sábado, 16 de novembro de 2024

“Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues

 “Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues



Resenha – “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues (org. Sábato Magaldi) – Ed. Nova Fronteira

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o  fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem.  A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.  

Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.

“Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” foi representada pela primeira vez em 28 de novembro de 1962 no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Está situada dentro de um grupo maior de peças teatrais qualificados pelo crítico Sábato Magaldi, com o consentimento do próprio Nelson, como “Tragédias Cariocas”.

Dentro dessa divisão, haveria ainda as chamadas “peças psicológicas” e as “peças míticas”, cada qual predominando a tragédia, a análise psicológica e a fantasia. Tal proposta de divisão das peças tem uma finalidade mais didática, sem inclusive observar a ordem cronológica das obras, já que existe uma certa coesão em todo o trabalho de Nelson Rodrigues. Nas tragédias, também há a presença do mítico e o estudo da psique. Nas peças psicológicas, estão presentes o mito e a tragédia. E nas histórias fantásticas, também se observa a tragédia e a exposição obscena das contradições do inconsciente humano.

O nome dado à peça foi uma homenagem ao escritor Otto Lara Resende, amigo pessoal de Nelson Rodrigues, e autor de uma frase repetida dezenas vezes na história: “O mineiro só é solidário no câncer”.

A reiteração da frase tem um sentido enigmático na peça: ao proferi-la, os personagens parecem tirar a conclusão de que os seres humanos em geral (e não apenas os mineiros) estão autorizados a adotar uma conduta corrupta e canalha, sem remorsos, excetos em situações excepcionais, como “na hora do câncer”.

Logo no início da peça, no primeiro diálogo entre Dr. Peixoto, um médico imoral, e Edgar, um jovem office boy, a frase vem a tona, já como uma primeira justificativa para a transgressão ética:

 PEIXOTO — Você está alto, eu estou alto. É a hora de rasgar o jogo. De tirar todas as máscaras. Primeira pergunta: — você é o que se chama de mau-caráter?

EDGARD — Por quê?

PEIXOTO(vacilante) — Pelo seguinte.

EDGARD — Fala.

PEIXOTO — Estou precisando de um mau-caráter. Entende? De um mau-caráter.

EDGARD — Quem sabe?

PEIXOTO — Espera. Outra pergunta. Você quer subir na vida? É ambicioso?

EDGARD — Se sou ambicioso? Pra burro! Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto!

PEIXOTO — Um que é ourives?

EDGARD — Ourives? Onde? O Otto escreve. O Otto! O mineiro, jornalista! Tem um livro. Não me lembro o nome. Um livro!

PEIXOTO — Não conheço, mas. Bola pra fora! Bola pra fora!

EDGAR — O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! Disse. Ouve essa que é. Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal?

PEIXOTO (repetindo) — “O mineiro só é solidário no câncer.” Uma piada.

EDGARD (inflamado) — Aí é que está: — não é piada. Escuta, dr. Peixoto. A princípio eu também achei graça. Ri. Mas depois veio a reação. Aquilo ficou dentro de mim. E eu não penso noutra coisa. Palavra de honra!

Peixoto propõe a Edgard o enriquecimento fácil a partir de um casamento arranjado. Maria Cecília, uma garota de 17 anos, filha de um grande empresário do RJ, é vítima de um estupro  durante um passeio de carro. O veículo para de funcionar num lugar ermo,  a vítima é cercado por cinco crioulos que atacam-na impiedosamente. Após o evento, Dr. Werneck, pai de Maria Clara, procura um homem para casar a sua filha e salvá-la da humilhação, porquanto àquela época não se admitia socialmente o sexo antes do casamento.

Edgar trabalha na firma de Werneck como ex contínuo, o que poderíamos hoje chamar de office boy. É escolhido justamente por ser pobre e mais vulnerável a se sujeitar ao suborno. O jovem mantém a recalcitrância em aceitar a proposta já que ama Ritinha, uma vizinha sua, também pobre, que mora com três filhas menores e uma mãe louca.

Os personagens transitam entre a negação constrangida e a afirmação aberta de sua própria canalhice. De forma simbólica, Dr. Werneck, mantém um desejo sádico de humilhar os outros, e presenteia o seu futuro genro com um cheque num valor milionário e o desafia: se ele realmente afirmasse a sua ética em detrimento da proposta corruptiva do casamento com Maria Cecília, deveria ser coerente e rasgar a cédula.

Edgard segue todo o resto da peça, com o cheque no bolso, vacilando entre o bem e o mal, preso no seu inconsciente a frase de Otto Lara Resende que o estimula a aceitar o pacto diabólico: “o mineiro só é solidário no câncer”. O seu orgulho (e não o sentimento de um deve ético) o impede de rasgar o cheque e desfazer o casamento.

