sábado, 19 de abril de 2014

“Revolução Russa: história, política e literatura” – José Carlos Mariátegui


Resenha Livro #112 “Revolução Russa: história, política e literatura” – José Carlos Mariátegui – (Org. Luiz Bernardo Pericás) – Ed. Expressão Popular




O escritor, crítico literário, jornalista e marxista peruano José Carlos Mariátegui não é muito conhecido pelo público Brasileiro. Por aqui, teve uma seleção de textos sobre o fascismo italiano publicado pela editora Alameda, e teve o seu clássico “Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana” e este “Revolução Russa”, ambos publicados pela Ed. Expressão Popular.

Mariátegui deve ser reconhecido como um expoente original do pensamento marxista latino-americano. No seu caso particular, há de se destacar o fato de ter sido auto- didata: não passou pelos bancos da universidade e aprendeu por conta as línguas estrangeiras, o italiano e o francês, a partir dos quais iria tomar contato com as principais fontes para a redação dos artigos desta “Revolução Russa”.

No caso dos escritos de Mariátegui sobre o fascismo na Itália temos o privilégio de acompanhar o relato crítico e minucioso da conjuntura política italiana nos anos de ascensão do fascismo, as movimentações (e os erros cometidos) pelo partido comunista e, importante, observamos como Mariátegui na verdade subestima o perigo fascista. Ainda que o subestime, sua análise e seu depoimento servem como valiosas fontes históricas. De qualquer forma, o fato é que o jornalista faz um relato presencial da conjuntura política da Itália dos anos de 1920.

Com “A Revolução Russa” ocorre fenômeno distinto.  Mariátegui nunca esteve na Rússia. Os seus artigos sobre a Rússia (selecionados pelo historiador Luiz Bernardo Pericás) foram escritos com base em relatos de agências de notícias, jornalistas e viajantes, tanto simpáticos quanto adversários do regime socialista. Por se tratar de reportagens de segunda mão, certamente, não encontraremos aqui descrições tão minuciosas e aprofundadas acerca da realidade da revolução russa entre 1920-30. São textos jornalísticos, em geral curtos, mas que têm o seu o interesse histórico na medida em que revelam um pouco dos embates de ideias que envolviam o problema da existência da URSS e em particular algumas de suas implicações na diplomacia.

José Carlos Mariátegui escreve fazendo contraponto às vozes dominantes das agências de notícias americanas e francesas que corroboram com uma série de mitos acerca da revolução dentro de um embate que envolvia diretamente os interesses inter-imperialistas. Este contraponto ainda hoje se justifica e torna a leitura dos artigos de Mariátegui sobre a URSS ainda necessários. Os temas vão da  nova literatura realista da revolução, da poesia e da participação da mulher na política à nova lógica diplomática revolucionária pautada pela extinção dos segredos de diplomacia e pelo desarmamento radical, pela disputa japonesa e americana pela Manchúria e pelos os interesses soviéticos na região, o cinema, o teatro, a revolução sexual na URRS, etc. Justamente por trazer uma perspectiva mais “jornalística” os temas dos artigos incidem bastante sobre o que poderíamos chamar de “história do cotidiano”, qual seja, relatos da vida social na URSS diante do novo contexto da revolução, uma temática que despertava o interesse de muitos e implicava numa volumosa produção de relatos, ora mais ou menos fieis à realidade.

Em que pese a ausência de um esforço de aprofundamento teórico – totalmente incompatível com o gênero jornalístico – os artigos de Mariátegui ainda são uma fonte preciosa de informação acerca da história social dos primeiros anos da URSS. A Ed. Expressão Popular faz uma grande contribuição à militância comunista brasileira publicando estes artigos de Mariátegui.   

sexta-feira, 11 de abril de 2014

“Fidel – A Estratégia Política da Vitória” – Marta Harnecker


Resenha livro #111 “Fidel – A Estratégia Política da Vitória” – Marta Hernecker – Ed. Expressão Popular


Conforme indica a própria autora em sua introdução, esta narrativa da revolução cubana de 1959 preza pela clareza, pela objetividade e pela acessibilidade. Seu objetivo é dialogar com a juventude e introduzi-la sempre de forma didática a um capítulo da vasta história das lutas de resistência no continente americano, no caso, à história de um primeiro movimento guerrilheiro vitorioso na américa latina que iria reivindicar para si, após a vitória da revolução, a perspectiva socialista.

Mas a trajetória da vitória do movimento 26 de Julho e de sua principal liderança, Fidel Castro, remonta a pelo menos 10 anos antes de 1959. Na Cuba dos anos 50 o partido mais próximo do marxismo era o Partido Socialista. Fidel, por outro lado, militava, desde a faculdade de Direito, no Partido Ortodoxo. Tratava-se de uma agremiação mais associada aos setores da pequeno-burguesia nacionalista: lutavam pela moralização da política e contra a espoliação econômica estrangeira.

Um momento decisivo na história de Cuba ocorre em 10.03.1952 quando Batista dá um Golpe Militar e instala uma ditadura. Haveria aqui uma exigência de mudança drástica na linha política dos partidos de oposição. Tratava-se de uma ditadura do tipo militar, corrupta e que, ao longo do tempo, foi mostrando-se profundamente antipopular. Diante das perseguições políticas aos opositores, um setor do partido ortodoxo liderados por Fidel e por militantes jovens egressos em boa parte da universidade, partem para o enfrentamento com armas contra o regime.

