quarta-feira, 11 de março de 2015

“Tarás Bulba” – Nikolai Gógol

“Tarás Bulba” – Nikolai Gógol 




Resenha Livro  # 158- “Tarás Bulba” – Nikolai Gógol – Editora 34 – Tradução Nivaldo dos Santos

Nikolai Gógol nasceu em 1809 na Ucrânia, foi escritor e dramaturgo, tendo produzido sua obra ao longo dos anos de 1830, 1840, até sua morte em 1852. Suas obras mais conhecidas do público brasileiro são provavelmente  “Almas Mortas” (1842) e sua peça “O Inspetor Geral” publicada em 1835. 

“Tarás Bulba” (1835) é uma novela épica que versa sobre os cavaleiros e guerreiros cossacos. É um livro que corresponde ao resultado de uma intensa pesquisa feita por Gógol em 1830 sobre a história, cultura e folclore de sua terra natal, passando por suas lendas, canções, formas de linguagem e de expressão daqueles personagens que surgiriam na história a partir dos séculos XV e XVI. Os cossacos fizeram guerra contra os “infiéis” tártaros (que eram muçulmanos) e contra os Poloneses (que seguiam o catolicismo), conquanto o povo cossaco (russo) disseminava o cristianismo ortodoxo. 

Ocorre que para além de um povo guerreiro que percorre as estepes russas em seus cavalos julgando glorioso morrer na guerra, existe no livro um aspecto humano e pitoresco tanto daquele povo como daquele ambiente histórico. Somos levados a conhecer um povo basicamente alegra e festivo, onde apenas se centraliza a figura do homem e em que desde cedo os jovens são motivados a pensar em termos de lutar e defender o sangue e a honra cossaca – “nunca abaixar a cabeça para ninguém”. Os Cossacos são corajosos, gostam de farrear, dançar e cantar, mas são desregrados e não raro se embriagam de aguardente até estarem todos endividados junto aos “usurários judeus” – o que não fazia muita diferença já que num determinado momento, pela força, podiam tomar dos comerciantes judeus tudo de volta. 

Tarás Bulba é um velho cossaco e pai de dois filhos que retornam de um seminário de Kiev. Contente em revê-los depois de anos, resolve desde logo fazer um banquete com muita bebida e no outro dia já são levados a uma fortaleza militar para iniciá-los na arte da guerra. E a descrição deste velho cossaco poderia dar conta do temperamento daquele povo:

“Bulba era extremamente teimoso. Era um daqueles caracteres que podiam surgir somente no difícil século XV num canto seminômade da Europa, quando toda a primitiva Rússia do sul, abandonada por seus príncipes, estava devastada, reduzida a cinzas pelas indomáveis incursões dos saqueadores mongóis; quando o homem, depois de perder a casa e o teto, ali tornou-se intrépido; quando em meio aos restos dos incêndios, à vista de vizinhos terríveis e da ameaça constante, ele se instalou e se acostumou a olhá-los diretamente nos olhos, tendo esquecido se no mundo havia algum perigo; quando o outrora pacífico espírito eslavo cobriu-se de uma chama  guerreira e apareceram os cossacos – um vasto e desregrado proceder da natureza russa – e quando todos os caminhos marginais, vaus, margens de rios e lugares apropriados foram ocupados pelos cossacos, cuja quantidade ninguém sabia dizer.”

Havia um código de disciplina moral dentro das tropas cossacas bastante rígido. Aquele que era pego furtando algo de alguém era amarrado num poste e ao lado deixava-se um punhal de madeira. Todos que passavam eram obrigados a acertar o ladrão até matá-lo. Já os assassinos eram tratados da seguinte forma: eram enterrados vivos junto do cadáver que assassinaram.  

Certamente, deve-se entender e associar estas normas com o contexto histórico. Tem-se portanto um uma situação mais geral marcada pela fragmentação política típica ainda do período da alta Idade Média: ausência de estados nacionais centralizados e presença marcante da igreja que dentro da novela implicaria no desdobramento final de Tarás Bulba com um acordo de paz entre os ortodoxos e católicos, acordo denunciado pelo protagonista que acertadamente anteviu a esperteza dos polacos por trás da falsa composição. 

O território Ucraniano de onde deu origem os Cossacos no séc. XV primeiramente fora dominado pela Lituânia e depois pela Polônia, havendo a guerra cossaca contra os polacos como tema central da novela. Haviam ainda os tártaros e os mongóis, ou seja uma miscelânea de povos diferentes. Daí uma fonte de explicação pelo gosto pela guerra. 

O que é interessante nesta novela é que o elemento trágico referente à morte (recorrente nas guerras) assume um novo enfoque. Aos olhos de um leitor do séc. XXI pode parecer uma história trágica já que são relatadas diversas guerras com a morte das principais personagens: mas a morte na cultura cossaca assume um sentido diverso do atual, e tal fato pode ser medido quando Taras (pai) observa Óstap (filho) sendo executado após ser capturado e preso pelos polacos. Foi uma morte bela e honrosa, desde que o filho teve todos os seus ossos quebrados e não emitiu um grito de dor. O mesmo pode ser dito da morte de outros cossacos que insistentemente diziam partir com orgulho, certamente por cair lutando e não de joelhos. Ademais, a novela envolve passagens que não coadunam com a ideia de um drama trágico, mas de uma história com raízes em folclóricas, utilização de termos e expressões típicas da época (inclusive interjeições) e uma forma literária leve que resvala em algumas passagens mesmo para o humor. 