A revelação das perversões sexuais inconscientes é estimulada pelo cínico Dr. Weneck num jogo realizado numa festa de grãos finos em sua casa, por ele chamado de “brincadeira da psicanálise”. Cada convidado, ou mais especialmente a mulher grã fina de cada convidado, é estimulada a se sentar num divã e revelar a todos o que passa no seu inconsciente.

E numa das entrevistas, vemos que a ausência da “solidariedade” vai além mesmo do que previsto por Otto Lara Resende: 

“VELHA (como uma louca) – Meu marido estava morrendo. Eu era mocinha. E adorava o meu marido. Foi meu único amor. Estava morrendo. De câncer. Câncer no sangue. No quarto,  eu caí com ataque. Meu primo, que aprendia judô, me carregou no colo. Meu marido já estava com cheiro de morte. Eu chorava, gritava. Meu primo me levou para o quarto do lado. E, de repente, eu tive vontade de trair. Trair o homem que eu amava. Trair antes que ele morresse. Fui eu que beijei meu primo na boca! Eu! Enquanto meu marido morria, eu mesmo puxava com as duas mãos o decote! Abria assim, o decote”.

A interpretação das falas é feita por Werneck na condição de psicanalista. Conforme afirma Nelson Rodrigues num dos diálogos, apenas os cínicos enxergam o óbvio.

A revelação da verdade de Maria Cecília é ainda mais chocante. Antes do casamento forjado, Edgard descobre que não houve estupro criminoso. A adolescente vira numa matéria de jornal a história de uma mulher que passara pela exata situação vexaminosa envolvendo os tais cinco crioulos. A notícia estimula o apetite sexual da adolescente que recorre ao seu cunhado para que ele contratasse cinco homens pretos para currá-la em cima do carro, num lugar ermo.

PEIXOTO – Eu me apaixonei por ela. E ela me dizia – Eu queria uma curra como aquela no jornal’. Então eu catei cinco sujeitos. Paguei os cinco. Custeou cinquenta contos. Ela queria que eu ficasse olhando. Compreendeu Edgard? Foi ela! Ela que pediu para ser violada!

EDGARD – É verdade? Responde! É verdade?

MARIA CECÍLIA – Está me machucando!

EDGARD (furioso) – E você me chamou de ‘cadelão’ – por que?

MARIA CECÍLIA (desprendendo-se com violência e recuando. Desfigurada pelo ódio) – Ex-contínuo!

PEIXOTO – Tem 17 anos e é mais puta que. E só sabe ser assim.

Inobstante a prevalência absoluta do mal no enredo, consubstanciado na tese de que o homem só é solidário no câncer (ou em alguns casos, nem na doença!), o término da peça sugere um horizonte de esperança.

Edgard resolve-se por rasgar o cheque e com isso aniquilar a frase de Otto. Renuncia com o ato simbólico a todos os benefícios que a riqueza iria lhe proporcionar para viver o seu verdadeiro amor com Ritinha. É o momento final de redenção e renascimento do homem, que desponta e deixa para trás as trevas do mal, da perversão sexual e do egoísmo: 

EDGARD – Vamos começar sem um tostão. Sem um tostão. E se for preciso, um dia, você beberá água da sarjeta. Comigo. Nós apanharemos água com as duas mãos. Assim. E beberemos água da sarjeta. E beberemos água da sarjeta. Entendeu? Agora olha.

(Edgard acende o isqueiro e queima o cheque até o fim.)

EDGARD — Está morrendo! Morreu! A frase do Otto!

(Os dois caminham de mãos dadas, em silêncio. Na tela, o amanhecer no mar.)

RITINHA — Olha o sol!

EDGARD — O sol! Eu não sabia que o sol era assim! O sol!

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

terça-feira, 12 de novembro de 2024

“O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski

 “O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski



Resenha Livro - “O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski – Editora 34 (Tradução Boris Schnaiderman)