E assim, em 26 de Julho de 1953, Fidel Castro e cerca de 150 homens tentam tomar de assalto o quartel general de Moncada em Santiago de Cuba. O objetivo dos revolucionários era o de tomar as armas para iniciar a luta armada contra Batista.

O assalto a Moncada não foi bem sucedido: a maioria dos guerrilheiros morreram e os restantes (entre eles, Fidel) foi preso. É em decorrência desta prisão que Fidel, advogado, redigirá o seu famoso “A História Me Absolvirá”, a sua defesa perante o tribunal de batista e que, conforme o gênio político de Fidel, deveria ser uma plataforma política do movimento, tirando proveito da publicidade do processo contra os guerrilheiros de Moncada para impulsionar uma crítica ao regime.

Será no exílio no México que Fidel conhecerá o argentino Che, com quem retornará à Cuba embarcando no Granma para, após um longa guerra de guerrilha camponesa, associada à importante agitação política a partir da Rádio Rebelde de Sierra Maestra, farão triunfar a revolução cubana em 1º de Janeiro de 1959, culminando na fuga de Batista de Cuba e na instalação de um governo revolucionário que ainda hoje, 55 anos depois, ainda resiste ao embargo imperialista, à propaganda anticomunista e às mentiras dos trotskystas que estão do lado dos gusanos de Miami, como, no Brasil, os indivíduos ligados à Lit-QI.

“A Estratégia Política da Vitória” expressa alguns elementos, destacados pela autora, que foram decisivos para a vitória da revolução cubana, ganhando evidência a clareza política de seu mais importante dirigente político, Fidel Castro.

Diz Marta:

“No que Fidel nunca cedeu foi nas questões de fundo, as únicas que podiam estancar o desenvolvimento do processo revolucionário, e que eram: a não aceitação da ingerência estrangeira, o repúdio ao golpe militar e a negativa de formar uma frente que excluísse alguma força representativa de algum setor do povo”.

Interessante comparar aqui alguns desvios de nossa esquerda naqueles mesmos anos e a política levada à cabo pelo movimento 26 de Julho no que tange ao problema da burguesia nacional.
Fidel nunca rejeitou entabulações e acordos com partidos burgueses de oposição à Batista, com a condição de não romper com aqueles princípios elencados acima. Mas o que há de mais importante a se diferenciar aqui parece ser as ilusões em torno da efetiva disposição de luta de supostos setores burgueses nacionalistas em contraposição ao imperialismo: a esquerda brasileira cheias de ilusões em torno das reformas de base de um Jango e a os guerrilheiros cubanos não permitindo que sua luta fosse desvirtuada por qualquer caudilho burguês.

Esta ilusão parecia estar menos presente no imaginário dos guerrilheiros do 26 de Julho, e, curiosamente, menos presente até do que junto aos comunistas do Partido Socialista Cubano. Outra diferença decisiva estaria relacionada com o saber fazer política: os guerrilheiros do 26 de Julho apenas se dispuseram a abrir diálogo com lideranças e partidos burgueses quando o movimento revolucionário já era uma realidade, e mais importante, já estava em vias de ser a direção do processo revolucionário: apenas quando a derrota de Batista era inevitável, foram os partidos burgueses obrigados a negociar com Fidel e nestas condições não poderiam impor suas condições antipopulares e antinacionais.

A estratégia da vitória é um livro que merece ser lido com atenção, de forma a fazer com que a bela revolução cubana permaneça viva, de alguma forma, contribuindo, com as lições de seus êxitos e impasses, para continuarmos avançando em direção ao comunismo: seguindo uma trilha pela qual passaram os guerrilheiros do 26 de Julho.  

terça-feira, 8 de abril de 2014

“Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo

“Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo


Resenha livro #110 “Direito e Ideologia: um estudo a partir da função social da propriedade rural” – Tarso de Melo – Ed. Outras Expressões




            Estes estudo corresponde à tese de mestrado na Faculdade de Direito da USP do prof. Tarso de Melo. Há aqui uma proposta de discussão crítica acerca do tema da função social da propriedade, um tema em si só prenhe de sentidos. A orientação teórico-metodológica apresentada por Tarso de Melo é a perspectiva crítica: as referências ao direito e à ideologia decorrem do pensamento de Marx e pensadores marxistas como o l.Mézáros, N. Poulantzas e Allaor Caffé, este último, verdadeiro precursor dos estudos referentes às relações entre direito e marxismo no Brasil.   

No que tange a tais pressupostos teórico-metodológicos, como não poderia deixar de ser, a pesquisa de Tarso está longe de estar pautada pela dogmática, pela pesquisa tradicional de leis, jurisprudência e doutrina mais autorizada. Trata-se antes de um estudo interdisciplinar que em contraponto ao positivismo jurídico busca fazer uma análise crítica do direito analisando-o em sua totalidade, o que envolve encará-lo nas suas múltiplas relações, com a história da Brasil, com a nossa questão agrária, com a conformação de nossas instituições jurídicas... Trata-se, pois, de uma obra preciosa tanto pelo método quanto pelo tema: ao estudar a questão da função social da propriedade, Tarso passará necessariamente por um protagonista social de peso no país no âmbito da luta pela terra, o MST.

