurídica foi ampliada, buscando completar a igualdade jurídica com igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto dos trabalhos dos trabalhadores deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores”. 

Em outros termos, a concepção jurídica de mundo é uma particularidade da sociedade burguesa e ela se projeta adiante na história com o desenvolvimento do capitalismo e a polarização entre as duas novas classes antagônicas, capitalistas e trabalhadores. Os trabalhadores não são imunes a essa sombra que se emana nas novas relações sociais, mas a alteram, sem contudo, revolucionar efetivamente toda a sociedade (por meio de novas relações sociais decorrentes de um novo modo de produção) que não são determinados pelo direito, mas, o inverso, são determinantes do fenômeno jurídico. 

Este não é a linha política do “Socialismo Jurídico” que não obstante redundaria na ala mais direitista e reformista da social democracia alemã, advogando a transformação da sociedade em direção ao socialismo por meio do direito e da lei. Vejamos o que diz Menger: 

“As mudanças sociais necessárias (da ordem jurídica vigente) se realizarão no decorrer de longo desenvolvimento histórico no decorrer de longo desenvolvimento, do mesmo modo que a nossa atual ordem social desagregou e destruiu o sistema feudal no decurso dos séculos, até que finalmente só foi necessário um empurrão para que ele autoabolisse inteiramente”. 

Nada mais estranho tais ideias ao projeto político encampado por Marx, Engels e sua tradição, que envolve a organização e a luta dos trabalhadores em unidade em todo mundo contra a opressão e exploração, não se cogitando aguardar o momento histórico “maduro” para com um “empurrão” avançar rumo a uma modelo societário mais civilizado. 

Finalmente, Engels constata que os partidos socialistas fazem determinadas reivindicações jurídicas que irão variar de acordo com local e com o tempo. Mas o que se está em discussão é a concepção do direito para os marxistas: em última instância trata-se uma forma necessária encontrada para a circulação de mercadoria, para a subsunção do trabalho ao capital, para a alienação e especialmente para a configuração de um sujeito de direito que em condições de igualdade formal e liberdade (autonomia da vontade) dispõe da possibilidade de venda e compra da força de trabalho. O Direito é um fenômeno com especificamente capitalista e que, na terminologia leninista, poderia nos servir enquanto fonte de lutas táticas ou mesmo defensivas e não como um horizonte estratégico, tal qual o socialismo jurídico e suas roupagens mais modernas na forma de socialismo “democrático”, “socialismo e liberdade”, etc.  


terça-feira, 14 de julho de 2015

“A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves

“A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves




Resenha Livro 179- “A Questão do Direito em Marx” – Márcio Bilharinho Naves – Ed. Outras Vozes – Coleção Direitos e Lutas Sociais 

Márcio Bilharinho Naves é formado em Direito pela USP, Doutor em filosofia pela Unicamp e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas desta universidade. Participa do Grupo de Estudos althusserianos da Unicamp, um dos poucos núcleos aqui no Brasil que, dentro do marxismo, alinha-se às teses do pensador francês. Márcio Naves é autor de obras sobre Althusser, Pachukanis (o principal jurista dos primeiros anos de transição pós revolução 1917 na Rússia bolchevique) e Mao (uma liderança que, a despeito das críticas da burguesia e do marxismo ocidental, foi reivindicado em certos aspectos por Althusser).

Como se sabe, a 11ª tese de Feuerbach (1845) de Marx criou um aspecto que diferencia o marxismo das demais correntes políticas e filosóficas de seu tempo e mesmo das tradições que viriam a seguir.

É famosa a consigna segundo a qual:

Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo.

Trata-se de uma assertiva curta mas com um extenso significado. O marxismo abandona a tradição meramente especulativa da filosofia e passa a ser também uma ferramenta de transformação da realidade. Temos, didaticamente, duas interfaces fundamentais do marxismo: o marxismo enquanto corrente política (voltada à “transformar o mundo”) e o marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico (voltado a “interpretar o mundo”, de forma científica, acrescentaríamos).

O que devemos ter como ponto de partida é que em ambas perspectivas (política e teórico-metodológica) o marxismo é todo ele eivado de divisões internas, de diferentes interpretações que não só são divergentes, mas eventualmente antagônicas entre si.

Interessa-nos aqui especificamente o problema do marxismo enquanto pressuposto teórico-metodológico. Poderíamos citar diferenças que envolvem desde aqueles que reivindicam um marxismo ortodoxo (marxismo-leninismo) fiel às categorias fundantes de Marx, Engels e Lênin com a sua adequação a partir da análise concreta à situação concreta (ortodoxia não é dogmatismo) até uma tendência que vem sendo bastante difundida desde os anos 1990 de um “ecletismo” que terá as categorias do marxismo como um dos ingredientes de outros pensadores do pós-estruturalismo, deixando de lado na maioria dos casos o compromisso de um projeto revolucionário, o “transformar o mundo” – pode-se falar num marxismo academicista.