A novela “O Eterno Marido” (1870) do Fiódor Dostoiévski (1821/1881) faz parte daquilo que poderíamos dizer ser parte da fase de plena maturidade escritor russo. Foi lançada alguns anos após o seu conhecido “Crime e Castigo” (1866) e “O Idiota” (1869) e pouco antes daquele que foi o seu maior empreendimento literário “Os Irmãos Karamázovi" (1881), este último trabalho qualificado por Sigmund Freud como o mais importante romance de todos os tempos.
Essas obras dizem respeito ao período posterior à sua prisão na Sibéria, desde quando alterou a percepção de mundo que orientou os seus primeiros trabalhos.
Em Janeiro de 1850, Dostoiévski, aos 29 anos e com dois livros já publicados, ingressou na chamada Casa dos Mortos, presídio de regime especial na cidade siberiana de Omsk, município “sujo, militarizado e depravado no mais alto grau”, nas palavras do escritor.
Consta que desde 1847 Dostoiévski frequentava as reuniões de um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski, um político e filósofo russo que intentava implantar no seu país as ideias do socialista utópico francês Charles Fourier. O contexto histórico é o da Rússia dos czares, ou, mais especificamente, do reinado de Nikolai I (1825/1855), um período particularmente difícil para aqueles que tencionavam a reconstrução liberal do Império Russo.
O grêmio foi considerado subversivo e foi desmantelado em 23/04/1849. O processo judicial contra o grupo de Petrachévski foi concluído em novembro de 1949, com a condenação de Dostoiévski e outros na pena de morte. Nos últimos instantes antes da execução da pena capital, recebeu um indulto do Czar para atenuar sua punição para a cassação dos seus direitos civis e oito anos de trabalhos forçados em presídios siberianos.
Essa experiência impactante de quase morte e desterro na Sibéria foi posteriormente narrada no livro “Memórias da Casa dos Mortos” (1862) que foi um sucesso ao seu tempo.
Outro aspecto da vida pessoal do escritor que teve alguma repercussão no seu trabalho literário diz respeito ao seu vício por jogos.
No ano de 1862, durante uma viagem à Europa, teve contato com os cassinos que o levaram ao vício. As constantes dívidas obrigaram-no a fugir da Rússia no ano de 1867 para escapar dos seus credores. Foi durante este período de seu segundo exílio, entre 1867/1871, que escreveu “O Eterno Marido”; como no caso de diversas outras publicações, o livro foi encomendado pelos seus editores e escrito portanto por razões estritamente financeiras.
Ainda assim, temos nessa composição todos os elementos que credenciam Fiódor Dostoiévski ao mais alto ponto da literatura universal. Os temas tradicionais do escritor lá estão expressos, como o caos e a dissolução familiar, os sentimentos persecutórios, a humilhação gratuita, o sadismo, a ganância, a loucura e a doença. Há no romance as cenas febris e dramáticas, a atmosfera explosiva, os diálogos socráticos e, acima de tudo, o estudo da psique. Se o psicólogo, mais do que é um mero terapeuta, é literalmente “o estudioso da psique”, então Dostoiévski, talvez mais do que um escritor, foi um psicólogo.
O Eterno Marido
A história versa sobre o reencontro entre o marido traído e o homem responsável pela traição, nove anos após seu último contato e alguns meses após o falecimento da mulher com quem se relacionaram.
Vieltchâninov, o amante, é um belo homem de 39 anos que está de passagem em São Petersburgo para cuidar de assuntos pessoais relacionados a uma das três grandes heranças que receberia em vida.
Ao rodar pelas ruas da cidade, percebe estar sendo seguido por pessoa que lhe causa desde o início uma irritação, ainda que não pôde distinguir de quem se tratava. A recordação do passado vai sendo enunciada aos poucos, sua memória é fragmentada pelos traços daquela pessoa que encontrava na rua sem poder se lembrar de imediato de quem se tratava. Há a busca pelo fio condutor do passado que atribuísse explicação ao sentimento de irritação em ver o “eterno marido”:
“Algo pareceu começar a mover-se em suas recordações – algo assim como uma palavra conhecida que, por algum motivo, de repente esquecemos, mas que buscamos lembrar com todas as forças: conhecemos essa palavra muito bem, e sabemos que a conhecemos; sabemos o que significa e tateamos ao redor; mas a palavra não quer de modo algum vir-nos à memória, por mais que lutemos!”.
Finalmente Páviel Pávlovitch (esse é o nome do “eterno marido”) apresenta-se à Vieltchâninov e passa a travar relações, inicialmente amistosas, com o desafeto, sugerindo ao leitor o desconhecimento da infidelidade conjugal.
No decorrer da história, descobrimos que Páviel sabia de toda a verdade, desde quando descobrira nos arquivos de sua ex mulher uma carta endereçada a Vieltchâninov.
Páviel apresenta todos os sintomas de um tipo de personagem comum nos romances de Dostoiévski e mais bem representado no “homem do subsolo”: um eterno sofredor, que, inobstante a sua busca por ser amado, é esmagado pela indiferença dos outros.
O “eterno marido” vive com uma filha pequena chamada Lisa, ensejando de imediato a suspeita de Vieltchâninov de que a menina fosse a sua filha. Páviel, viciado em bebida, vive numa num apartamento em estado deplorável, fazendo com que Vieltchâninov se mobilize para retirar a criança da situação de risco e para levá-la aos cuidados de uma família de confiança.
Lisa aguarda em vão uma visita de Pável que, para todos os efeitos, era quem reconhecia como pai, inobstante os maus tratos. Ao sentir-se abandonada, cai numa enfermidade e falece, causando a fúria de Vieltchâninov que atribuiu a morte à negligência (ou talvez o dolo) do “eterno marido.”.
A relação entre o marido traído e o amante segue de uma forma parecida com a dos personagens do romance “O Duplo”, em que conselheiro Golyádkin é acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, uma espécie de uma réplica sua que lhe vai transtornando a vida.
Ao longo da narrativa, o “eterno marido” vai causando no seu rival sentimentos que vão do mais puro ódio a mais desinteressada compaixão. Como no romance “O Duplo”, há uma relação persecutória entre ambos, cada qual despertando no outro todos os sentimentos relacionados ao ato originário da traição. Tal qual no romance “O Duplo”, pode-se dizer que o “eterno marido” constitui uma espécie de desdobramento do próprio amante infiel, tendo como eixo que os unifica o relacionamento amoroso com a falecida Natália Vassílienva. Páviel é uma sobra de um passado que atormenta Vieltchâninov, aparecendo como uma lembrança permanente da deslealdade e egoísmo do amante que ensejou a tragédia familiar do eterno marido. É a corporificação de sentimentos que estão no inconsciente de Vieltchâninov. O “eterno marido” é, nesse sentido, senão uma parte do amante infiel, ao menos um fantasma que o acompanha.
O “eterno marido” pode ser definido como aquele que é incapaz de viver fora da condição marital. Na sua incessante busca em ser amado, revela e expõe publicamente as suas fraquezas, torna-se ridículo e é constantemente humilhado. E, nos momentos em que constata não ser correspondido na sua busca amorosa, torna-se sádico.
A novela é a forma mais bem sucedida que conheço na literatura universal de descrição da psicologia daqueles envolvidos na infidelidade conjugal.