Vale pontuar que são infelizmente ainda muito raros estudos deste tipo, que fogem do padrão dogmático, pautado por uma racionalidade auto-explicativa, que justifica e legitima a si própria única e exclusivamente a partir do texto legal. Assim, ainda há muitas questões em aberto e diversas possibilidades de pesquisas que façam avançar uma compreensão crítica com relação ao direito, que supere por um lado eventuais ilusões reformistas sobre a prática jurídica e por outro vá além da mera negação do direito, entendido em bloco como instrumento de opressão de uma classe pela outra.

Aqui, Tarso fala em “ambiguidades” decorrentes do próprio direito e da sua relação com o mundo concreto. Trata-se de tentar se afastar de duas perspectivas igualmente reducionistas. A primeira seria aquela passível de ser caracterizada como “ingênua” ou, talvez, excessivamente otimista segundo a qual seria possível empreender importantes alterações sociais – em especiais no sentido da redução das desigualdades entre as classes – por meio do direito e suas ferramentas. A outra perspectiva é a de descartar o direito, as normas jurídicas e eventuais lutas por mudanças nas leis ou novas leis, como movimentos não convenientes na medida em que as leis e o direito são em última instância instrumentos de dominação de classe.

Com relação à primeira ilusão, ela vem a ser mais comum e decorre, entre outros fatores, da hegemonia do positivismo jurídico que já encontra assento no Brasil já dentro das escolas de direito. Das faculdades ao exame da OAB, basicamente o “operador do direito” é graduado para manipular o ordenamento jurídico conforme um determinada quantidade de circunstâncias mais ou menos premeditadas pelos manuais: ao invés de haver um diálogo entre o processo ou as normas jurídicas e a realidade fática (encarada de forma dinâmica dentro de sua processualidade histórica)  é como se o conjunto de normas jurídicas posto necessariamente desse conta de toda a realidade fática (não há um “dialogo”, mas uma linha transversal partindo da norma jurídica em direção à realidade fática).

E as hipóteses em que a lei não dê qualquer resposta ao caso concreto? Ainda assim é possível reportar-se ao art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:  

Art. - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.


Esta perspectiva positivista tem um efeito ideológico importante. A ideologia não é o simples desvirtuamento total da realidade. Se assim o fosse, não seria plenamente eficaz, não seria ideologia. A ideologia necessita encerrar elementos de convencimento para sustentar suas respectivas relações sociais de dominação. A ideologia corresponde aos interesses de uma classe específica, dominante, transvestido de interesses comuns, de interesses gerais. O discurso positivista, segundo o qual o direito equivale à lei, é um discurso profundamente ideológico. Por meio dele, garante-se que o operador do direito, e, mais importante, que aqueles impactados de alguma forma pelo direito e pelo estado, não questionem as razões (se justas ou não) de uma reintegração de posse em favor de uma empresa devedora de tributos; ou que não questione o acórdão de um Tribunal Regional do Trabalho declarando “abusiva” uma greve de uma categoria profissional super-explorada, como a de garis.

Falávamos que existem dois caminhos a serem evitados dentro da perspectiva crítica do direito apresentada por Tarso. A primeira é a do positivismo jurídico, que é a dominante e, como vimos, tem forte viés ideológico. A segunda é mais específica da tradição marxista e reporta-se às teses de Marx acerca da natureza do estado e do direito. É certo que Marx e Engels têm uma vasta produção teórica e em certo sentido fragmentária: ainda assim, é possível dizer que revolucionaram distintas áreas do saber, como a filosofia, a sociologia, a teoria da história e a economia política. Apesar de sua formação em Direito, não há em Marx propriamente um estudo detalhado e específico sobre o Direito: é um tema que perpassa sua obra, há nuanças ao longo da sua própria evolução intelectual e uma análise sobre o tema vai muito além da proposta desta resenha.

Tentaremos aqui ir direto ao ponto que parece ser mais controverso: se o direito e em última instância o estado burguês são instrumentos de dominação da classe detentora dos meios de produção (burguesia) contra a classe que vende a sua força de trabalho (trabalhadores) em que medida é possível ainda pensar numa atuação progressista no âmbito do direito? Acreditamos que é necessário sim travar lutas por direitos democráticos do povo e da classe trabalhadora e, aqui, é necessário, talvez, esclarecer um pressuposto que comumente surge de forma disvirtuada nos debates da esquerda. Nem Marx, nem nenhum marxista digno desta tradição advogou algum dia a linha do “quanto pior melhor”, qual seja, a suposta piora das condições materiais engendrariam condições mais rápidas para o desenvolvimento da revolução. Basta olhar para o Manifesto Comunista (1848) para constatar objetivos muito claros e pontuais relacionados à melhora da condição de vida dos trabalhadores, redução da jornada de trabalho além da questão do labor da mulher e da criança, etc. O que se destaca aqui é que a reforma não é um óbice para a revolução, mas, muito pelo contrário, deve ser um elemento que impulsione a revolução. Da mesma forma, a luta por direitos – desde que feita sem perdida de vista o horizonte estratégico e sem se afastar daquele horizonte – é um momento fudamental para organizar o poder popular.

Mas, voltando ao direito, nossas reservas vão no sentido de fazer com que eventuais conquistas pontuais no âmbito do judiciário burguês não se traduzam em “retrocesso” de consciência de classe: ganha-se na justiça uma liminar suspendendo mandado de reintegração de posse – o que ocorreu no Pinheirinho – e cria-se uma falsa ilusão de vitória e desmobiliza-se o povo para, posteriormente, um outro juiz reformar inteiramente a sentença e executar o mandado – o que, mais uma vez, ocorreu no Pinheirinho.

Esta questão da relação entra a consciência dos oprimidos pelo capital e a sua relação com as lides jurídicas é apenas um dos pontos que este escriba aventou após ler atentamente o estudo do Sr. Tarso de Melo. Saudamos o autor por seu livro e ficamos no aguardo de sua próxima publicação “A Função Ideológica do Direito nas Lutas Sociais” pela mesma editora.      

quinta-feira, 3 de abril de 2014

"Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990)" - Anita Leocadia Prestes

Resenha Livro #109 - "Luiz Carlos Prestes: o combate por um partido revolucionário (1958-1990)" - Anita Leocadia Prestes - Editora Expressão Popular



Anita Leocadia Prestes é historiadora de formação, segue orientação teórico-metodológica (e política) marxista e é filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Bernário. Provavelmente, aquele casal seria mais conhecido pelo grande público através do filme "Olga" uma produção cinematográfica da Rede Globo, muito pouco preocupada, como é de se supor, com o legado e a tradição do movimento comunista, bem como a importância específica do dirigente Luiz Carlos Prestes. Trata-se antes de filme bastante comercial, que em seus destaques dos encontros e desencontros amorosos de Prestes e Olga, bem como o trágico fim do casal, mais parece com uma novela global.

Este relato histórico de Anita Leocádia Prestes em nada se assemelha com o filme supracitado. Esta advertência aliás já surge na introdução, quando a autora comenta a sua referência historiográfica e sua proposta metodológica. Anita tem como objetivo descrever a trajetória política de Prestes e do PCB do período que vai da Declaração de Março de 1958 até a morte do cavaleiro da esperança em março de 1990. O que há de se destacar aqui é que Anita busca fontes oficiais do partido e da imprensa partidária: não está interessada numa narrativa "jornalística" que irá dissertar acerca de detalhes da vida privada. Sua orientação é muito mais objetiva pois tem como escopo oferecer informações objetivas sobre a trajetória política de Prestes, em que pese todas as falsificações e calúnias, dos inimigos de classes e dos adversários políticos.

O estudo tem como ponto de partida um momento já de plena adesão de Luiz Carlos Prestes ao marxismos-leninismo, quando já era secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, em 1958. Tratava-se de momento em que JK presidia o Brasil, e, no âmbito internacional a bipolarização internacional da Guerra Fria acentuar-se-ia (em especial com o progresso da URRS, com a revolução chinesa e em 1959 com a revolução cubana). Diante daquela conjuntura, a direção nacional do PCB iria firmar um entendimento etapista da revolução brasileira, tendo aqui bastante influência com por um lado Revolução antiimperialista na China e por outro a voga desenvolvimentista e remotamente nacionalista dos anos JK.

Assim discorria o PCB:

"A revolução no Brasil, por conseguinte, não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática. A solução completa dos problemas que ela apresenta deve levar à inteira libertação econômica e política da dependência para com o imperialismo norte-americano; à transformação radical da estrutura agrária, com a liquidação do monopólio da terra e das relações e das relações pré-capitalistas de trabalho; ao desenvolvimento independente da economia nacional e à democratização radical da vida política".

Havia então um entendimento dominante dentro da esquerda e no partido comunista de que a revolução no Brasil não poderia ser imediatamente socialista, mas anti-imperialista, antifeudal, nacional e democrática. Nestes marcos, pensava-se ser aceitável e até oportuno aliança política com frações da burguesia nacional em suposta contradição com os monopólios estrangeiros. No fundo, tratava-se de uma luta pelo desenvolvimento de uma via autônoma e democrática do capitalismo na periferia do sistema, o que se mostraria na prática, inviável. A tal fração "progressista" da burguesia nacional debandou-se para a reação em 1964 e ajudou a esmagar a esquerda e os comunistas na ditadura militar. O que ocorria era que não havia uma contradição entre o desenvolvimento do capitalismo no brasil e resquícios "feudais" decorrentes do subdesenvolvimento. Autores perspicazes como Caio Prado Júnior observaram como o capitalismo vai se desenvolver no Brasil  a partir daquelas estruturas arcaicas e a chamada burguesia nacional ao invés de estar em choque com o imperialismo, estaria com os seus interesses materiais associados aos monopólios estrangeiros. Isto explica o apoio civil e empresarial ao golpe de estado engendrado especialmente pelo imperialismo norte-americano em 1964.

Anita Leocádio Prestes irá continuar sua narrativa, descrevendo a intervenção e a luta de Prestes por um partido revolucionário no tumultuado governo de Jango, na luta pelas reformas de base e contra a conciliação junto ao imperialismo. Após a ditadura militar, na luta pela reorganização partidária. No exílio e no retorno ao Brasil, quando sentimo-nos tocados com o triste destino de Prestes, octagenário, e ainda lutando, com todas as forças, contra os desvios oportunistas e reformistas da direção nacional do PCB, coincidindo com o seu afastamento da secretaria geral do partido.

Na verdade, os anos de 1980 seriam um momento de ofensiva brutal do capitalismo contra o socialismo e a tradição comunista e, nesta ofensiva, os partidos comunistas não sairiam ilesos. Muitos "comunistas" relegariam a segundo plano a perspectiva revolucionária e o horizonte socialista em detrimento de uma "democracia" que, na prática, implicava a conciliação junto à burguesia e o reformismo exacerbado. Como comunistas, ao lermos o relato de Anita, sentimo-nos tocados, sensibilizados pela grandeza de Prestes, que a todo momento, na prática (e não apenas no discurso) demonstra sua fidelidade ao marxismo leninismo, mesmo diante de reiteradas mostras de traição do comitê central do Partido Comunista Brasileiro, especialmente durante a chamada redemocratização. Enquanto a direção do PCB conciliava junto a Figueredo e chamava o voto em Tacredo Neves, Prestes rebelava-se e chamava boicote às eleições de fachada. Quando a municipalidade do Rio de Janeiro lhe concede uma pensão vitalícia, Prestes recusa prontamente o benefício, considerando-o inoportuno por princípio. Podemos criticar Prestes por algumas opções táticas - por exemplo, em 1989, chamou voto nas eleições presidenciais em Leonel Brizola e apoiou Lula no segundo turno. Todavia, o que fica claro é que até a sua morte, aos 90 anos de idade, Prestes demonstrou ser fiel ao marxismo-leninismo: como tal, dedicou todas as suas forças até a morte pela construção do partido da revolução brasileira.

É uma pena que no Brasil, hoje, predominem organizações trotskystas. São vários os problemas decorentes da hegemonia do trotskysmo dentro das nossas organizações de esquerda. Uma delas é o deliberado esquecimento de dirigentes do nosso movimento comunista - caracterizados por PSTU, PSOL, LER, MNN, PCO, etc - como "estalinista". Luiz Carlos Prestes é um caso destes dirigentes que precisam ser resgatados:sua história precisa ser contada e confrontada diante das falsificações e calúnias da direita e daqueles trotskystas desonestos.

terça-feira, 25 de março de 2014

“Introdução à Teoria e à Prática Dialética no Direito Brasileiro: a experiência da Renap” – Alberto Liebling Kopittke


Resenha livro #108 -  “Introdução à Teoria e à Prática Dialética no Direito Brasileiro: a experiência da Renap” – Alberto Liebling Kopittke – Ed. Expressão Popular



Este ensaio de Alberto Kopittke corresponde à sua monografia de conclusão de curso de Direito. O tema proposto é o da teoria e da prática do denominado “Teoria Dialética do Direito”. No polo da teoria, há alguns apontamentos acerca da contribuição de Roberto Lyra Filho e sua Nair, Nova Escola Jurídica Brasileira. No polo da prática, há levantamento de informações e reflexões sobre a Renap, Rede Nacional dos Advogados Populares. Trata-se de uma articulação de advogados populares em nível nacional que, a partir de comissões por estados, se organizam e se mobilizam junto aos movimentos sociais, além de oferecerem assistência jurídica em lides relacionadas especialmente à luta pela terra e por moradia.

A “Teoria Dialética do Direito” teria como premissa a união destes dois momentos, o teórico e o prático, buscando avançar sobre uma percepção meramente formalista acerca do direito, que ainda é dominante. Roberto Lyra Filho foi jurista, professor da Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília. E foi desde a Unb que Lyra Filho lançou o seu movimento do “Direito Achado na Rua” ou “Direito Alternativo”. Aquele movimento surgia no bojo das mobilizações populares por que o país passou ao longo dos anos de 1980 ao longo da re-democratização. E, ainda que Alberto Kopittke não observe este fato em seu estudo, é interessante observar as relações entre aquela conjuntura histórica e algumas premissas teóricas do “Direito Alternativo”, particularmente no que se refere à sua relação com o marxismo.

A proposta de Lyra Filho é a de superar de um lado o referencial juspositivista a partir do qual o direito resume-se à norma jurídica estatal e de outro o referencial jusnaturalista segundo o qual alguns direitos seriam essenciais e naturais do indivíduo – uma percepção idealista de direitos negando que são, entre outras coisas, produtos de uma contingência histórica. O grande problema é que Lyra Filho tenta uma inovação metodológica “refutando” o marxismo. E sua “refutação” do marxismo e da tradição marxista não convence. Afirma Lyra Filho não ter Marx teorizado especificamente acerca do direito, no que ele está correto. Entretanto, a análise marxista da sociedade – fundamentada na ideia de infra e superestruturas – não deve autorizar um observador cauteloso a afirmar que marx, ao refutar o direito e o estado como expressões do domínio de classe da burguesia, era ora um juspositivista ora um jusnaturalista. Parece inacreditável, mas é esta a grande descoberta do jurista Lyra Filho: quando Marx aponta para a natureza de classe do direito e do estado, ele é positivista. Quando, por outro lado, Marx chama atenção para a extinção do estado e do direito na sociedade comunista, ele é jusnaturalista.

Roberto Lyra Filho hoje não é um autor frequentemente estudado nas escolas do direito. A sua Nair e os seus livros dormem um justo sono nas estantes das bibliotecas onde eventualmente um historiador do futuro poderá se divertir com aquele jurista carioca, meio poeta e completamente pretensioso, ao ponto de julgar estar “refutando Marx e Hegel”. O fato é que Marx não era um determinista da economia e Engels teve inclusive a oportunidade de refutar tal alegação esclarecendo estar Marx inteiramente ciente das múltiplas determinações engendradas pela “superestrutura”. O materialismo histórico e o materialismo dialético são outrossim ferramentas de análise da realidade, da concretização da história e, nesse sentido, também do direito. Esta percepção totalizante do direito que Lyra julga ter descoberto está plenamente desenvolvida nas ideias de Marx. 

Certamente houve uma tendência dogmática dentro do marxismo, o que, de todo modo, não diz respeito à Marx, mas ao marxismo.   

Falávamos de como as circunstâncias históricas influenciaram a teoria do Direito Alternativo e particularmente sua relação com o marxismo. Em que pese se tratar de uma conjuntura de crescimento das lutas e das mobilizações no país, das greves e da reorganização sindical, dos novos movimentos sociais na cidade e no campo, é importante ressaltar que no nível internacional o socialismo e o marxismo vinham em um período de descenso. Os anos de 1980 e 1990 são os do trinfo do pensamento neoliberal concomitante ao esforço dentro da academia e dos meios de comunicação em desmoralizar o marxismo, tanto enquanto corrente metodológica (tido como “dogmático”), quanto corrente política (tida como “burocrática” e “autoritária”).

É interessante apontar como o chamado “Direito Alternativo” vai buscar se localizar politicamente naquele contexto contraditório, marcado por lutas sociais, novos sujeitos políticos e crise teórico-metodológica do marxismo.

Emblemática algumas das proposições negativas daquilo que a Nair não é: fica aqui bastante evidente aquele esforço de se localizar politicamente: “A Nair não é um sistema de dogmas; A Nair não é um clube jacobino, com patrulheiros da consciência revolucionária; A Nair não é um grupo de gabinete, estando compromissada com campanhas por direitos”.

A centralidade da classe trabalhadora é mitigada dentro da ótica daquele movimento. Os chamados novos movimentos sociais e os seus sujeitos (negros, índios, mulheres, idosos, crianças, etc.) devem ter a mesma importância e o mesmo protagonismo que os trabalhadores. A teoria do estado e do direito desde o ponto de vista marxista também são mitigadas na medida em que há um maior reconhecimento das possibilidades de “transformação” por meio do direito e das instituições estatais. Trata-se de um viés claramente reformista, com ilusões importantes em torno do aparato repressivo-ideológico do estado burguês e do direito.


Se as conquistas democráticas são decorrências de lutas sociais nas quais comumente o direito está diretamente envolvido, isso não deve autorizar, ao menos o jurista marxista, a manter qualquer ilusão em torno da viabilidade da construção de uma sociedade livre e igualitária sem o projeto revolucionária – para além dos marcos legais, portanto. A superestimação do direito tem como contrapartida a criação de ilusões dentre os explorados e oprimidos justamente em torno dos mecanismo sociais que engendram a exploração e a opressão, o capital, a burguesia e o estado. Reconhecê-lo não significa subestimar os direitos democráticos ou deixar de defendê-los. Ocorre que a única via de defesa consequente dos direitos democráticos é por meio da revolução. Neste cenário, portanto, uma pergunta importante precisa ser feita: reforma ou revolução? O movimento do "direito alternativo" ou "direito achado na rua" claramente vai pelo primeiro caminho. O marxismo autêntico segue o segundo caminho.  

quarta-feira, 12 de março de 2014

“Trotsky – O Profeta Desarmado” – Isaac Deutscher

Resenha livro #107 “Trotsky – O Profeta Desarmado” (1921-1929) – Isaac Deutscher – Ed. Civilização Brasileira



A extensa biografia do historiador marxista polonês Isaac Deutscher acerca da vida de Leon Trótsky é dividida em três partes. Já tivemos a oportunidade de resenhar o último tombo do estudo (Ver aqui: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/02/trotsky-o-profeta-banido-1929-1940.html). Em “O Profeta Banido”, Deutscher narrará a vida de Trotsky no exílio, imediatamente após a sua expulsão de Alma Ata até o seu assassinato em 1940 no México. Na resenha do 3º volume tivemos a oportunidade de oferecer informações gerais sobre o autor da biografia, bem como propor um balanço da intervenção política de Trótsky e seus seguidores tanto para a experiência da revolução russa quanto para à realidade contemporânea. Não é necessário repetir o mesmo assunto. As informações sobre Deutscher estão lá, além de serem facilmente encontradas na internet. Já nossa opinião sobre Trótsky e trotskysmo em nada muda após a leitura do 2º Volume.

Assim, este resenha se deterá apenas acerca das principais passagens da vida de Trótsky entre 1921 e 1929.

O profeta desarmado corresponde ao processo gradual de eliminação da Oposição de Esquerda dentro do partido e do movimento russos, processo não linear e que vai expressando diferentes resultantes de uma feroz luta interna dentro do partido comunista, tendo como ponto de partida o definhamento e morte de seu líder inconteste, Lênin.

O período histórico aqui envolvido vai de 1921, com o fim da Guerra Civil, até 1929, com a expulsão de Trótsky da URSS e seu exílio na Turquia. Na verdade, um ano antes, Trótsky já havia sido enviado por Stalin e seus aliados a Alma Ata, no Kazaquistão – havia sofrido a mesma sorte de muitos outros oposicionistas que eram enviados a lugares longínquos (ocasionalmente sob o pretexto de alguma tarefa a ser realizada em benefício do partido) com a finalidade de afastar a oposição (à direita e à esquerda de Stálin) dos centros de decisão e longe de seus apoiadores.

Der todo modo, três questões são importantes de serem destacadas – o problema da democracia interna do partido e na sociedade soviética; as lutas internas e as diferentes composições de força; e o monolitismo stalinista a partir de vínculo insolúvel entre partido e estado.

Quanto ao problema da democracia, sabe-se que a Revolução Russa enfrentara, imediatamente após a tomada do poder em outubro de 1917, a mais furiosa reação contra-revolucionária – aliás, mesmo antes, em Julho, a reação branca quase derrubara o governo provisório e Lênin havia sido obrigado a fugir temporariamente da capital. Com a Guerra Civil apoiada pelas classes derrotadas na Rússia e pelo imperialismo, não haveria de se supor haver alguma possibilidade de um regime político aberto e amplamente “democrático” – o risco real da contra-revolução estava bem presente no imaginário dos bolcheviques que já tinham como exemplo a derrota da comuna de paris de 1871.

Assim, inicialmente, apenas os partidos que reivindicavam a revolução de outubro seriam permitidos. Na prática, estes eram os bolcheviques e os esseristas de esquerda, e posteriormente, estes últimos também romperiam com os bolcheviques, passando abertamente à contra-revolução. Até o fim do período leninista, vigorava um sistema unipartidário, mas que muito se diferenciava em relação ao monolitismo stalinista que seria colocado em marcha gradualmente a partir de 1924, com a morte de Lênin.

O modelo leninista corresponde ao centralismo democrático – total fidelidade à revolução e às deliberações coletivas e liberdades democráticas nos fóruns de decisão partidários. Este modelo pressupunha a existência de facções internas e a luta política ainda não era esmagada pela força. Gradualmente, a democracia seria cada vez mais mitigada em benefício de uma disciplina que se baseava menos nos argumentos poderosos e mais na obediência, no servilismo burocrático e na ameaça de defecções e expulsões. De um “unipartidarismo plural” em Lênin, o partido russo caminhava para um monolitismo. E do monolitismo partidário caminharia para o poder pessoal de Stálin, sendo irônico que não só trotskystas e zinovievistas tenham sido perseguidos, mas mesmo stalinistas que divergiam em algum ponto da linha oficial.

Certamente, o autoritarismo pode chocar a percepção comum bem como alimentar alguns discursos acerca da “natureza” autoritária do socialismo. Porém, é pouco provável que a intensa industrialização e a eliminação da agricultura particular na Rússia pudessem ter sido alcançadas por métodos democráticos. E sem aquele desenvolvimento tecnológico e espiritual, a URSS não estaria preparada para enfrentar e derrotar no nazifascismo na Segunda Guerra mundial.

Como dizíamos, a centralização do poder político na URSS foi gradual e a resultante de uma luta política entre facções da velha guarda bolchevique. Esta era o repositório moral da revolução e se impunha como autoridade inconteste. Inicialmente, a co-relação de forças internas do partido russo esteve de certa maneira encoberta pela liderança inconteste de Lênin – esta liderança seria tão importante que após a sua morte, todos os dirigentes, da direita e da esquerda, diziam estar trilhando o justo caminho do Leninismo. Após o desaparecimento de Lênin em 1924, a direção do partido passa às mãos de um triunvirato composto por Zinoviev, Kamanev e Stálin. Contra o triunvirato ficam Trótsky e seus seguidores, além de outros grupos à esquerda, como os decembristas, e à direita como os Bukharinistas.

Dentre as polêmicas que surgiam então havia o problema da relação entre a Rússia e as pequenas nações – Trótsky criticava o tratamento dado por Stálin aos georgianos e já discorria sobre a questão do internacionalismo, que seria contrabalanceada pela teoria do socialismo num só país. Os choques se prosseguiriam: a revolução na China opunha mais uma vez os dirigentes russos, sendo a posição do grupo dominante russo o apoio ao kuommitang e a subordinação dos comunistas chineses à liderança nacionalista – os comunistas chineses seriam traídos e perseguidos pelos seus antigos aliados criando grandes embaraços ao Comitern e ao partido russo.

Posteriormente, o arranjo de forças políticas de modifica. O triunvirato se rompe. Kamanev e Zinoviev vão para a oposição e sinalizam apoio à Trótsky. Este, mesmo oferecendo enormes resistências a Kamanev e Zinoviev, via o perigo termidoriano pairando a revolução russa. Havia uma “direita” representada nos últimos anos da década de 1920 por Bukharin (que ironicamente fora um “comunista de esquerda” nos anos de Lênin) e o resultado termidoriano significava a restauração capitalista a partir dos Kulagas no campo e dos homens da NEP (Nova Política Econômica) na cidade. Stálin ocupava uma posição de centro, buscava evitar golpear ao a esquerda e a direita, nunca ao mesmo tempo, buscando lançar uma contra a outra. Investia na divisão dos seus adversários e ganhava tempo para paulatinamente ganhar influência e poder no partido e porteriormente, correr para a ofensiva com defecções e expulsões dos adversários.

Leon Trotsky foi expulso em 14 de novembro de 1927 do partido russo. O pretexto foi o de um apelo às massas feito por seu grupo e o de Zinoviev no dia 7 de novembro, quando o país comemorava 10 anos da revolução. Seu apelo continha as bandeiras da oposição: industrialização do país, luta contra os kulags, democracia interna no partido. Sua intervenção foi julgada como divisionista e desleal. Dois anos depois seria expulso da URSS e mais 10 anos passariam, marcados por intensa luta política de ideias a partir de sua defesa frente aos ataques stalinistas, até seu assassinato.     

domingo, 2 de março de 2014

“Várias Histórias“ – Machado de Assis


Resenha livro #106 - “Várias Histórias” – Machado de Assis – Ed. Ática



Tenho em mãos este livro de contos de Machado de Assis. Na capa há uma etiqueta com o meu nome completo e a inscrição “3MA3”, indicando que li estes contos no 3ª colegial do ensino médio, quando tinha 16 anos. Mais de 10 anos se passaram. Esperava uma reação diferente, mais “madura” talvez, a partir de uma nova leitura, tanto tempo depois. Mas a sensação foi antes a de recordação do prazer já obtido ao ler contos como A Cartomante ou a Causa Secreta. O fato é que a literatura de Machado de Assis é bastante acessível (mesmo para um garoto de 16 anos) e nem por isso o texto perde em profundidade, especialmente quando se dedica às análises psicológicas. O poder de extração de sentido a partir de fatos banais ademais é outro traço vivo da literatura de Machado de Assis.
O Mestre do Cosmo Velho foi genial no romance e no conto. Acresce-se que esta coletânea de contos data de 1896, 7 anos depois, portanto do seu magistral “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. E, na verdade, a crítica equipara as “Memórias” com as “Várias Histórias” na medida em que ambas sinalizam um salto de qualidade a partir do qual é possível falar de um jovem Machado de Assis e um Machado de Assis em sua fase de maturidade e plenitude artística.
O que mudou?
Na primeira fase há romances como Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874) e Iaiá Garcia (1878). Já os contos da primeira fase são Contos Fluminenses (1870), Histórias da Meia Noite (1873) ou Histórias sem data (1884). Trata-se aqui do Machado da terceira fase do romantismo da literatura nacional.  Uma fase que na verdade já é uma transição em direção ao realismo. Abandona-se o subjetivismo típico do romantismo anterior, há menor atenção com relação à expressão sentimental particular dos personagens e volta-se a uma perspectiva mais objetiva, no sentido da análise social. Importante relacionar o condoreirismo (outra forma de denominar esta nova fase da literatura) com mudanças importantes na vida política e social do país: a decadência do segundo império, a urbanização relacionada com a importação de novos valores culturais europeus, o advento da republica e a abolição da escravatura.

“Várias Histórias” porém já expressa em sua totalidade as linhas mestras do realismo Machadiano. O realismo é entendido por alguns como expressão artística da pequena-burguesia que nas cidades aparecem na figura do bacharel, do comerciante, do militar, do médico, do político e do advogado. Certamente, figuras bastante presentes nas saborosas histórias de Machado de Assis. Em seus contos, predomina a cidade do Rio de Janeiro, a corte e capital cultural do país no séc. XIX. O realismo volta-se para à análise do cotidiano e os romances, nesse sentido, de Machado de Assis ou Eça De Queiróz, revelam-se documentos singulares para o historiador dos costumes e das ideias de fins do séc. XIX. Em contraponto ao romantismo, abandona-se o idealismo em detrimento de uma narração fiel (realista) das personagens. Evoca-se menos o tom emocional e mais o tom da ironia que, em Machado, tem um sabor particular: a ironia machadiana é frequentemente tragicômica, tem um pingo de alegria e um pingo de melancolia.

Buscando mostrar a sociedade tal como ela se apresenta – sem a idealização romântica – os temas realistas frequentemente incidem sobre a vulnerabilidade do caráter, o adultério, a inveja, o egoísmo, o interesse pecuniário e o triângulo amoroso. Se na tradição romântica ganha destaque a figura de um herói infalível, no realismo engendra-se narrativas que criam maior empatia no leitor, na medida em que a descrição do homem e das relações sociais desde o ponto de vista objetivo – lançando luz sobre as hesitações, as fraquezas e os erros humanos – criam maior identidade entre personagem e leitor.  Duas obras são consideradas como precursoras do realismo na literatura Brasileira dela. Uma delas é as “Memórias” de Machado de Assis. A outra é “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, este último com um traço particularmente naturalista, contendo influência de correntes filosóficas em moda no fim do séc. XIX, o positivismo e o cientificismo.