No Brasil talvez o que tenhamos de mais próximos dos cossacos seriam os nossos cangaceiros que também foram guerreiros que lutaram sem medo de morrer.    

domingo, 8 de março de 2015

“A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso

“A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso 



Resenha Livro #157 - “A Década Neoliberal e a Crise dos Sindicatos no Brasil” – Adalberto Moreira Cardoso – Ed. Boitempo 

Adalberto Moreira Cardoso é doutor em sociologia pela USP, professor da IUPERJ e especialista em sociologia do trabalho. E foi no âmbito da Instituição carioca que pesquisou e produziu os artigos que compõe este trabalho. A pesquisa tem como fio condutor a relação entre o movimento sindical brasileiro e as políticas neoliberais que redesenharam tanto o mundo do trabalho quanto as perspectivas de organização, confiança e legitimidade que os trabalhadores dariam aos sindicatos a partir dos anos 1990. 

O que se observa na verdade é que a década neoliberal abre o momento de crise no movimento sindical brasileiro que vinha de uma importante ascensão política desde os anos finais da ditadura. 

Nos anos 1980, há a emergência da CUT que ganha densidade política e apelo junto aos trabalhadores diante da crise econômica e da insatisfação da população e dos trabalhadores diante dos sucessivos planos econômicos fracassados. A estratégia Cutista então de se posicionar como uma oposição irrestrita aos governos da ordem, além de outros elementos como a baixo índice de desemprego (que favorece o desenvolvimento das greves ao não intimidar os trabalhadores à luta) e as altas taxas de inflação associadas às políticas de contenção de salários foram alguns dos elementos constitutivos do protagonismo político do sindicato (centralmente da Central Única dos Trabalhadores)  no período anterior ao advento neoliberal. 

A partir da década de 1990, com as privatizações, as pressões do mercado mundial por mudanças nas empresas no sentido de maior competitividade exigindo corte de custos (leia-se diminuição de direitos laborais) que se culmina na desregulamentação do mercado de trabalho e flexibilização de leis trabalhistas, demissões e fechamentos de postos de trabalho diante do desemprego estrutural e do uso de novas tecnologias, estes e outros elementos passam a ser investigados pelo pesquisador em suas interfaces com o mundo do sindicato, com o direito sindical e com o direito do trabalho. Neste último caso, Cardoso demonstra como nosso modelo de pacificação estatal entre capital e trabalho se baseia no modelo legislado (e não no negociado partindo da Negociação Coletiva) constatando ademais que o “alto custo” celetista é resolvido pelos empregadores brasileiros simplesmente não adimplindo as suas obrigações legais para depois estabelecer acordos junto à Justiça do Trabalho – a racionalidade econômica do empresário leva-o a tal prática que lhe sai mais em custo do que o respeito literal à norma legal levando, a partir dos anos 1990, à uma explosão das demandes individuais na justiça do trabalho. 

O Plano Real e suas repercussões no mundo do trabalho como não poderia deixar de ser também seriam parte da crise sindical. A abertura comercial e financeira expôs o mercado de capitais e de bens à pressão competitiva internacional engendrando as pressões sobre os trabalhadores supracitadas. O resultado ademais foi o de aumento das terceirizações, sub contratação  e criação de mecanismos internos de solução de conflito fora da esfera jurisdicional. 

Dentro deste ambiente, os Sindicatos deixam de ser atores políticos e referências de negociação coletiva através de ações políticas em que a greve é a principal arma de defesa dos trabalhadores (modelo dos anos 1980) para atuar centralmente como um órgão assistencialista, inclusive oferecendo advogados aos seus filiados para litigarem em ações individuais do trabalho. Neste contexto neoliberal, portanto, pode-se falar numa despolitização dos sindicatos ou mesmo em sua crise. 

Em termos mais amplos esta crise se enquadra dentro do contexto da reestruturação industrial com suas mudanças no mercado de trabalho. Há se observar aqui a destruição de empregos formais, uma tendência que caminha pari passo com o enfraquecimento dos sindicatos. E talvez mais importante: “(...) os sindicatos e as centrais sindicais perderam uma parcela importante de sua capacidade de funcionar como galvanizadores, promotores ou representantes de identidades coletivas de caráter político”. 

Quanto a este último ponto, uma das chaves explicativas é investigada pelo sociólogo a partir de pesquisas quantitativas envolvendo o grau de confiabilidade dos trabalhadores junto aos sindicatos. Dentre as instituições democráticas como um todo, as pesquisas demonstram uma tendência de baixa confiabilidade. E o Sindicato não escapa com números de 27,13% de confiança para não filiados e 37,12 para filiados. A título de comparação, no universo de trabalhadores filiados, temos em grau de confiabilidade Igreja (60,49), Associação de Pais (58,16), Imprensa (34,89) e Polícia (20,67).

A conclusão da vasta e minuciosa pesquisa de Adalberto Moreira Cardoso é a de que a década neoliberal promoveu um período de letargia dentro do movimento sindical brasileiro. Sua análise tem como ponto de partida dados objetivos da economia, levantamentos estatísticos e de opinião da população e dos trabalhadores e números acerca de processos e pedido em varas trabalhistas de modo a buscar compreender com tais dados da realidade explicam a atual situação dos sindicatos hoje. 

Um outro momento seria o de avaliar as responsabilidades políticas dos dirigentes sindicais (em particular da CUT) que igualmente fizeram escolhas diante desta conjuntura e que têm supostamente sua parcela de responsabilidade para a atual situação de paralisia e defensiva do movimento sindical brasileiro. Ademais, a pesquisa de Cardoso pouco avança no que tange o denominado “sindicalismo de resultado” que iria mesmo se manifestar no governo posterior ao governo FHC como o exemplo da proposta de lei do Acordo Coletivo Especial pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC da CUT. Ou seja, a pesquisa, ainda que excelente, já parece estar desatualizada diante de alguns novos movimentos que ocorreram desde os governos do PT e que não repercutiram, como esperado, em maior combatividade dos sindicatos.  