sábado, 2 de novembro de 2024

“A Metamorfose” – Franz Kafka

 “A Metamorfose” – Franz Kafka



 Resenha Livro - “A Metamorfose” – Franz Kafka – Ed. L&PM

Franz Kafka faleceu na data de 03 de junho de 1924, quando tinha quarenta anos de idade.

Sua morte foi particularmente dolorosa. Sete anos antes do óbito, foi diagnosticado com tuberculose, numa época em que ainda não havia tratamento para a doença. A infecção se estendeu à laringe, impossibilitando-o de se alimentar, também numa época em que não existia nutrição parenteral. Por não haver meios de alimentá-lo, sua vida foi lentamente se extinguindo até morrer de fome. Foi desmilinguindo aos poucos, tal qual o protagonista Gregor Samsa, de “A Metamorfose” (1912).

Ao tempo do falecimento, Kafka era um escritor desconhecido. Seus contos, até então, só tinham sido publicados em algumas revistas literárias, para um público bastante restrito. Hoje é considerado um dos mais importantes escritores do século XX, com uma vasta crítica em torno da sua obra, através de estudos de intelectuais do porte de Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Walter Benjain e Theodor W. Adorno. Tornou-se tão importante que o seu nome se converteu num adjetivo. Hoje quando se diz que certa situação é “kafkaniana”, estamos querendo falar de algo que é estranho, labiríntico, ininteligível e surreal.  

E isto só se tornou possível graças ao seu amigo e testamenteiro Max Brod que publicou os seus textos entre 1925 e 1935.

O mais interessante é que esse colega, com quem Kafka manteve amizade desde a Faculdade de Direito de Praga, descumpriu a ordem de lançar toda a sua obra no fogo. Felizmente, Max Brod ignorou o pedido do amigo e reuniu os escritos e anotações de Kafka para lançá-los, ainda que de forma incompleta e fragmentada.  

De fato, Franz Kafka não chegou a terminar nenhum romance. Livros conhecidos como “O Processo” e “O Castelo” são, na verdade, obras inacabadas. A maior parte foram os contos. O mais conhecido deles, certamente, foi “A Metamorfose”, escrito em 1912 e publicado em 1915 numa revista literária alemã.

