“Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa
Resenha
Livro - “Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa – Global Editora
“Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe
revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever
livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à
síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem
muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão” (João
Guimarães Rosa, 1965).
João
Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 em Cordisburgo, um pequeno arraial
situado na região central do Estado de Minas Gerais.
Iniciou
os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando teve seus
primeiros contatos com o francês.
Nas
palavras do próprio escritor:
“Eu falo: português, alemão, francês, inglês,
espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e
grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei
a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do
tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês;
bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o
espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais
profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por
divertimento, gosto e distração.”.
O autor
de “Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação
para o estudo.
Com
apenas 16 anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais,
no ano de 1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu
como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano
depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de
Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, aprovado em 2º
lugar, tornando-se diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.
Tradicionalmente,
afirma-se que a literatura de João Guimarães Rosa é uma expressão tardia do
regionalismo literário e do movimento modernista da década de 1930, do qual os
autores mais conhecidos são Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do
Rego.
O modernismo
regionalista foi pioneiro em retratar as condições das classes populares, notadamente
o sertanejo, o jagunço, o caboclo, o camponês sob o domínio do senhor de engenho ou a pequena burguesia dos incipientes
centros urbanos nordestinos, captando as contradições e ambuiguidades do homem
através da análise psicológica. Até então, as classes populares vinham sendo
retratadas na literatura romântica e realista/naturalista de forma incidental e
sem maiores preocupações em torno das complexidades do homem pertencente às
classes populares.
Certamente,
João Guimarães Rosa é um herdeiro desse avanço concretizado pelos modernistas
da década de 1930. Entretanto, qualificar João Guimarães Rosa como um “autor
regionalista” é discutível e isso por duas razões.
O modernismo
regionalista ainda tem um tom pitoresco.
O exame da
vida social nos engenhos de açúcar em José Lins do Rego (“Fogo Morto”) ou dos
retirantes da seca em Graciliano Ramos (“Vidas Secas”) parte do ponto de vista
do homem da cidade confrontado com um mundo diferente, em vias de extinção. (São histórias que retratam o período de
decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho do nordeste, cujos
domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo
capitalista instaurado pelas Usinas.).
O
modernismo regionalista tem ainda um forte componente telúrico. As histórias brotam da terra, com o
protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a
economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o
cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar
subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se
dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o
sertanejo (personagens).
Em
Guimarães Rosa esses dois aspectos, o pitoresco e o telúrico, perdem importância.
O Sertão
ganha uma nova dimensão universal.
Os
conflitos em torno da terra, a exploração dos latifundiários ou da violência
dos cangaceiros nos regionalistas são substituídos em Guimarães Rose pelos
grandes temas universais: qual o limite entre o bem e o mal? Como se situa a
condição humana dada a inevitabilidade da morte? Quem é Deus? De que forma é
possível definir o sentimento do amor?
Diferentemente
da literatura puramente telúrica, o Sertão de Guimarães Rosa não condiciona a
conduta dos personagens. O Sertão é nada menos do que um palco onde se encena o
drama universal em torno das grandes questões humanas. Neste ponto, trata-se de
uma obra que pode ser alçada ao patamar da mais alta literatura universal, ao
lado de Dostoievsky no romance ou Shakespeare na dramaturgia.
Outro
aspecto que o diferencia bastante do regionalismo modernista é a experimentação
na linguagem. O escritor tinha literalmente um projeto linguístico próprio.
Lendo os
contos de “Primeiras Estórias” (1962) dá-se mesmo a sensação de que estamos
lendo um livro em outro idioma, parecido, mas diferente do português. A criação
de palavras novas (neologismo) serve para expandir ao máximo a capacidade de
expressão do pensamento através da linguagem.
Foram dois os livros de contos publicados por
João Guimarães Rosa.
O
primeiro é o seu livro de estreia, denominado “Sagarana” (1946). Já “Primeiras
Estórias” pode ser considerada obra da plena maturidade do escritor, publicada
alguns anos depois do seu mais alto empreendimento literário: “Grande Sertão:
Veredas” (1956).
“Primeiras
Estórias” foi lançada na década de 1960, período de grandes transformações no
Brasil, com o desenvolvimento acelerado da indústria por meio do Plano de Metas
traçado por Juscelino Kubitschek.
Trata-se de um tempo de acentuada transição demográfica no país, com a migração
da população do campo para a cidade, fenômeno simbolicamente representado pela
construção de Brasília (1956 a 1960).
Esse
processo histórico está presente nos contos do escritor mineiro.
Dois contos
“Primeiras Estórias” tratam justamente da construção de uma nova cidade no meio
do nada, vista sob o olhar de uma criança. “As Margens da Alegria”, a estória
que abre o volume de contos, retrata uma viajem de avião sob um vasto campo
onde se construirá uma cidade. E “Os Cismos”, o livro que fecha as estórias,
retoma essa mesma história, agora para retratar a angústia dessa criança
confrontada com a convalescência de sua mãe.
História vista
sob o olhar de uma criança reforça uma visão de mundo marcada pela perplexidade
e pelo mistério.
Esses
dois contos revelam aquela superação do modernismo regionalista que nos
referimos anteriormente. Pode-se dizer se tratar de uma coroação do fim daquele
mundo dos engenhos de açúcar, o esfacelamento da sociedade patriarcal estruturada
na tradição econômica herdada do Brasil Colonial.
Novamente,
o Sertão agora passa a ser o palco por onde passam homens e mulheres que suscitam os
grandes problemas universais.