Atualização - resenha escrita antes do Golpe de Estado perpetrado contra governos do PT e em momento em que graves reformas trabalhistas, incluindo o negociado sobre o legislado, terceirização irrestrita e retirada de demais direitos da CLT se vislumbram numa nova etapa, bastante diferente da conjuntura anterior.     

terça-feira, 3 de março de 2015

“O Duplo” – Fiódor Dostoiévski

“O Duplo” – Fiódor Dostoiévski 




Resenha Livro # 156– “O Duplo” – Fiódor Dostoiévski – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra

“O Duplo” é a segunda obra publicada pelo escritor russo F. D., logo após “Gente Pobre”, ambas datadas de 1846. Enquanto o livro de estreia de Dostoiévski encontrou uma ótima recepção dentro do público e da crítica, “O Duplo” provocaria o efeito inverso: foi um livro incompreendido em sua época, muito provavelmente em função do experimentalismo formal por um lado (foge do realismo literário e segue a trilha de um enredo fantástico) e da temática abordada (o problema da loucura, os devaneios da consciência humana, a relação entre a perda do controle da consciência e uma sociedade fortemente marcada pela exclusão e pelos signos de distinção e nobreza). 

Certamente, “O Duplo” é uma obra à frente de seu tempo sendo possível observar a figura do conselheiro Golyádkin, acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, a expressão de uma alma atormentada pela culpa de sua condição medíocre, esmagada pela solidão e pela pobreza, na iminência da loucura – o que faria entre outros com que posteriormente  Freud se tornasse um grande admirador do escritor russo. 

E, ademais, vemos em Golyádkin e em “O Duplo” o prenuncio de algumas obras da maturidade de Dostoiévski em que seu esforço de escancarar almas humanas atormentadas vêm à tona, como em “Crime e Castigo” e seu personagem Raskólnikov e “Memórias do Subsolo”. 

Mas quem é Golyádkin? Yakóv Pietróvitch Golyádkin é conselheiro titular, um amanuense, mistura de escrivão e copista, pertencente à nona classe na escala burocrática, portanto, sem nenhuma possibilidade de ascensão social. Mal ganha para se manter, passa por grandes privações, mas tem um criado, que por sinal o trata mal e sempre com deboche. Vive num grande isolamento e a solidão é o signo maior da sua existência, de forma que nos poucos momentos em que aparentemente consegue romper o cerco das inimizades e ser aceito em um ambiente social, chega a se comover com lágrimas. Mas a sua situação desde o início do romance está predestinada: quando se dirige pela primeira vez ao médico, este lhe recomenda convívio social e não ser “inimigo da garrafa”. E entre o cômico e o trágico, o protagonista aluga uma carruagem, compra roupas caras e se dirige à festa de aniversário da filha de Olsufievna Ivánovitch, conselheiro de estado. Já é humilhado quando é  barrado na porta do jantar. Ainda assim entra, e após uma pisadela num vestido de uma convidada e pensando ser oportuno tirar a filha do alto dignatário para dançar, é expulso do salão. 

Já antes do aparecimento do duplo, portanto, Golyádkin surge como um sujeito por um lado desejoso de ser parte da sociedade e elevar-se socialmente, mostrar-se nobre e enfrentar as ridicularizações que o deixam encolerizado.  O surgimento do “Duplo” marca uma clivagem na história em que o “Golyádkin Segundo” paulatinamente irá conseguir conquistar e concretizar todos os desejos de aceitação de Golyádkin original. E o pior: revelaria ser o pior inimigo do protagonista.

“Ora o senhor Golyádkin sonhava que estava no meio de um grupo maravilhoso, conhecido por sua espirituosidade e pelo tom nobre usado por todos os seus integrantes; que o senhor Golyádkin, por sua vez, se distinguia nos quesitos amabilidade e espiritualidade; que todos gostavam dele, até alguns de seus inimigos que ali se encontravam tinham passado a gostar dele, o que era muito agradável para o senhor Golyádkin; que todos lhe davam prioridade e que, enfim, o próprio senhor Golyádkin escutava com prazer o elogio que o anfitrião lhe fazia para um dos convidados que levara para um lado..., e de repente, sem quê, nem para quê, tornava a aparecer, na feição do senhor Golyádkin segundo, aquela pessoa conhecida por suas más intenções e motivações atrozes, e ato contínuo, imediatamente, num piscar de olhos o senhor Golyádkin segundo destruía com seu simples aparecimento todo o triunfo e toda a glória do senhor Golyádkin primeiro, obnubilava com sua presença o senhor Golyádkin primeiro, pisava na lama o senhor Golyádkin primeiro e, por fim, demonstrava claramente que Golyádkin primeiro era ao mesmo tempo  autêntico e absolutamente inautêntico, falsificado, que ele é que era o autêntico e, por último, Golyádkin primeiro não era nada do que aparentava, porém isso mais aquilo, e, por conseguinte, não podia nem tinha o direito de pertencer a uma sociedade de pessoas bem intencionadas e de bom tom”.

É possível especular e dar distintas respostas sobre o que significa este “Duplo”. Como a referência em Golyádkin segundo é a de um “irmão gêmeo”, idêntico, tanto na roupa quanto no nome, pode-se pensar que o duplo é a projeção do protagonista num espelho, com a condição de que o seu reflexo exprime os seus contrários. Golyádkin primeiro é chamado de “herói” enquanto o segundo seria o vilão que na vida prática concretiza tudo aquilo que o primeiro fracassa. Numa perspectiva mais psicológica, tratar-se-ia de uma projeção relacionada aos desejos de ascensão e aceitação social de Golyádkin cujo triste fim o levará ao manicômio. O que é certo é que todas estas possíveis interpretações e as linhas de investigação do artista Dostoiéviski parecem transbordar a literatura e ir para áreas mesmo da medicina/psiquiatria, além é claro da história, das relações sociais da Rússia com sua nobreza e burocracia oficial, etc. Temos aqui um poderoso retrato da sociedade e um raio x de almas humanas atormentadas, a combinação mas essencial da obra de Dostoiéviski.    