Nascido em Praga, à época parte do Império Austro Húngaro, Franz Kafka adveio de uma família judaica de classe média. Seu pai foi um negociante, um homem descrito como egoísta, forte e arrogante, e a sua figura intimidadora se projeta em contos como “A Metamorfose” e particularmente em “O Veredicto”. Um aspecto comum, nesses dois casos, é a figura paterna que desperta o medo, o ódio e a culpa. Trata-se de um sentimento de hostilidade que remete à tragédia de Édipo. Tanto em “A Metamorfose”, quanto em “O Veredito”, o conflito se resolve pelo sacrifício do filho através da morte como um meio de aliviamento da culpa. Gregor Samsa, tornado um inseto repugnante em “A Metamorfose”, desaparece como se desistisse de viver, enquanto o protagonista de “O Veredicto” resolve o complexo edipiano, após uma briga com o pai que não concorda com o casamento do filho, através do suicídio.

O que se percebe, no caso da literatura de Franz Kafka, é um forte conteúdo autobiográfico.  

A percepção depreciativa de si mesmo, ao que consta, era algo presente no escritor, que alimentava a crença que as pessoas em geral lhe devotavam repulsa física e moral.

Não é uma rejeição por algo que foi feito de errado mas por aquilo que o sujeito é, sem a existência do dolo ou da culpa. Essa realidade incontornável da rejeição é elevada até o ponto mais dramático na figura de Gregor Samsa, quando num certo dia, depois de acordar de sonos intranquilos, viu-se transformado num inseto repulsivo.

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldades. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume de resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. ‘O que terá acontecido comigo’? Não era um sonho.”.   

Assim começa o conto.

O protagonista é um caixeiro viajante de uma firma de tecidos. Vive num apartamento simples com o pai, a mãe e a irmã mais nova, que são por ele sustentados, desde quando a firma comercial do chefe de família entrou em falência.

Após a metamorfose, aquele grupo familiar, até então numa situação cômoda de ser sustentada por Gregor, rejeita o filho e basicamente o mantém no quarto, longe dos olhos do mundo, como se fosse motivo de vergonha. Até então, Gregor nunca havia faltado ao trabalho, nem mesmo por conta de uma doença. No dia fatídico, sua primeira preocupação é a explicação que daria por estar atrasado no serviço. Um supervisor do escritório em que trabalha comparece na residência para averiguar a razão do seu atraso e sai de lá repugnado.

Samsa, antes e depois da sua transformação, aparenta ter uma obediência incondicional à família, ao pai e ao chefe da firma. Sua vida, até o dia em que se transformou num inseto, é orientada pelo cumprimento incondicional de um dever: trabalhar e sustentar a família. Sonhava, ainda, em matricular sua irmã adolescente num conservatório para estudar violino. Mas o dever não parece estar relacionado a uma relação de afeto e amor no seio familiar. Parece antes uma sujeição passiva da realidade, não muito diferente da alienação a que o trabalhador está sujeito na sociedade capitalista.   

Depois de se transformar num inseto monstruoso, a sua preocupação segue sendo a família e o trabalho, mas agora se manifestando na forma de culpa. Na medida em que a sua figura causa vergonha e nojo aos familiares, opta por permanecer escondido dentro do quarto, de baixo de um canapé, sem permitir ser visto.  De lá, apenas escuta as conversas da sala, feitas em voz baixa, na qual se evidencia progressivamente o abandono e a desumanização de Gregor. Não se sabe o que dizem, mas se presume que fazem planos para se livrar da melhor forma possível daquele problema.

A morte física de Gregor é apenas o coroamento final de sua morte moral, esta última ocorrendo de forma paulatina. Ao final da história, quando uma faxineira da casa o encontra morto, a novidade dá ensejo ao renascimento da família. Depois da morte de Gregor, os pais e a irmã saem daquela posição passiva para ter alguma iniciativa diante da vida. O pai parece querer retomar o trabalho produtivo e a irmã mais nova é encaminhada a um casamento com olhos para um futuro mais feliz. No mesmo dia da morte de Samsa, aliviados, os familiares saem a um passeio e fazem planos para o amanhã. É tempo da primavera, que expressa de uma mesma forma, o renascer, mas da natureza.  

 O mais famoso conto de Franz Kafka agrega o realismo e o fantástico. O absurdo emerge subitamente da realidade banal e se impõe como a nova normalidade. A história, também, parece seguir o mesmo itinerário dos  nossos sonhos, que frequentemente descrevem detalhes realistas precisos da nossa vida convivendo com coisas absurdas. A transformação do homem num inseto, que representa o sobrenatural e o fantástico, exsurge da banalidade do cotidiano familiar e da rotina do trabalho. Tal qual nos sonhos, em que vemos também detalhes da realidade interagindo com o absurdo.

E, ao fim, o desaparecimento de Gregor, além do despertar da família, e o desabrochar da primavera, é o coroamento da realidade definitivamente se impondo à fantasia. O livro começa quando Samsa acorda para um mundo fantástico e termia com a sua morte, que representa o despertar da realidade.