Outra clivagem interessante, e que nos interessa nesta leitura sobre o Direito e Marx, diz respeito ao entendimento do significado do pensamento do jovem Marx no contexto de sua obra em geral.
Uma corrente (que é dominante no Brasil) dirá que existe um movimento de continuidade entre as obras do Jovem Marx que constam das publicações na “Gazeta Renana” e nos “Manuscritos de 1844”, nos escritos sobre emancipação humana da “Questão Judaica”, passando pelas descobertas mais a fundo acerca da teoria da história em “A Ideologia Alemã”, até a plena maturidade do autor nas obras sobre história quando escreve sobre a Comuna de Paris (Guerra Civil na França – 1871) e o Capital. De certa maneira esta tradição reivindica as ideias do jovem Marx que, ainda neste momento, está bastante influenciado pela geração dos jovens hegelianos de esquerda, e é por isso denominado como um Marx Humanista.

O principal autor que se orienta por esta perspectiva é Gyögy Lukacs e pode-se dizer que ela é hegemônica dentre os intelectuais brasileiros: Carlos Nelson Coutinho e mesmo Florestan Fernandes em comentários sobre este tema se mostram a favor desta solução de continuidade entre o jovem e velho Marx.

Pois Márcio Bilharino Naves parte do ponto de vista althusseriano. Segundo Althusser, o entendimento da obra de Marx deve ser feito considerando uma cisão/ruptura entre as obras de juventude e da maturidade em Marx de forma que, e especialmente no que tange à teoria do direito, só poderemos captar o que é verdadeiramente jurídico em Marx a partir da leitura do Capital.
O entendimento do Direito em Marx é produto de uma construção lenta e gradual que se completa justamente quando o velho Mouro descobre os fundamentos de sua crítica à economia política desde o livro 1 do Capital. Antes disso, se formos às fontes do Jovem Marx (relembrando que o mesmo foi um bacharel em direito) chegaremos ao ponto de encontra-lo defendendo o.....jusnaturalismo.
Sobre este período “pré-marxista” de Marx sobre o direito, afirma o autor:

“Esse período compreende duas fases: na primeira, na época da Gazeta Renana, Marx sustenta uma posição jusnaturalista e liberal radical; na segunda, na época dos Anais Franco-alemães, Marx defende posições humanistas que o levam do democratismo extremo de Sobre a Questão Judaica ao comunismo especulativo dos Manuscritos de 44.”

O que falta à crítica da juventude é os conhecimentos da economia política a partir do qual Marx irá detectar como o direito é uma forma (no sentido literal da palavra, como se fosse uma forma de modelar) adaptada para a subsunção do trabalho ao capital e, o que é mais importante, derivada, especificamente das sociedades capitalistas. O direito surge com a noção de sujeito de direito, tendo em vista as relações jurídicas formais para os sujeitos de direito contratarem compra e venda da força de trabalho e formalmente estabelecerem relações “iguais” e “livres”.

Assim, “(O Jovem Marx) capta apenas o movimento mais superficial da sociedade burguesa, o efeito do processo do capital que ele ainda não é capaz de apreender. De modo que Marx apenas descreve as formas aparentes da sociabilidade burguesa sem estabelecer o seu vínculo com as relações de produção e circulação que as tornam inteligíveis. Influenciado pelo humanismo feuerbachiano e por sua teoria da alienação, Marx acaba por promover o reforço da ideologia jurídica ao colocar no centro da análise a categoria da propriedade privada”. 

Os primeiros contornos para uma definição mais concreta do fenômeno jurídico seguirá pari passo o próprio desenvolvimento do capitalismo. No plano filosófico, os autores essenciais são Kant e sua categoria do Direito Pessoal Real que exprime uma tentativa de conciliar a liberdade do indivíduo e a exigência de ainda pensá-lo como coisa, na medida em que trabalha para outrem (considerando, outrossim, que Kant é um filósofo da alvorada do capitalismo);Hegel com sua noção de sujeito de direito universal, quando todo o homem passa a ter reconhecida a mesma capacidade que o direito lhe confere de realizar atos jurídicos e celebrar contatos; e finalmente Marx que irá trazer todas estas cogitações para o plano das relações de circulação e produção, observando como o direito é em primeiro lugar um fenômeno específico da sociedade do capital (e portanto sociedades pré-capitalistas como a Romana a rigor não conheceram Direito, mas outros tipos de manifestações que envolviam regramentos, tradições místicas, religião, mas que nunca tinham a regra de ouro do fenômeno jurídico que é o da equivalência formal).

“Procurando avançar nessa terra incógnita podemos afirmar, então, que o que é específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é subsumido realmente ao capital. O direito é um modo de organização da subjetividade humana que torna capaz de expressão de vontade, com o que é possível a instauração de um circuito de trocas no qual a própria subjetividade adquire uma natureza mercantil sem com isso perder a sua autonomia.

Mas é somente nas condições de existência de um modo de produção especificamente capitalista que o indivíduo pode se apresentar desprovido de quaisquer atributos particulares e qualidades próprias que o distingam de outros homens; ele se apresenta como pura abstração, como pura condensação de capacidade volitiva indiferenciada”. 