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

“Questões Políticas” – J. Stálin

“Questões Políticas” – J. Stálin 



Resenha Livro # 155– “Questões Políticas” – J. Stálin – Aldeia Global Editora Coleção Fundamentos 11

Poucos personagens históricos foram igualmente estigmatizados negativamente tanto pela direita quanto por uma certa “esquerda” quanto Joseph Stálin. Pouco importa fatos políticos incontroversos como a intervenção política decisiva do Exército Vermelho na II Guerra Mundial desde Stalingrado, do cerco de Leningrado e da batalha de Kurski, até a retomada de Berlim em favor das forças aliadas, ou mesmo o espetacular desenvolvimento das forças produtivas e da indústria desde os planos quinquenais que assombrou os mais céticos críticos do ocidente. Fatos incontroversos que só podem ser "desmentidos" por aqueles que agora tentam apagar a história ou caluniar Stálin como sanguinário assassino. 

O que gostaríamos de chamar atenção aqui é que o “consenso” entre liberais, conservadores e esquerda democrática/trotskista quanto ao esforço em demonizar Stálin e o "stalinismo" revela certamente alguma intencionalidade oculta. Apagar um legado de um fio condutor da tradição do marxismo que, interrompido no âmbito da II Internacional, encontraria em Lênin e na experiência da revolução russa a expressão de uma nova dinâmica ainda inconclusa. A sua expressão revolucionária e a sua inimiga mais encarniçada ainda hoje do fascismo e do capitalismo. 

Stálin certamente não esteve à altura de Lênin como um teórico da revolução. Mesmo porque sua trajetória de vida foi inteiramente diversa. 

Enquanto Vladimir Ilich Lênin foi filho de Professor e Diretor de Ensino e estudante universitário de Direito em Kazan, Stálin foi um simples filho de sapateiro na Georgia, tendo estudado num seminário até ser expulso antes de concluir os estudos por suas atividades políticas. Stálin passou a maior parte de sua vida como militante/ativista, o que incluía atuar em ações que envolviam agitar manifestações, greves, assaltos a bancos e arrecadar fundos para camaradas no exílio enquanto Lênin, desde o exílio, dedicava-se ao partido redigindo trabalhos para publicações e estudos sobre a realidade russa.  

Isso não significa, porém, que a contribuição teórica de Stálin deixe de ser relevante. Pelo contrário, ela preza pela objetividade e, ao estudá-la, vamos observando como muito do que é reiterado acerca do dirigente georgiano, infelizmente pela própria “esquerda”, são calúnias destinadas a desconsiderá-lo como interlocutor para as discussões sobre os desafios atuais da luta pelo socialismo/comunismo. 

A começar sempre pela má vontade em se entender a tese acerca da ideia do “socialismo num só país”. 

Certamente apenas alguém com muita pouca boa vontade diante de Stálin (e ainda assim alguém dotado de uma ingenuidade que beira a má-fé) realmente acreditaria que o dirigente do partido bolchevique após morte de Lênin (1924) até sua morte 1954 defenderia algo como a criação de um estado socialista autônomo, fechado, exclusivo e dentro das fronteiras nacionais da URRS! Nunca foi essa a concepção do socialismo num só país de Stálin e nem esta seria a forma marxista-leninista de encarar o fenômeno socialista que, em Stálin, remete sim ao internacionalismo. 

A diferença aqui reside em como garantir a sobrevivência em condições adversas de um estado isolado e especialmente na ideia de que esta sobrevivência ajudaria a fazer fortalecer a luta do socialismo em nível mundial conquanto os partidários da revolução permanente demonstravam na prática (e os arroubos de Leon Trótsky em Brest Litovisk foram a maior prova desta política) que rifar a revolução russa ou colocá-la em risco em nome de uma hipotética revolução na Alemanha, no Ocidente ou em qualquer parte, em sinal de “internacionalismo". 

Assim afirma Stálin, consoante Lênin: 

“Lênin nunca considerou a República Soviética um escalão indispensável para reforçar o movimento como um fim em si. Considerou-a sempre como um escalão indispensável para reforçar o movimento revolucionário nos países do Ocidente e do Oriente, um escalão indispensável para facilitar o triunfo dos trabalhadores do mundo sobre o capital. Lênin sabia que tal concepção é a única acertada, não apenas do ponto de vista da manutenção da República dos Sovietes. Lênin sabia que só assim se pode inflamar o coração dos trabalhadores de todo o mundo rumo às batalhas decisivas pela sua libertação. (...) Portanto, ele não se cansava de entusiasmar e fortalecer a união dos trabalhadores de todo o mundo: a Internacional”. 

“Lênin tem razão quando afirma que o movimento nacional dos países oprimidos não se deve valorizar do ponto de vista da democracia formal mas do ponto de vista dos resultados práticos dentro do balanço geral da luta contra o imperialismo, quer dizer, não deve abordar-se “isoladamente” mas numa escala “mundial”. 

Como se sabe, dentro do partido, Stálin estudou e produziu um livro específico sobre o tema das nacionalidades. Foi comissário das nacionalidades. E se o leninismo vem a ser a expressão do marxismo revolucionário na fase imperialista do capitalismo, deve-se ter em vista que justamente a questão nacional ganharia novos contornos àquela conjuntura. 