 

Bibliografia:

MERÇON, Francisco Elias Simão. “Uma Leitura Analítica da Novela A Metamorfose de Franz Kafka”. Dissertação de Mestrado. FFLCH/USP.

A Metamorfose – Franz Kafka

O Veredito – Franz Kafka

sábado, 26 de outubro de 2024

“A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga

 “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga


 

Resenha Livro - “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga – Editora Três

 

O realismo fantástico ou mágico foi uma forma com que se qualificou uma série de obras literárias latino-americanas produzidas entre as décadas de 1960 e 1970.

 

Diante do impacto dos golpes militares que instituíram regimes de exceção em praticamente todos os países da América Latina, criou-se um estilo de narrativa em que o absurdo emerge da realidade cotidiana e banaliza-se na percepção dos personagens.

 

Os elementos mágicos e fantásticos são concebidos como parte de uma nova “normalidade”, e assim também são percebidas pelos personagens. Há uma convergência entre aquilo que é comum e banal com aquilo que é sobrenatural. A conjuntura política daquele período, marcado por regimes de exceção que se eternizaram por anos a fio, se comunica com essa proposta de criação de uma expressão literária na qual a fantasia e o sobrenatural exsurgem da realidade, para elas próprias tornarem-se um novo estado de normalidade, apenas contestada por alguns espíritos isolados, dotados de alguma rebeldia.  

 

As ditaduras militares que apareceram como um regime de exceção provisório para contornar o risco da revolução impõem um novo estado de normalidade, em que o que era absurdo deixa de ser percebido como tal.

 

O romance “A Hora dos Ruminantes” (1966) do escritor goiano  José J. Veiga é talvez a versão mais bem acabada do realismo fantástico na literatura brasileira.

 

Escrito dois anos após o golpe de 1964, o romance trata de um pequeno vilarejo fictício chamado Manarairema, onde uma população de simples camponeses e artesãos é surpreendida pelo aparecimento de um povo estrangeiro, que desde o horizonte, num certo dia, surge e constitui um acampamento. Aqueles estranhos despertam num primeiro momento a curiosidade do povo de Manarairema, isolados que sempre estiveram de qualquer novidade vida de fora:

“No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam, chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a cena nova. Uns chamavam outros, mostravam, indagavam, ninguém sabia. Em todas as casas era gente se vestindo às pressas, embaraçando a mão em mangas de paletó, saindo sem tomar café, pisando em cachorros lerdos, cachorros ganindo, gente dando peitada em gente, derrubando chapéu, a algazarra, a correria. Todos deviam ter visto ao mesmo tempo a parte alta do largo, as janelas dos sobrados, os barrancos estavam tomados de gente olhando, apontando, discutindo”.

 

Os forasteiros não têm nome e não têm rosto. Um ou outro cruza com os habitantes de Manarairema pelas estradas e não cumprimentam, passam-se por ofensivos e grosseiros. Contudo, aquelas pessoas tão estranhas, chamados pelo povo de “homens da tapera”, vão misteriosamente se impondo e ganhando uma preponderância moral sobre o povo do vilarejo.

 

Num primeiro momento, os homens da tapera contratam os serviços de Germiniano, um preto que aluga carroça de burro para o transporte de mercadorias. Não foi bem uma contratação, mas uma intimação para obrigá-lo a transportar areia, sem que o leitor saiba com clareza quais os mecanismos com que constrangem, compelem e ameaçam o trabalhador a prestar os serviços.

 

Germiniano num primeiro momento recusa o trabalho com indignação, pela forma com que é abordado e por desconhecer a natureza daqueles homens. Depois de ser convocado a ir pessoalmente ao acampamento, transforma-se completamente, assume estar vivendo um novo estado de coisas, executa as ordens dos homens como se fosse uma sentença inapelável de um juiz, e o seu medo vai se disseminando aos demais cidadãos de Manarairema. Faz um eterno transporte de areias, sem coragem de explicar aos demais o porquê de sua capitulação. Segue um eterno ir e vir, transportando a areia, tal qual o mito de Sisifo da mitologia grega, que conta a história de um homem que foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha para sempre, repetindo o processo quando a pedra caísse.   

 

E assim, sucessivamente, os homens da tapera vão convocando, sem possibilidade de recursos, um ou outro habitante para lhe prestar serviços.

 

Constituem um novo regime de medo e terror: aqueles que se recusam a comparecer aos chamados são alertados às graves consequências da sua rebeldia. As ameaças não são ditas de forma expressa por aqueles estrangeiros (eles quase não se manifestam na história), mas são repercutidas pelos cidadãos que voltam transtornados do acampamento vizinho. A coação é velada e não se sabe bem quais seriam as consequências da transgressão da nova ordem; há, por outro lado, uma convicção crescente no coração do povo do dever de respeitar e atender todos os chamados dos homens da tapera. Os forasteiros se projetam quase como uma força divina, capaz de aplicar os mais cruéis castigos às ovelhas que se desviassem da trilha por eles traçadas ao rebanho.

