“Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues
Resenha – “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas
ordinária” – Nelson Rodrigues (org. Sábato Magaldi) – Ed. Nova Fronteira
A importância do escritor Nelson Rodrigues no
Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo
na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia
de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a
nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da
psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais,
e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas
superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas
contradições.
A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e
principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com
enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em
que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem
e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era
basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade
muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões
humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço
para a experimentação formal, para o irreal e o fantástico dentro das peças, e para a exploração
de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana
decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.
Os elementos essenciais da dramaturgia de
Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela
é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a
corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma
exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na
descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de
mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que
em vida não é possível manter a real
autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre
nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento
culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada
personagem. A verdade oculta se revela
nas situações mais dramáticas.
Outro aspecto característico das peças de
teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil
de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de
1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização,
industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma
correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de
massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova
faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa expressão do teatro de Nelson Rodrigues,
nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa
carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias
cariocas”.
Na conjuntura internacional, as peças estão
situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge
um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear
generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo
poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a
exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido”
quando “tudo está prestes a acabar”.
“Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas
ordinária” foi representada pela primeira vez em 28 de novembro de 1962 no
Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Está situada dentro de um grupo
maior de peças teatrais qualificados pelo crítico Sábato Magaldi, com o
consentimento do próprio Nelson, como “Tragédias Cariocas”.
Dentro dessa divisão, haveria ainda as
chamadas “peças psicológicas” e as “peças míticas”, cada qual predominando a
tragédia, a análise psicológica e a fantasia. Tal proposta de divisão das peças
tem uma finalidade mais didática, sem inclusive observar a ordem cronológica das
obras, já que existe uma certa coesão em todo o trabalho de Nelson Rodrigues.
Nas tragédias, também há a presença do mítico e o estudo da psique. Nas peças
psicológicas, estão presentes o mito e a tragédia. E nas histórias fantásticas,
também se observa a tragédia e a exposição obscena das contradições do
inconsciente humano.
O nome dado à peça foi uma homenagem ao
escritor Otto Lara Resende, amigo pessoal de Nelson Rodrigues, e autor de uma
frase repetida dezenas vezes na história: “O mineiro só é solidário no câncer”.
A reiteração da frase tem um sentido
enigmático na peça: ao proferi-la, os personagens parecem tirar a conclusão de
que os seres humanos em geral (e não apenas os mineiros) estão autorizados a
adotar uma conduta corrupta e canalha, sem remorsos, excetos em situações
excepcionais, como “na hora do câncer”.
Logo no início da peça, no primeiro diálogo
entre Dr. Peixoto, um médico imoral, e Edgar, um jovem office boy, a frase vem
a tona, já como uma primeira justificativa para a transgressão ética:
PEIXOTO — Você está alto, eu estou alto. É a
hora de rasgar o jogo. De tirar todas as máscaras. Primeira pergunta: — você é
o que se chama de mau-caráter?
EDGARD — Por
quê?
PEIXOTO(vacilante)
— Pelo seguinte.
EDGARD —
Fala.
PEIXOTO —
Estou precisando de um mau-caráter. Entende? De um mau-caráter.
EDGARD —
Quem sabe?
PEIXOTO —
Espera. Outra pergunta. Você quer subir na vida? É ambicioso?
EDGARD — Se
sou ambicioso? Pra burro! Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto!
PEIXOTO — Um
que é ourives?
EDGARD —
Ourives? Onde? O Otto escreve. O Otto! O mineiro, jornalista! Tem um livro. Não
me lembro o nome. Um livro!
PEIXOTO —
Não conheço, mas. Bola pra fora! Bola pra fora!
EDGAR — O
Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O
fino! Disse. Ouve essa que é. Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que
tal?
PEIXOTO
(repetindo) — “O mineiro só é solidário no câncer.” Uma piada.
EDGARD
(inflamado) — Aí é que está: — não é piada. Escuta, dr. Peixoto. A princípio eu
também achei graça. Ri. Mas depois veio a reação. Aquilo ficou dentro de mim. E
eu não penso noutra coisa. Palavra de honra!
Peixoto propõe a Edgard o enriquecimento fácil
a partir de um casamento arranjado. Maria Cecília, uma garota de 17 anos, filha
de um grande empresário do RJ, é vítima de um estupro durante um passeio de carro. O veículo para
de funcionar num lugar ermo, a vítima é
cercado por cinco crioulos que atacam-na impiedosamente. Após o evento, Dr.
Werneck, pai de Maria Clara, procura um homem para casar a sua filha e salvá-la
da humilhação, porquanto àquela época não se admitia socialmente o sexo antes
do casamento.
Edgar trabalha na firma de Werneck como ex
contínuo, o que poderíamos hoje chamar de office boy. É escolhido justamente
por ser pobre e mais vulnerável a se sujeitar ao suborno. O jovem mantém a
recalcitrância em aceitar a proposta já que ama Ritinha, uma vizinha sua,
também pobre, que mora com três filhas menores e uma mãe louca.