E adiante, continua o professor Márcio:

“Desse modo, podemos considerar que em Marx o Direito é essa forma social sui generis, a forma da equivalência subjetiva autônoma. A nosso ver, esse conceito capta as determinações essenciais da análise do direito que Marx realiza em sua obra de maturidade, especialmente em O Capital e, considerando a sua análise do processo de subsunção real do trabalho ao capital, afirma a especificidade burguesa do direito, permitindo que se estabeleça uma demarcação nítida entre o fenômeno jurídico e outras formas sociais – consideradas pela tradição como sendo também jurídicas – próprias das formações sociais pré-burguesas.

Assim podemos formular esta sentença resolutamente anti-normativista: só há direito em uma relação de equivalência na qual os homens estão reduzidos a uma mesma unidade comum de medida em decorrência da sua subordinação real ao capital”.

Diante de tais assertivas, eventualmente alguns ativistas da área do direito (bem intencionados) podem perguntar a si próprios o que restaria fazer em termos práticos diante da constatação da intensa imbricação entre capitalismo, dominação oculta do capital sobre o trabalho e direito? Em que medida, intervenções do tipo assistencialistas não implicariam na perpetuação das ilusões jurídicas enquanto a meta seria a de destruição (extinção) do direito? Certamente não há aqui fórmulas prontas, mas há algo a se observar que são os pontos de fissura a partir dos quais é possível avançar no questionamento da ordem da legalidade:

“Se o direito e a ideologia jurídica podem emperrar, será ali onde o “sujeito for abalado em sua quietude, em sua certeza, em sua jurisprudência morta, ultrapassado por qualquer coisa irrepresentável na forma subjetiva de uma abstrata troca de valores. Talvez não saibamos como, talvez não saibamos muito, mas o conhecimento não ideológico que Marx e Pachukanis nos deram da relação de capital e de sua forma jurídica necessária remete para o que talvez possa ser um passo para sair desse mundo de espelhos: a dissolução dos títulos “científicos” do direito, o descompromisso com a legalidade, a interdição aos “socialismos jurídicos” e a redução de todas as manifestações do “jurídico” a uma fórmula “essencial” que ao mesmo tempo, seja conhecimento e recusa: o direito como mero, simples, banal, momento subjetivo de troca de equivalentes”.   


domingo, 12 de julho de 2015

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida

“Memórias de um Sargento de Milícias” – Manuel Antônio de Almeida 




Resenha Livro 178– Memórias de um Sargento de Milícias – Editora Ática 

Pode-se dizer que este romance bem como o autor estiveram deslocados de seu tempo. A obra foi publicada entre 1852 a 1853 junto aos leitores cariocas do Correio Mercantil, um jornal por sinal bastante importante para vida cultural do país tendo em sua redação, entre outros, José de Alencar e Quintino Bocaiúva.

Depois da publicação no periódico, as “Memórias” sairiam publicadas em dois volumes sob a assinatura de “por um brasileiro”. Não tiveram grande expressão junto ao público sendo certo que até 1900 a obra teria apenas 6 edições. Apenas nos anos de 1940, com alguns trabalhos da crítica literária feitos do Mário de Andrade e Antônio Cândido, detectou-se não estar-se diante de um mero romance de costumes ( um equivalente literário aos quadros do pintor francês Debret que esteve no Brasil e buscou igualmente fazer este trabalho histórico), mas de um romance de relevo, genuíno em suas formas e que em certos aspectos remete ao pícaro espanhol ou ao malandro, personagem conhecido na tradição cultural brasileira.

O que acontece é que “Memórias de um Sargento de Milícia”(1852-3) surge num contexto literário onde predomina o romantismo literário, com suas características relacionadas ao subjetivismo, ao sentimentalismo e ao elogio ao amor, características inteiramente distintas ao livro que é antes de tudo uma crônica do tipo humorística envolvendo personagens do subúrbio do Rio de Janeiro do “tempo do rei”.

Memórias de Sargento de Milícias é uma crônica da vida de diversos personagens durante o  período da vinda de Dom João VI ao Brasil: não existe uma densidade na narrativa que implicaria num aprofundamento da análise psicológica das personagens. Estes de certa forma são descritos de uma forma paisagística o que talvez justifique num primeiro momento a ideia de um romance de costumes. Ocorre que não se trata só de narrar costumes e hábitos de uma época:  estes são o pano de fundo para uma narrativa, para uma divertida história envolvendo Leonardo, filho de Leonardo Pataca, um português que desde o navio para o Brasil, a partir de uma piscadela e uma pisada no pé, se engraça com uma saloia portuguesa, resultando no nascimento de protagonista da história que ao fim e ao cabo, depois de passar uma vida de vadio e safar-se de suas inúmeras maracutaias, terminaria como Sargento de Milícias e junto a mulher desejada.

Começamos a resenha dizendo que o livro estava à frente de seu tempo. Tal característica se constata do fato da história se basear em personagens e ambientes do subúrbio do Rio de Janeiro. Observa-se que o narrador opta muitas vezes por não nomear os personagens, mas sim qualificá-los pela sua profissão: “o barbeiro”que é o compadre, “a vizinha” que faz provocações acerca do pequeno Leonardo e acaba sendo vítima de retaliações do pequeno; “a comadre” que também é parteira. O ambiente do subúrbio do Rio vai em sentido contrário dos romances românticos ou mesmo realistas dos momentos posteriores observados em Machado de Assis: a tradição das festas populares religiosas, quando todo o povo saia à rua a acompanhar a procissão; os fados e as festas populares; a crença em torno de rituais sobrenaturais (o que hoje em claro e bom português diríamos ser macumba e que então era reprimido com pena de prisão pela polícia); encontros festivos dos ciganos; as missas lotadas em datas religiosas. Todos estes aspectos da cultura popular de um período bastante longínquo fazem com que “Memórias de um Sargento de Milícias” apenas encontre na literatura obras paralelas produzidas décadas depois em Aluízio de Azevedo de “O Cortiço” e Lima Barreto de “Clara dos Anjos” e “O Triste Fim do Policarpo Quaresma”.

Um dos personagens mais intrigantes para um leitor do séc. XXI das “Memórias” é o Major Vidigal. Ele concentrava em si uma espécie de diversos poderes policiais e mesmo jurisdicionais, mandava e desmandava os malandros para cadeia, e através de diligências pessoais poderia ser convencido à soltura dos presos a partir do seu gosto pessoal. Com tantos poderes e diante de regras duras contra a vadiagem, todos temiam o Major Vidigal, ainda que, a seu tempo, o leitor poderá tomar ciência de que o todo poderoso aplicador da lei se deixava quedar pelo coração (mulher) e não aplicar a lei.

“O som daquela voz que dissera ‘abra a porta’ lançara entre eles, como dissemos, o espanto e o medo. E não foi sem razão: era ela o anúncio de um grande aperto, de que por certo não poderiam escapar. Nesse tempo ainda não estava organizada a polícia da cidade, ou antes estava-o de um modo em harmonia com as tendências e ideias da época. O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo da administração; era o juiz que julgava e distribuía pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunha, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação  das sentenças que dava, fazia o que queria e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamo-lhe justiça, dados os descontos necessários às ideias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado”.         

Hoje com a descoberta das “Memórias”, temos uma fonte histórica para se conhecer a cultura, a sociedade e mesmo os trejeitos e a forma de se falar da corte nas três primeiras décadas do séc. XIX. Alguns aspectos ainda permanecem vivos: o “jeitinho brasileiro” que envolve arranjar junto à burocracia do estado favores por intermédio de conhecidos é observado nas relações entre o Major Vidigal. A confusão entre o público e o privado é questão que está no bojo da formação do estado nacional brasileiro e que encontro expressão mesmo num despretensioso livro de comédia.

sábado, 4 de julho de 2015

“Os Bruzundangas” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo – São Paulo – 1961

“Os Bruzundangas” – Lima Barreto – Ed. Brasiliense São Paulo – São Paulo – 1961


Resenha Livro 177 - "Os Bruzundangas" / "As Aventuras do Doutor Bogóloff" - Ed. Brasiliense- São Paulo - 1961

A “República dos Estados Unidos da Brazundunga” é uma matáfora do Brasil. Trata-se de um raro exemplo de romance do tipo sátira de autoria do escritor por Lima Barreto, o principal expoente do período literário do pré-modernismo no Brasil. 

A Sátira encontra seu equivalente na caricatura ou mesmo naquilo que os sociólogos chamam de tipo ideal e é bem uma chave explicativa para se compreender um fenômeno social, uma cultura ou um povo. O tipo ideal Webberiano é uma espécie de generalização que permite ao observador de diversos fatos tais apreendê-los em seu caráter total, um recurso técnico portanto que forma uma terminologia comum; na arte a caricatura opera de forma semelhante ao tipo ideal Webberiano, concentrando os traços mais destacado de um personagem (nariz ou boca), com a diferença de que aqui há o evidente tom jocoso. 

A uma grande paródia sobre Brasil, correspondendo a espécie literária de tipo humorístico e ao mesmo tempo eivada de crítica social (Castigat ridendo mores – o riso castiga os costumes), em que se comenta o patrimonialismo, o bacharelismo e o apego aos meros títulos formais da Brazundanga, a política voltada unicamente à busca de cargo para parentes (nepotismo) desprovida de qualquer cogitação político-ideológica, a crítica literária e os artistas dentro de uma patética tradição de importar um regime de arte totalmente alheia à tradição local, a aristocracia política formada por nomeações que atendem interesses familiares e pecuniários, e por aí vai. 

Só o fato de termos um romance na forma de sátira e a atualidade da crítica mordaz de Lima Barreto, ele próprio em vida um mulato e nunca reconhecido em vida por seus talentos e com uma perspectiva privilegiada para as críticas perpetradas, sugeriria maior disseminação de tal obra ainda hoje pouco conhecida. Uma das eventuais explicações deve-se ao fato de que o livro foi publicado postumamente de forma incompleta e sem ser revisto pelo escritor. Diante de apertos financeiros, Lima Barreto confiou os originais ao editor Jacinto Ribeiro dos Santos que lhe pagou setenta mil réis pelos direitos da obra “por todo o sempre”. Antes o livro havia sido publicado no jornal Periódico do ABC de 1917 e depois com a posse dos direitos autorais junto à família do autor, estariam os capítulos completos, sem revisão, além de alguns não incluídos na primeira edição de Jacinto Ribeiro. 

Crítica ao Brasil por meio da Brazundanga 

A sátira tem o condão de ir destacando alguns dos vícios mais proeminentes da sociedade brasileira (objeto da paródia) e levá-los a uma espécie de extremo que causa no leitor um efeito de um humor e de reflexão crítica. Um exemplo, é o apego às formas em detrimento ao conteúdo, o formalismo que se satisfaz com as aparências do saber. O bacharelismo e o peso do título de doutor nestas terras têm como resultado uma mediocridade geral, em que eventuais capazes, sem protegidos e títulos são defenestrados pelo meio. 

“Digo – “caracteriza”, porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que as impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-la pelo amor sincero em que as têm, de querê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que  eles pretender exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais dó exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra coisa pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que ela exige em troca”. 

Temos aqui portando, a crítica ao formalismo, ao bacharelismo e à má conduta de uma elite que não exercem suas profissões à altura das expectativas mas consoante interesses mesquinhos e à vaidade pessoal. No que tange especificamente aos bacharéis, nas Brazundangas ela forma uma aristocracia doutoral, com uma hierarquia própria, que vai dos doutores em Direito e Engenharia (mais considerados e visados pelas moça a fim de casamentos...) e dentistas (nas escala doutoral escalão mais baixo). Num país onde a maracutaia é a regra, muitos cidadãos compram seus títulos de barão na Europa e são realmente respeitados pelo povo de Brazundanga que engole tal engodo. 

Em suma poderíamos infelizmente dar como de certa atualidade (ainda que com certo exagero, como se fosse uma caricatura do Brasil) as críticas na sátira das Brazundangas em Lima Barreto. Talvez poderíamos dizer que apenas no que tange a literatura, o panorama mudaria pouco tempo depois da obra ser publicada (1917) com geração da arte moderna de 1922 que ao contrário da tradição de até então, inaugurou no Brasil uma arte com fontes verdadeiramente nacionais. Sabe-se que Lima Barreto teve posições reservadas com o movimento modernista de 1922. Mas é inegável a importância daquela vanguarda no sentido de tirar a literatura e as artes nacionais da área de influência e dependência francesas. 

Lima Barreto é um escritor que se insere num momento de transição na literatura, o do pré-modernismo, caracterizado naquele escritor pela literatura de subúrbio do Rio de Janeiro, denúncia das desigualdades sociais e do racismo. O escritor foi muito criticado em sua época por sua linguagem popular, teve problemas de alcoolismo e terminou a vida num manicômio. 

Finalmente, nesta edição que compõe as obras completas de Lima Barreto vai uma pequena novela do autor denominada “Aventuras do Doutor Bogóloff”. Trata-se de um Russo filho de pai modesto dono de uma pequena livraria – na juventude o jovem mantém alguns contatos com movimentos anarquistas e é preso para desgosto do pai, um humilde que via o Czar como paizinho. Pouco tempo depois o pai morre e após ser solto e com a perseguição policial, Bogóloff resolve tentar a vida  no Brasil, diante de propagandas sugerindo ser aqui o melhor dos mundos. A interface entre esta novela e Bruzundanga é justamente  a crítica aos costumes, sociedade, políticos e povo brasileiro, desta vez feita por um imigrante que em alguns anos tem uma trajetória fantástica pelo país – possibilitando observar o Brasil desde várias perspectivas. Começa trabalhando numa colônias de europeus no Sul onde constata alto volume de trabalho para pouco rendimento. Dirige-se à corte, e consegue uma entrevista junto a um parlamentar e com uma conversinha fiada sobre técnicas de agricultura é nomeado numa canetada Diretor da Pecuária – quando passa a ganhar um alto soldo do tesouro público para basicamente assinar papeis. Em função de um mal entendido, durante uma viagem de pesquisas para a implantação de seu projeto é destituído do cargo, todos o abandonam, e consegue sobrevivem na base da malandragem com pequenos delitos. Faz-se de crítico de arte e de pintor, sem nunca ter pintado na vida e engana toda uma sociedade – o fato de ser loiro, estrangeiro e sobrenome Bogóloff, contribui para a peça plantada, e por aí vai. 

Lima Barreto é um dos primeiros escritores a dar voz a personagens fora do ambiente burguês e seus livros remetem à perspectiva de um jornalista com uma perspectiva crítica bastante acentuada sobre seu tempo. Foi um rebelde e por isso morreu isolado. Hoje merece ser resgatado e conhecido. 

quinta-feira, 18 de junho de 2015

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx

“Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx
Resenha Livro 176 – “Crítica do Programa de Gotha” – Karl Marx - Ed. Boitempo




Entre os dias 22 e 27 de Maio de 1875 ocorreu na cidade de Gotha na Prússia o congresso de unificação dos dois grandes partidos operários alemães: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundado em 1864 e tendo por líder máximo Ferdinad Lassalle (morto em 1864) e o Partido Social Democrata dos Trabalhadores, fundado em 1869 e dirigido por Liebknecht, Bracke e Bebel, contando, ademais, com  colaboração de Marx e Engels.

Ocorre que a forma como se deu a unificação dos dois partidos implicou na sub-rogação do programa da social democracia alemã marxista, que uma vez baseada desde o ponto de vista teórico entre outros pelos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores e pelo próprio Manifesto Comunista, se submeteu no congresso ao programa político Lassaliano. 

“A crítica ao Programa de Gotha” são as glosa marginais escritas ao longo do programa por Marx, um crítica decidida e virulenta contra uma forma de socialismo não consequente que seria incorporado dentro do estatuto do novo partido operário da Alemanha. Isso significava que Marx e Engels se colocariam contra a formação do novo partido? Não! Nas palavras do Velho Mouro, “Cada passo do movimento real é mais importante do que meia dúzia de programas”. Nesse sentido, a unidade representava um avanço, em que pese todos os erros enunciado pela organização partidária que nascia. Outrossim, Marx e Engels não criticaram publicamente o programa diante de uma opção política tática, como revela uma carta de Engels a Bebel datada de 12 de Outubro de 1875:

“Em vez disso, os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas esta circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa. Enquanto nossos oponentes e também os trabalhadores atribuírem a esse programa os nossos pontos de vista, poderemos silenciar sobre isso”. 

As críticas de Marx ao programa de Gotha são essencialmente conceituais e incidem sobre o espírito lassaliano do programa aprovado desde que certa fraseologia que se extrai do texto decorre das ideias do antigo dirigente do partido alemão. É o caso da “Lei de Bronze dos Salários”, que consta no programa, como se os salários na sociedades capitalistas seguissem uma espécie de lei natural e imutável. Outra ideia particularmente combatida por Marx dentro corresponde à passagem segundo a qual “a libertação do trabalho tem de ser obra da classe trabalhadora, diante da qual todas as outras classes são uma só massa reacionária”. Tal concepção, segundo Marx, subestima a necessidade de uma política de coalizão com os camponeses na luta contra a reação feudal o que se verificaria ipsis litteris na Revolução Russa de 1917 ou mesmo em Revoluções que tiveram como ponto de partida o campesinato como em Cuba ou Nicarágua. Outrossim, a burguesia junto às classes médias, em face da aristocracia feudal, naquele período histórico e em alguns lugares ainda tinha a cumprir um papel revolucionário. De outro lado, o que se sabe é que Lassalle, que foi um dirigente de nassas, foi acusado de negociar junto a Bismarck, e eventualmente tal sectarismo teria como condão preservar os setores políticos mais reacionários da Prússia. 

A questão das cooperativas também são alvo das críticas de Marx no que tange a sua subvenção pelo Estado. 

“A organização socialista do trabalho total, em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da ‘subvenção estatal’, subvenção que o Estado concede às cooperativas de produção “criadas” por ele, e não pelos trabalhadores. É algo digno da presunção de Lassalle imaginar que, por meio de subvenção estatal, seja possível construir uma nova sociedade da mesma forma que se constrói uma nova ferrovia!”. 

E as confusões acerca da questão do estado são reiteradas e esclarecidas por Marx quando o programa aborda a questão dos impostos progressivos.

Dentre as consignas ou o que poderíamos chamar de programa mínimo do partido alemão, muitas delas já são hoje uma realidade na democracia burguesa do século XXI. São elas o Sufrágio Universal, proibição do trabalho infantil (formal nos dias de hoje) e regulação do trabalho prisional. Outras não se verificam como a Jurisdição pelo povo e assistência jurídica gratuita, preparação militar geral e milícia popular no lugar do exército permanente e autoadministração completa para todos os fundos de assistência e previdência dos trabalhadores. 

A edição da Boitempo da “Crítica do Programa de Gotha” é uma importante fonte de estudos acerca das ideias de Marx sobre o programa partidário dos socialistas. A edição conta não só com as glosas, mas com cartas referentes ao documento, um prefácio de M. Löwy e um “Resumo Crítico de Estatismo e Anarquia” de Bakunin em que Marx rebate as críticas do ativista libertário russo às suas concepções sobre estado ou mesmo às falsas concepções a ele atribuídas sobre estado e revoluções. 

A atualidade desta obra reside nas críticas acerca da concepção do estado seja quanto ao entendimento reformista de Lassalle, seja dentro das críticas de Bakunin  – de maneira contundente e eficaz, Marx demonstra os limites e mesmo o oportunismo das posições políticas reformistas e anarquistas quanto ao papel do estado dentro do processo de transição. Sai-se convencido que apenas a leitura marxista oferece uma percepção científica do fenômeno de transição societário desde a sociedade em que estamos rumo à sociedade que almejamos, sem classes e sem exploração.  

sexta-feira, 12 de junho de 2015

“Primo Basílio” - Eça de Queirós

“Primo Basílio” - Eça de Queirós



Resenha Livro -175 “Primo Basílio” - Eça de Queirós – Editora Ática

O Primo Basílio foi publicado em 1878, correspondendo à obra da fase realista de Eça de Queirós (1845-1900).

O escritor português é na verdade um dos fundadores de tal escola literária em Portugal, assumindo mesmo uma posição de engajamento dentro da literatura. Engajamento em dois sentidos. Primeiro para criticar a sociedade e as instituições portuguesas, especificamente seu clero católico e o instituto do celibato dos Padres (“O crime do Padre Amaro” de 1875) e a família e o casamento (“O Primo Basílio” e “Os Maias” de 1880). E o segundo sentido de seu engajamento dá-se desde o seu pertencimento à uma geração de escritores que deram início à escola realista em Portugal,  destacando-se Antero de Quental (que depois se tornaria presidente de Portugal) e Teófilo Braga (introdutor de ideais socialistas junto a Eça), ambos, como Queirós, egressos da tradicional Faculdade de Direito de Coimbra.

O movimento realista literário em Portugal nasce em confronto com a tradição literária romântica então liderada por A. de Castilho – a proposta é combater a ideia da arte pela arte, bem como o subjetivismo e o idealismo românticos e criticar os costumes retrógrados de uma sociedade atrasada como a portuguesa. Enquanto o desenvolvimento industrial e capitalista culminava na ascensão da classe burguesa e das novas suas ideias, lastreadas especialmente no pensamento filosófico e literário francês, a velha Portugal ainda estava regida sob a monarquia e uma cultura patrimonialista e formalista, um ambiente acanhado o que, na arte, se reproduzia numa forma ultra-sentimental e de conteúdo medíocre. Houve debates entre os realistas e românticos e uma série de conferências dos renovadores com o intuito de mudar os rumos  do ambiente cultural português.

Numa carta ao amigo Teófilo Braga, Eça sinaliza sua intenção que repercute o projeto realista:

“Minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam – eles e elas. É o meu fim nas ‘Cenas da Vida Portuguesa’. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações; que lhe dá uma sociedade podre”.

Destacamos a passagem em que Eça faz menção às instituições, reverenciando-as. Trata-se exatamente de instituições que o escritor irá demolir no “Primo Basílio” como o casamento, diante da traição de Luiza, bem como da traição de Jorge na província e a reiterada falta de respeito mútuo entre os casais ou a família que também é, ao término da história, destruída estupidamente em função de um mero capricho, de uma satisfação sexual momentânea do primo Basílio. Uma contradição? Não. Na mesma carta, prossegue Eça de Queirós comentando seu livro:

“Perfeitamente: mas eu não ataco a família – ataco a família lisboeta – a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochada”.

Há aqui a crítica social que se vira contra o formalismo oficial que se expressa na figura do Conselheiro Acácio, um personagem patético que remete ao José Dias de Dom Casmurro do Machado de Assis, com um linguajar cheio de superlativos, uma gravidade na postura que omite o fato de que, às escondidas dos olhos da sociedade, tem uma mulher à sua cama, que por sinal divide com outro homem; a beatice carola de Dona Felicidade, que combina seu cristianismo com as crendices recorrendo à feitiçaria para tentar encantar o homem por que seu coração ambiciona....o Conselheiro Acácio; Luíza, “senhora sentimerntal”, burguesa, mulher do engenheiro Jorge e que, arrasada pelo excesso de leitura de livros de estilo romântico se deixará seduzir pelo  primo Basílio, conduzindo a história para os fins trágicos.

A intenção de Eça ao escrever a sua tríada realista, qual seja, “O Crime do Padre Amaro”, “Primo Basílio” e “Os Maias” não era obviamente anarquizar ou destruir as instituições de seu país, mas reformá-las, modernizá-las conforme as novas tendências de um mundo em rápido progresso econômico e industrial de meados do século XIX. Um mundo novo com o surgimento de cidades, operários e burgueses: o que estava em vista dos jovens modernizadores da literatura portuguesa era levar à provinciana, beata e atrasada Portugal o correspondente no plano das ideias da revolução industrial e da expansão econômica daquele período – é parte das cogitações de Eça de Queiroz as ideias de autores como Taine, Darwin (evolucionismo) e A. Conte (positivismo). Deve ser enquadrado como um escritor modernizador e introdutor do realismo nas letras portuguesas reproduzindo uma visão social de mundo da burguesia em sua fase de ascensão histórica numa sociedade relativamente atrasada naquele momento, ao menos em face de países como Inglaterra e França.

Posteriormente, a partir de livros como “A Cidade e as Serras” (1901) e “A ilustre Casa de Ramires” (1902) o escritor passa para uma segunda fase literária, sendo talvez mais condescendente com os homens. Mas este é assunto para uma outra resenha.

terça-feira, 2 de junho de 2015

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis

“A Mão e A Luva” – Machado de Assis 




Resenha Livro 174 – “ A Mão e  a Luva” – Machado de Assis - Ed. Globo 


Estamos diante de uma novela cujos capítulos foram sendo publicados no ano de 1874. Trata-se portanto de obra correspondente à fase romântica de Machado de Assis, ao menos formalmente. Na “Advertência de 1874”, diz o autor que o formato em que foi publicada – sujeito às urgências da publicação diária – causou algumas dificuldades nas intenções do autor desenvolver o perfil dos personagens, particularmente a bela e desejada Guiomar, que certamente desempenha um papel central na história.

Caracterizamos o texto como novela, primeiro por ser assim que a ela se refere Machado de Assis na sua “Advertência”. Segundo diante de sua extensão: as novelas como se sabe costumam ser uma narrativa não tão longa quanto um romance mas nem tão curta quanto um conto.

Ainda que as características realistas não estejam plenamente presentes em “A Mão e a Luva”, pode-se classificar a obra como um momento já de transição. Alguns expedientes tipicamente machadianos como o diálogo entre o narrador (em terceira pessoa) e o leitor e mesmo algumas passagens de humor já nos remetem aos seus romances de maturidade, ainda que não se vislumbre a ironia e o humor sarcástico de um Memórias Póstumas de Brás Cubas – para tal expediente seria necessária uma ruptura com o estilo romântico que envolveria questionamentos ainda não detectados em “A Mão e a Luva”.

A história tem como ponto de partida o amor frustrado de Estêvão por Guiomar, ele então um acadêmico de Direito de São Paulo e ela uma professora e estudante de letras de 17 anos. A rejeição amorosa fez com que o acadêmico – ao estilo byronista que remete tão bem aos poetas boêmios da Academia de São Paulo como Álvares de Azevedo – pense no suicídio e sofra sua primeira grande desilusão amorosa ao lado do colega de curso Luís Alves. Este amor perduraria dois anos depois, quando ambos colegas, bacharéis em Direito, retornariam ao Rio de Janeiro e mais uma vez se deparariam com a bela musa do passado.

Estêvão passara os dois anos sem se lembrar de Guiomar mas bastou ver-lhe para reacender o coração pela fonte do amor partido. Mais uma vez rejeitado, revela-se como o amor em Estêvão é eivado de um sentimentalismo que remete via de regra ao gênero feminino, causando quando muito irritação à jovem Guiomar. Talvez tal fato se explique pela origem de vida de ambos: ele um ex-acadêmico com um coração “pusilânime”, vacilante e fraco. Ela já desde cedo tendo de enfrentar graves dificuldades da vida, perdendo o pai e a mãe quando criança, tendo sido criada pela madrinha. Ambiciosa, dona de si e sem tendência ao sentimentalismo, a bela e desejada Guiomar frequentemente se irrita com os homens que declaravam seu amor por ela. Quando pela segunda vez tem a oportunidade de rejeitar Estêvão, suas palavras são brutais:

“- Dou-lhe um conselho, disse Guiomar depois de alguns segundos de pausa, seja homem, vença-se a si próprio; seu grande desafeto é ter ficado com a alma de criança.
- Talvez, respondeu o homem suspirando. 
- E adeus. Falamos a sós mais do que convinha; não sei se outra consentiria nisto. Mas eu não só reconheço os seus sentimentos de respeito, como desejo que estas poucas palavras trocadas agora ponham termo a aspirações impossíveis”.

O quadro social que serve de pano de fundo da narrativa corresponde ao ambiente burguês liberal fluminense de meados do séc. XIX. Os momentos recreativos davam-se nos teatros e óperas, além de jantares em casas de pessoas distintas como a baronesa, a mãe adotiva de Guiomar. As relações afetivas ou mais especificamente os namoros envolviam intricadas tramas com trocas de olhares, apertos de mãos mais ou menos significativos, além de bilhetes: ainda assim, estamos diante de um romance romântico cujo desenlace será a concretização do amor não como uma convenção social ou a realização de interesses pessoais/pecuniários mas como maior realização de vida. Mesmo com todas estas dificuldades, as barreiras são vencidas no final, quando o amor destina-se a atender aos anseios do outro coração – ligar a mão à luva.

Na resenha referente ao romance Ressurreição já havíamos chamado atenção para a pouca ênfase dada para os trabalhos de Machado de Assis correspondentes à sua fase romântica. A “Mão e a Luva” tem um sabor especial diante de uma narrativa surpreendente, uma história fora de padrões, imprevisível, impactante e que nos sensibiliza pelos desenlaces trágicos e redentores que são concomitantes ao término do livro.