 

A invasão dos homens da tapera é seguida de outros eventos fantásticos.

 

Há uma segunda invasão de cachorros, que tomam as ruas e casas de Manarairema sem que os habitantes tenham força moral e iniciativa para rechaçá-los. Aceitam-nos entrando nas suas casas e fazendo sujeira, como se fosse uma mera fatalidade da natureza. Segue-se depois uma segunda invasão de bois, esta ainda mais catastrófica, com os animais tomando todo o espaço da cidade, entupindo as ruas de esterco, tornando o ar podre e obrigando os moradores a queimar fumo e casca de laranja para aturar o odor.

 

O elemento fantástico, na história, emerge gradualmente da realidade banal e comezinha de Manarairema. Ao longo da história, a fantasia mais se avolumando, até resvalar o absurdo. De uma invasão de forasteiros, à invasão de cachorros e por fim à invasão de bois.

 

Por fim,  num certo dia, os bois, os cachorros e os homens da tapera regressam de onde vieram e a pacata cidade retorna à normalidade. O livro termina com a imagem do tempo, que se interrompeu durante o período da fantasia, quando se impôs a ditadura dos homens da tapera, para retornar ao seu trabalho de cronometrar a vida. E assim termina o livro:  

 

“O relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo desregulado. Já estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser”.

 

Sobre o Autor

 

José Jacinto Veiga nasceu em 02 de fevereiro de 1915 numa cidade do interior de Goiás chamada “Corumbá de Goiás”. A sua infância, naquele vilarejo, provavelmente serviu de referência para construir Manarairema, que é um lugar fictício onde se passa não só “A Hora dos Ruminantes” (1966) mas também é o cenário do livro “Os Cavalinhos de Platiplanto” (1959).

 

Iniciou-se na literatura relativamente tarde, aos 45 anos de idade. Formado em Direito pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, acabou abraçando o jornalismo, tendo colaborado na imprensa carioca e na BBC Londres. Faleceu em 1999, alguns anos depois de receber o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, como forma de reconhecimento final do conjunto de sua obra literária.

sábado, 19 de outubro de 2024

A Poesia de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

 A Poesia de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)




 

Navio que partes para longe,

Por que é que, ao contrário dos outros,

Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?

Porque quanto te não vejo, deixaste de existir.

E se tem saudades do que não existe,

Sente-se em relação a cousa nenhuma;

Não é do navio, é de nós, que sentimos saudades.

 

Não seria exagero dizer que Fernando Pessoa foi o maior poeta em língua portuguesa do século XX. O seu trabalho pode ser alçado ao mesmo patamar daquele que foi a mais importante figura da literatura lusófona de todos os tempos: Luís Vaz de Camões.

 

No caso de Pessoa, trata-se de um caso único da história da literatura universal; dele originou-se a criação de uma nova forma de expressão poética através da Heteronímia (héteros = diferente; + ónoma = nome). Foi através dos heterônimos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – que deu vazão à sua imaginação e à versatilidade de sua personalidade, para criar o grosso de sua produção literária.

 

Heterônimos não se confundem com os pseudônimos.

 

Não há em Fernando Pessoa a pretensão de esconder o seu nome verdadeiro e dar autoria dos seus textos a um pseudônimo, como ocorre com certa frequência, pelas mais diversas razões, a maior parte delas sem uma implicação direta com a obra produzida.

 

O heterônimo, ao contrário do pseudônimo, é um personagem, criado pelo poeta, que cria uma obra própria. Cada heterônimo tem um nome próprio, uma biografia própria e, sobretudo, um estilo próprio.  Não é apenas um nome fictício para esconder a face do poeta. Trata-se da expressão multifacetada de um artista que almeja exprimir suas ideias em diferentes formas de acordo com a percepção de mundo de cada personagem por ele criado.

Ricardo Reis é um médico erudito que vive no Brasil. Latinista por educação própria, seus versos têm um estilo neoclássico, formal e erudito.

 

Álvaro de Campos, ao seu passo, é, nas palavras de Pessoa, a sua versão mais histérica. Foi um engenheiro naval, cuja educação formal se deu de forma precária num Liceu. O seu estilo é mais experimental, com algumas variações de acordo com a trajetória de vida do personagem. No começo, influenciado pelo modernismo e futurismo. E ao final, recaindo no pessimismo.