Os personagens transitam entre a negação
constrangida e a afirmação aberta de sua própria canalhice. De forma simbólica,
Dr. Werneck, mantém um desejo sádico de humilhar os outros, e presenteia o seu
futuro genro com um cheque num valor milionário e o desafia: se ele realmente
afirmasse a sua ética em detrimento da proposta corruptiva do casamento com
Maria Cecília, deveria ser coerente e rasgar a cédula.
Edgard segue todo o resto da peça, com o
cheque no bolso, vacilando entre o bem e o mal, preso no seu inconsciente a
frase de Otto Lara Resende que o estimula a aceitar o pacto diabólico: “o
mineiro só é solidário no câncer”. O seu orgulho (e não o sentimento de um deve
ético) o impede de rasgar o cheque e desfazer o casamento.
A revelação das perversões sexuais
inconscientes é estimulada pelo cínico Dr. Weneck num jogo realizado numa festa
de grãos finos em sua casa, por ele chamado de “brincadeira da psicanálise”.
Cada convidado, ou mais especialmente a mulher grã fina de cada convidado, é
estimulada a se sentar num divã e revelar a todos o que passa no seu
inconsciente.
E numa das entrevistas, vemos que a ausência
da “solidariedade” vai além mesmo do que previsto por Otto Lara Resende:
“VELHA (como
uma louca) – Meu marido estava morrendo. Eu era mocinha. E adorava o meu
marido. Foi meu único amor. Estava morrendo. De câncer. Câncer no sangue. No
quarto, eu caí com ataque. Meu primo,
que aprendia judô, me carregou no colo. Meu marido já estava com cheiro de
morte. Eu chorava, gritava. Meu primo me levou para o quarto do lado. E, de
repente, eu tive vontade de trair. Trair o homem que eu amava. Trair antes que
ele morresse. Fui eu que beijei meu primo na boca! Eu! Enquanto meu marido
morria, eu mesmo puxava com as duas mãos o decote! Abria assim, o decote”.
A interpretação das falas é feita por Werneck
na condição de psicanalista. Conforme afirma Nelson Rodrigues num dos diálogos,
apenas os cínicos enxergam o óbvio.
A revelação da verdade de Maria Cecília é
ainda mais chocante. Antes do casamento forjado, Edgard descobre que não houve
estupro criminoso. A adolescente vira numa matéria de jornal a história de uma mulher
que passara pela exata situação vexaminosa envolvendo os tais cinco crioulos. A
notícia estimula o apetite sexual da adolescente que recorre ao seu cunhado
para que ele contratasse cinco homens pretos para currá-la em cima do carro,
num lugar ermo.
PEIXOTO – Eu
me apaixonei por ela. E ela me dizia – Eu queria uma curra como aquela no
jornal’. Então eu catei cinco sujeitos. Paguei os cinco. Custeou cinquenta
contos. Ela queria que eu ficasse olhando. Compreendeu Edgard? Foi ela! Ela que
pediu para ser violada!
EDGARD – É
verdade? Responde! É verdade?
MARIA
CECÍLIA – Está me machucando!
EDGARD
(furioso) – E você me chamou de ‘cadelão’ – por que?
MARIA
CECÍLIA (desprendendo-se com violência e recuando. Desfigurada pelo ódio) –
Ex-contínuo!
PEIXOTO –
Tem 17 anos e é mais puta que. E só sabe ser assim.
Inobstante a prevalência absoluta do mal no
enredo, consubstanciado na tese de que o homem só é solidário no câncer (ou em
alguns casos, nem na doença!), o término da peça sugere um horizonte de
esperança.
Edgard resolve-se por rasgar o cheque e com
isso aniquilar a frase de Otto. Renuncia com o ato simbólico a todos os
benefícios que a riqueza iria lhe proporcionar para viver o seu verdadeiro amor
com Ritinha. É o momento final de redenção e renascimento do homem, que
desponta e deixa para trás as trevas do mal, da perversão sexual e do
egoísmo:
EDGARD –
Vamos começar sem um tostão. Sem um tostão. E se for preciso, um dia, você
beberá água da sarjeta. Comigo. Nós apanharemos água com as duas mãos. Assim. E
beberemos água da sarjeta. E beberemos água da sarjeta. Entendeu? Agora olha.
(Edgard
acende o isqueiro e queima o cheque até o fim.)
EDGARD —
Está morrendo! Morreu! A frase do Otto!
(Os dois
caminham de mãos dadas, em silêncio. Na tela, o amanhecer no mar.)
RITINHA —
Olha o sol!
EDGARD — O
sol! Eu não sabia que o sol era assim! O sol!
FIM DO
TERCEIRO E ÚLTIMO ATO