Até a II Internacional, o problema nacional era visto desde um ponto meramente formal ou jurídico falando-se apenas em “direito de autonomia” ou “autodeterminação dos povos”. A questão ganhou maior complexidade na medida em que o imperialismo resultou na dominação política e econômica de um punhado de nações sobre vastas parcelas de povos oprimidos na Ásia, África e América Latina. Isso tem algumas implicações: o proletariado dos países exploradores passa a ter responsabilidades de lutar contra a espoliação de sua burguesia contra os países oprimidos. Já a luta dos países oprimidos deve ter como norte derrotar o imperialismo e fortalecer o movimento proletário.

Esta nova particularidade inclusive criou as condições para a 1ª revolução proletária estourar dentro do elo mais fraco da cadeia imperialista, qual seja, a Rússia. 

Diz Stálin acerca destas particularidades:

“Como explicar este fenômeno peculiar da revolução russa, que não encontra precedentes na história das revoluções burguesas ocidentais? Onde reside a origem de tal singularidade?
Explica-se pelo fato de na Rússia a revolução burguesa se ter desenvolvido sob as condições de uma luta de classes mais desenvolvida que no Ocidente, pelo fato de o proletariado russo ter conseguido já então converter-se numa força política independente, enquanto a burguesia liberal , assustada pelo espírito revolucionário do proletariado , perder toda a aparência de revolucionária (sobretudo depois dos ensinamentos de 1905) e se aliar ao czar e aos proprietários rurais contra a revolução, contra os trabalhadores e contra os camponeses”. 

Dentre as peculiaridades da situação russa que criaram uma situação explosiva e favorável ao desfecho revolucionário, Stálin cita outrossim a grande concentração da indústria russa nas vésperas da revolução, com 54% dos operários russos trabalhando em empresas com mais de 500 operários (tal concentração certamente favorecia a agitação política); as escandalosas formas de exploração do trabalho associadas ao retrógrado regime político e policial do czarismo que despertavam o ódio dessa massa trabalhadora; a debilidade política da burguesia russa que como dito após 1905 se convertera numa força contra-revolucionária; a continuação da guerra imperialista que engendrou uma crise revolucionária. 

Nesta pequena brochura de 100 páginas, de forma sintética e objetiva, Stálin, partindo de citações de Lênin e de dados objetivos da história recente do movimento russo explica as questões políticas fundamentais do leninismo: o método, a teoria, a ditadura do proletariado, o Partido e mesmo o que Lênin chama de “Estilo de Trabalho”, uma combinação do pragmatismo norte-americano e o espírito revolucionário russo. 

Um bom destaque vale ser dado às páginas referentes ao problema camponês em que em poucos parágrafos Stálin explica como a dita “Teoria da Revolução Permanente” de Trótsky é na verdade uma leitura desvirtuada de uma tese de Marx que, aplicada à situação russa, engendra no rompimento da aliança com os camponeses. Ou seja a “Revolução Permanente” desvirtuada começa pela tarefa de tomar o poder imediatamente pelo proletariado enquanto Lênin assegurava esgotar toda a capacidade revolucionária dos camponeses e utilizar até a última gota das suas energias revolucionárias para completa liquidação do czarismo. 

Como dizíamos no inicio desta resenha, existe um bloqueio de todas as frentes contra a figura, o legado e as ideias de Stálin e se quisermos mesmo de Lênin, que, ainda que  eventualmente reconhecido como grande dirigente dentro dos círculos de esquerda, não é por exemplo devidamente estudados nos cursos de ciências humanas nas universidades. Com Stálin o bloqueio ainda é maior e mesmo editoras de esquerda ainda hesitam em publicar as suas obras. Por outro lado, um número cada vez maior de interessados pelo tema já dão sinais claros de que este bloqueio precisa e será quebrado. A começar pelos círculos de esquerda, discutindo junto aos setores adversários ou mesmo inimigos do marxismo-leninismo qual foi a verdade histórica dita e efetivamente ocorrida na URSS ao longo do séc. XX. 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa

“Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa 

Resenha Livro #154 - “Um Diário Russo” – John Steinbeck e Robert Capa – Ed. Cosacnaify



“Um Diário Russo” pertence a um raro gênero literário que serve de fonte preciosa para compreender a história de um povo para além dos seus grandes eventos políticos: observar os costumes, a culinária, as músicas e a arte popular, a língua, enfim, a cultura, o que é propiciado neste livro como uma grande reportagem sobre a URSS de 1947, redigida pelo jornalista e escritor norte-americano John Steinbeck (já consagrado escritor quando de sua viagem à URSS destinada à compor este “Diário”) e Robert Capa, igualmente consagrado e já experiente fotojornalista de guerra, tendo já fotografado a Guerra Civil Espanhola e a Invasão da Normandia durante a II Guerra Mundial. 

Muitos de nós já devemos ter visto uma foto de Capa, uma das mais famosas do gênero de guerras, em que um combatente do exército republicano espanhol é alvejado por uma bala no peito, estirando os braços, num cenário desértico. Contexto: Guerra Civil Espanhola. 

Quanto à Steinbeck, seria agraciado com o Nobel de Literatura em 1962. Seu texto tem um estilo objetivo e realista tal qual a de um jornalista: seu olhar está sempre direcionado àquilo que revela indiretamente aspectos de personalidade captados como numa fotografia. Os traços culturais do povo e da gente comum são os temas de interesse deste diário, sendo chave aqui uma das características decisivas do bom jornalista: ser um bom observador. Isto vale tanto para Steinbeck quando para Capa. 

O plano original dos dois era fazer um retrato o mais humano e impessoal (do ponto de vista político) possível sobre a vida comum na URSS: procuraram não se envolver nos assuntos políticos e nas relações diplomáticas entre EUA e URSS. Já se iniciava momento de crescimento das tensões e hostilidades entre os dois países que dariam início à Guerra Fria: em geral os populares perguntavam aos jornalistas americanos se o seu governo tinha a intenção de atacar a URSS. A sensação era a de que o povo Russo estava cansado da guerra e sabe-se hoje que foi o povo que mais teve vidas perdidas na II Guerra Mundial. 

Principalmente nas passagens por Kiev e Stalingrado (principalmente) os jornalistas testemunharam a devastação de prédios administrativos, escolas, igrejas e campos de agricultura decorrentes da guerra. Particularmente em Stalingrado, famílias inteiras ainda viviam sob escombros. Prisioneiros de guerra alemães faziam a limpeza da destruição que causaram, pareciam ser bem alimentados e eram desprezados pela população. Com a morte de uma esmagadora maioria da população masculina as mulheres por toda a URRS, de Kiev à Georgia estavam na linha de frente das fazendas coletivas e nas fazendas estatais. Em geral percebeu-se que os russos – especialmente de Moscou – hesitavam em se aproximar de estrangeiros e especialmente de americanos. Pareceu ser uma população mais “fria”, o que foi atenuado nas viagens às províncias mais distantes. 

Mas de qualquer forma, em todos os lugares, a insistência com que o povo perguntava aos jornalista sobre a disposição dos americanos em entrarem em guerra com a URSS seria um sinal do enorme cansaço da guerra no povo soviético. Curiosamente parecia não passar pela cabeça do povo russo naquele momento um ataque da URSS sobre os EUA. 

Basicamente todos os correspondentes e jornalistas que se dispunham a conhecer a URSS eram direcionados a um roteiro comum, sempre acompanhados intimamente por representantes do governo soviético, passando por Moscou, Leningrado (São Petersburgo), Stalingrado (hoje Volgogrado) e viajando para Kiev (Ucrânia) e Tbilisi (Georgia), esta última uma espécie de “nordeste brasileiro” da URSS, localizada em região de clima mais ameno, com praias e hotéis de descansos organizados pelos sindicatos e destinados aos operários que melhor se destacam nas frentes de trabalhos, bem como os em repouso médico. 

Na Georgia a língua é diferente, no campo há a produção do Chá, bebida principal da Rússia, além da Vódka, e o fenótipo da população remete a uma mistura de italianos e ciganos. A descrição da bela e antiga Kiev também é digna de nota, em tempos em que a cidade encontra-se sob um governo  com elementos fascistas. Os horrores que os exércitos de Hitler promoveram na capital Kiev ainda era 1947 bastante presentes na memória da população daquele local: infelizmente as últimas gerações parecem ter esquecido a história. E pelo relato vemos que o exército da URSS ainda mantinha os prisioneiros de guerra, os nazistas limpando a destruição brutal e gratuita que promoveram em Kiev. 

Sobre Kiev, ainda sob destroços decorrentes da Segunda Guerra, diz o jornalista:

“Kiev deve ter sido em algum momento uma bela cidade. Bem mais antiga do que Moscou, ela é, na verdade, a mãe das cidades russas. Fundada no alto de uma colina à margem  do Dniepr, acabou crescendo e se espalhando pela planície. Seus mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século XI. Foi um dos locais de veraneio prediletos dos czares, que ali possuíam palácios de férias. Seus edifícios públicos são famosos em toda a Rússia. Além disso, a cidade também era um centro religioso. Hoje, porém, está completamente arruinada. Aqui os alemães mostraram do que eram capazes”. 

Existem algumas interfaces entre o jornalismo e a história que ganham evidência em trabalhos como o de John Steinbeck e Capa. Mesmo reiterando a intenção do trabalho focar-se na vida das pessoas comuns, sobre o que conversavam, o que vestiam, fotografando e escrevendo quase como um relato objetivo mas nunca imparcial sobre a sociedade russa – nas palavras do autor, não “o relato sobre a Rússia, mas um relato possível”, temos em mãos uma fonte literária e visual que nos dá testemunho de algo a mais do que cifras econômicas oficiais, algo que não é captado por números, nem estatísticas e balanços demográficos. As descrições dos jantares na Georgia, com o hábito do anfitrião indicar um orador, a alegria das camponesas ucranianas dentro de sua jornada de trabalho rural (predominantemente feminina) e a “simpatia” geral daquele povo junto com os dois americanos, associados ao temor da guerra, revelam a sociedade como fotografias, de certa forma dá sinais da temperatura da situação política, além de dar bom material para conhecermos a cultura popular. E nesse sentido é interessante como as fotografias de Capa se somam e dialogam com o relato humano de Steinbeck. Para um historiador, tem-se em frente elementos sobre a cultura e o estado de espírito de um povo recém impactado por uma Guerra Mundial devastadora e ainda assim aparentemente otimista quanto ao seu futuro dentro do regime socialista sob Stálin.   
  

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

“A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels

“A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels 

Resenha Livro 153 - “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” – Friedrich Engels – Ed. Boitempo



Friedrich Engels conheceu Karl Marx em novembro de 1842, quando tinha apenas 22 anos de idade. Era filho de uma família de industriais de Barmen na Alemanha: ainda neste primeiro encontro cada um dedicava-se a uma linha de estudo diferente. Marx esboçava sua crítica à filosofia do direito de Hegel enquanto Engels observava e estudava a vida operária através dos trabalhos de negócio da família.

Seria neste contexto que em 1845 aos 25 anos de idade Engels publicaria sua primeira obra de fôlego – “A Situação da Classe Trabalhadora Na Inglaterra”. Esta obra foi lida por Karl Marx e daria concretude às teses do socialismo científico ao determinar as condições de vida do nascente proletariado industrial inglês: as jornadas de trabalho de 10 a 12 horas, o trabalho infantil e feminino, as doenças de trabalhos que levam à redução da expectativa de vida, o uso da violência policial e patronal contra as incipientes tentativas de resistências prenunciariam “O Manifesto do Partido Comunista” escrito em 1848.

O livro é basicamente o resultado das observações de Engels a partir de sua vivência direta como gerente da “Ermen & Engels” em Manchester. A observação direta envolve a pesquisa das condições de vida, de habitação, de higiene, as formas de contratação, a resistência e luta dos operários fabris e agrícolas, bem como as formas como estado e especificamente o direito e os juízes de paz se somam em defesa dos interesses dos capitalistas. Mesmo aos 25 anos e sendo filho de industrial, Engels, ele próprio um (pseudo)capitalista, já aqui se opõe diametralmente à sua classe: descreve a burguesia inglesa como a mais avarenta do mundo e o faz com números e documentos oficiais. Trata-se pois de uma pesquisa de fôlego que tem como ponto de partida a revolução industrial na Inglaterra, a introdução de tecnologias na produção que alteraram radicalmente os meios de produção, a organização e disposição do trabalho e foram conformando a proletarização das massas.

A máquina de fiar e novos arranjos que envolvem o uso do vapor e do ferro na produção destroem as antigas manufaturas de tipo medieval. Implicam na extinção da figura do artesão e do mestre – há a concentração do trabalho na fábrica e o trabalho dá-se de forma assalariada e contratual. Outrossim, observa-se que na Revolução Industrial, seu produto histórico mais relevante é o proletariado:

“Com essas invenções, desde então aperfeiçoadas ano a ano, decidiu-se nos principais setores da indústria inglesa a vitória do trabalho mecânico sobre o trabalho manual e toda a sua história recente nos revela como os trabalhadores manuais foram sucessivamente deslocados de suas posições pelas máquinas. As consequências disso foram, por um lado, uma rápida redução dos preços de todas as mercadorias manufaturadas, o florescimento do comércio e da indústria, a conquista de quase todos os mercados estrangeiros não protegidos, o crescimento veloz dos capitais e da riqueza nacional; por outro lado, o crescimento ainda mais rápido do proletariado, a destruição de toda a propriedade e de toda a segurança de trabalho para a classe operária, a degradação moral, as agitações políticas (...)”. 

Em outra passagem Engels compara a importância da Revolução Industrial Inglesa à revolução política francesa e à revolução filosófica alemã, sendo o fruto mais importante da revolução inglesa o proletariado.

Esta pesquisa surpreende o leitor atual pelo fato de ser bastante minuciosa, tanto no que se refere à coleta de dados/fontes, quanto em sua forma, buscando abranger os diversos aspectos da situação da classe trabalhadora inglesa, irlandesa e escocesa. São cerca de 350 páginas que abrangem em particular destaque o problema da habitação (havendo uma exposição detalhada dos bairros operários de diversas cidades inglesas, podendo-se constatar um cenário de completo abandono com falta de saneamento, famílias inteiras dormindo em porões, porcos chafurdando na lama junto a crianças, desregramento social com alcoolismo e perversão sexual etc.) da concentração industrial, da imigração, das mobilizações, da resistência dos patrões, além de alguns recortes específicos acerca da situação do proletariado mineiro e do proletariado agrícola.

 No que tange às formas de organização política, tem-se em mente que Engels observa uma classe ainda em formação e que luta diretamente por melhores condições (salários, menores jornadas, participação política – cartistas) formas de luta também ainda embrionárias. Tem-se em vista aqui o socialismo utópico Inglês do qual Owen é seu principal representante, já combatido por Engels:

“Os socialistas são muitos gentis e pacíficos; na medida em que só admitem como caminho para mudanças a persuasão da opinião pública, acabam por reconhecer as condições existentes, mesmo deploráveis, como justificáveis. Mas a forma atual de seus princípios é tão abstrata que jamais conseguirão convencer a opinião pública. Por outro lado, eles não se cansam de lamentar a degradação moral das classes inferiores, não consideram que a degradação moral da classe proprietária, provocada pelo interesse privado e pela hipocrisia, é bem pior e permanecem cegos a todos os elementos progressistas contidos na desagregação da ordem atual. Não compreendem o desenvolvimento histórico e, por isso, querem mergulhar imediatamente a nação nas condições do comunismo, sem o progresso da política até o ponto em que essa desapareça por si mesma. Sabem por que o operário se indigna contra o burguês, mas consideram estéril essa cólera (que, de fato, é o único meio de fazer avançar os operários) e predicam uma filantropia e uma fraternidade universal inteiramente inócuas na situação contemporânea da Inglaterra”. 

O movimento operário observado por Engels não vai além dos limites do espontâneo em sua luta contra a opressão. Sua primeira e mais primitiva forma de luta é a vingança pessoal contra o burguês, o que envolve a destruição da máquina, o assassinato do patrão ou seu preposto, o incendiar galpões de trabalho, bem como, nas greves, ataques e retaliações aos fura-greves (knobsticks). O próximo momento de organização dá-se com a associação, assembleias de delegados em datas fixas:

“Em alguns casos, tentou-se unir numa só organização de toda a Inglaterra os operários de um mesmo ramo e também houve tentativas – a primeira em 1830 – de criar uma única associação geral de operários de todo o reino, com organizações específicas para cada categoria; mas esses experimentos foram raros e de curta duração, porque uma organização desse tipo só pode ter vida e eficácia à base de uma agitação geral de excepcional intensidade”.

Em outros termos, as lutas do movimento operário inglês não saíam ainda do nível econômico para um questionamento da ordem social e política. Todavia, em que pese muitas das características daquele proletariado serem datadas para o leitor atual, a leitura da “Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra” ainda é relevante.

Trata-se de um documento histórico singular e ainda hoje uma surpreendente denúncia do modo capitalista de produção – não só pelo fato da Inglaterra ser o berço de tal civilização mas muito em função de encontrarmos aqui e ali passagens extremamente atuais, como a benevolência dos tribunais junto às classes proprietárias ou à singela carta de uma “Senhora” reclamando junto às autoridades acerca do excesso de mendigos ocupando o passeio público de Londres.  Não é muito diferente de respeitáveis “Senhoras” e “Senhores” daqui do Brasil.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

“Minha Vida” – A. P. Tchekhov

“Minha Vida” – A. P. Tchekhov 




Resenha Livro 152 - “Minha Vida” – A. P. Tchekhov – Editora 34 – Tradução  Denise Sales 

Anton Pávlovich Tchekhov nasceu numa cidade portuária ao sul da Rússia, Taganrog, em 1860. Ao contrário da maior parte dos consagrados escritores de sua geração, veio de família humilde: neto de servos, seu pai foi um humilde comerciante cheio de dívidas. 

Em 1879, Tchekhov ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Moscou e passa a escrever pequenos contos nos periódicos daquela cidade essencialmente para obter sustento para si e seus irmãos. Em alguns anos esta ocupação lhe renderia não só algum retorno financeiro mas fama literária. De fato serão com os contos, publicados em revistas e periódicos, que Tchekkov vai ser consagrado como grande escritor de seu tempo, especificamente como de orientação realista que se dedica a temas corriqueiros e aspectos apenas aparentemente banais, mas que sob seu olhar, ganham tratamento profundo e universal. 

“Minha Vida” (1896) é grande o suficiente para não se tratar de um conto e é curto o suficiente para não se tratar de um romance: a melhor caracterização fica como sendo a de uma novela, observando-se de resto aquilo que é peculiar da literatura de Tchekhov: o realismo literário, a escolha de temas e eventos que não fogem daquilo que é o cotidiano de modo a extrair a força poética a partir justamente da observação do que aparenta ser superfície. 

Nesta novela temos uma história narrada em primeira pessoa pelo jovem Missail Pólznev. Aos 25 anos, após ser demitido pela 9ª vez em mais um emprego burocrático, para o desespero do seu pai, o jovem resolve romper com a lógica da divisão social do trabalho segundo a qual o trabalho intelectual reserva-se a pessoas de origem nobre como ele (filho de um arquiteto municipal, neto de um poeta e bisneto de um general) e delibera buscar um trabalho manual, conquistar efetivamente sua sobrevivência com o suor do seu labor físico – conquanto o trabalho burocrático repetitivo que supostamente seria intelectual lhe parecia ainda pior que os esforços físicos de sobrevivência do Mujique. 

O pai de Missail, um patriarca autoritário profundamente ressentido da decisão do filho, chega ao extremo de romper e tirá-lo da herança. 

Missail  surge nas ruas vestido como um simples pintor provocando diferentes reações dos habitantes da pequena província, de antiga conhecida que pretende não conhecê-lo, até poucos que vêm em sua decisão exótica algo como uma atitude admirável: este é o caso da filha do engenheiro da ferrovia, Maria Víktorovna, que viria a casar-se com o protagonista. 

E, talvez numa orientação distinta de Tolstoi, não existe aqui qualquer benevolência a priori no que diz respeito ao tratamento que o artista dá ao modo de vida dos camponeses. Se dentro das repartições públicas (trabalho intelectual) vigora a corrupção, o suborno e a burocracia, no campo (trabalho manual), onde irão morar e trabalhar o casal Missail e Maria, observarão que as condições de vida continuam sendo brutais: são vizinhos que roubam bens do sítio do casal, dificuldades na demarcação das terras, falcatruas, bebedeiras e arruaças dentre os mujiques. As dificuldades de sobrevivência e o tédio da vida repetitiva são extremos ao ponto de Maria Víktorovna abandonar seu marido e, junto ao seu pai engenheiro, viajar “para sempre” para Paris. 

O que torna esta novela interessante é que ela não oferece uma conclusão ou uma resposta definida acerca das inquietações iniciais do jovem protagonista diante da falta de sentido que a sua vida de nobre lhe reserva diante de uma sociedade inteira eivada pelo vício e pelo preconceito, de alto a baixo da escala social. É um romance que abre perguntas e não oferece tantas respostas. 

Ao final, um pequeno fio de esperança surge não através da política (ou da filantropia, que surge quando Missail e sua esposa tentam sem sucesso construir uma escola em seu vilarejo). 

A esperança vem a partir da arte:

“- Quem vai discutir? Estávamos certos, mas erramos ao colocar em prática aquilo de que estávamos certos. Acima de tudo, os nossos próprios recursos externos – será que não estavam errados? Você quer ser útil às pessoas, mas o simples fato de ter comprado uma propriedade, já desde o início, barra todas as suas possibilidades de fazer-lhes algo de útil. Depois, se você trabalha, se veste e se alimenta como mujique, com a sua autoridade, é como se legitimasse essa roupa pesada e desengonçada, as isbás horríveis, as barbas estúpidas que eles usam.... Por outro lado, suponhamos que você trabalhe longamente, muito longamente, a vida inteira e que no final das contas alcance um ou outro resultado prático, mas o que eles,  esses seus resultados, o que eles podem contra forças elementares, como a ignorância de gado, a fome, o frio a degeneração? Uma gota no mar! Aqui são necessários outros meios de luta, fortes, audaciosos, rápidos! Se quiser ser realmente útil, então saia do estreito círculo da atividade comum e procure atuar logo sobre a massa! É necessária, antes de mais nada, uma prédica barulhenta, enérgica. Por que a arte, por exemplo, a música, é tão perene, tão popular e realmente tão forte? Porque o músico ou o cantor atua logo sobre milhares”.