 

Alberto Caeiro, ao que consta, foi considerado o mestre e mais importante poeta criado por Fernando Pessoa. Foi, também, a principal inspiração do heterônimo Ricardo Reis que, no seu prefácio do livro de Caeiro, assim descreve o poeta camponês:

 

“A obra de Caeiro representa a reconstrução integral de paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os  gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão. (...) Ignorante de vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações.”.

 

O estilo do poeta, ao contrário de Reis e Campos, é simples, sem a erudição de um e o experimentalismo modernista de outro.

 

Não teve nenhuma educação, exceto a instrução primária. Viveu a sua curta vida de 20 e poucos anos toda ela no campo.

 

E é da relação imediata do homem com a natureza que emerge a poesia de Caeiro. Quando se fala imediata, quer-se dizer que a proposta de Caeiro é a do rompimento com qualquer tipo de mediação, através da linguagem, de conceitos filosóficos e de pressupostos ideológicos, entre o poeta e aquilo que descreve.  

O horizonte do poeta é aquilo que ele vê. Há sempre, em absolutamente todos os poemas, a primazia do sentir sobre o pensar:

 

“Todas as opiniões que há sobre a Natureza

Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.

Toda a sabedoria a respeito das cousas

Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas.

Se a ciência quer ser verdadeira,

Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito

Tem uma realidade tão real que até as minhas costas sentem.

Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas”.

 

Para Caeiro, não há um sentido oculto por detrás das coisas. Ridiculariza os poetas e filósofos que através do pensamento procuram uma significação subjacente a todas as coisas.

 

Pensar é estar doente dos olhos, pensar é não compreender. O poeta contenta-se a sentir, até porque, “há metafísica bastante em não pensar em nada”, nome de um dos poemas de “O Guardador de Rebanhos”:

 

O que penso eu do Mundo?

Sei lá o que penso do Mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o Sol

E a pensar muitas coisas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o Sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

 

 

Dentro desta proposta, é possível ler os poemas de Caeiro imaginado que as palavras enunciadas pelo poeta tenham saído da boca da própria Natureza. É como se as árvores, as águas dos rios e as pedras estivessem revelando ao mundo a impertinência e despropósito da busca pela atribuição de sentidos às coisas. Se há algum sentido, ele não decorre do pensamento mas da percepção objetiva e direta das coisas, em torno do que se vê, do que se toca e do que se escuta.

 

Ao ponto do poeta, em mais de uma ocasião, dizer que aquilo que deixa de ver, para ele, deixa de existir.

 

Em certas passagens Caeiro reconhece-se incidentalmente como materialista e ateu. Ricardo Dias, no seu prefácio, qualifica seu mestre como pagão. Mas sempre há a ressalva, na poesia de Caeiro, que toda forma de nomenclatura para atribuir sentido às coisas é algo despropositado, quando a missão do poeta é a de descobrir o mundo “sem pensar nele”.

 

No seu conceito de universo não há cabimento de interpretações. “O único sentido íntimo das cousas é elas não terem sentido íntimo nenhum.”,  afirma em um dos seus poemas.  Num determinado momento diz não acreditar em Deus pelo fato de não  poder vê-lo. Para, na sequência, no verso subsequente, assumir a possibilidade de Deus ser uma forma diferente de dizer o que é aquilo que vê e que foi por ele criado, fazendo-o neste caso, o mais fervoroso crente. Com a ressalva de que, se Deus são as árvores, o sol e as pedras, melhor chamá-los de árvores, sol e pedras e não de Deus.

 

Ao ler a poesia de Alberto Caeiro, há a sensação de estarmos em contato com um homem do campo plenamente aclimatado à natureza ao ponto de sugerir ao leitor se tratar de um de alguém já no limiar da vida, se preparando para a morte – o problema de Deus e da finitude da vida são reiteradamente sugeridos, o que não poderia ser diferente, de acordo com a filosofia do poeta.

 

Curiosamente, Caeiro morreu jovem. Faleceu aos 26 anos de idade, solteiro, vivendo na casa de uma tia velha, com poucos recursos financeiros.

 

Tornou-se hoje o maior poeta da Natureza. Não por cantá-la vendo nela belezas e ideias ocultas. Mas por ser o seu porta-voz, podendo-se dizer que nessa poesia, quem fala é o sol, as águas dos rios e dos mares, os ventos, as pedras e as árvores.

 

Bibliografia:

 

“Sobre Fernando Pessoa” – Jane Tutikian

 

“Caiero Triunfal” – Richard Zenich

 

“Guardador de Rebanhos” | “O Pastor Amoroso” | “Poemas Inconjuntos” – Fernando Pessoa (Org. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith).