domingo, 30 de novembro de 2025

“Pensão Riso de Noite” – José Condé

 “Pensão Riso de Noite” – José Condé



Resenha Livro - “Pensão Riso de Noite: Rua das Mágoas (cerveja, sanfona e amor)” – José Condé – Livraria José Olímpio Editora

O livro mais conhecido do escritor José Ferreira Condé (1917/1971) chama-se “Terra de Caruaru” (1960) com o qual venceu o prêmio “Coelho Neto” da Academia Brasileira de Letras. É uma história de sua cidade natal, onde o escritor passou a sua infância e para quem dedicou a sua literatura, incluindo as novelas reunidas sob o título “Pensão Riso da Noite” (1966).

A novela enquanto gênero literário está a meio caminho entre conto e o romance. Consiste em histórias não tão curtas como os contos e nem não extensas quanto o romance.  A variedade de personagens e a dinâmica do espaço e tempo dentro do enredo, na novela, também ficam a meio termo entre o conto e o romance. No Brasil não foram muitos os escritores que se dedicaram a essa forma de literatura.  Alguns exemplos mais conhecidos são “O Alienista” de Machado de Assis e “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector.

“Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas (cerveja, sanfona e amor” é uma reunião de novelas que gravitam em torno de uma casa de meretrizes situada em Caruaru/PE. Todas as histórias se passam no ano de 1927 naquela cidade, situada no interior do Estado de Pernambuco. E há um baralhamento dos personagens entre cada uma das novelas – um protagonista de uma novela, surge como um  coadjuvante na história subsequente. Os mesmos personagens se confundem nas diferentes histórias. E todas elas têm o tom da comédia.  

Neste sentido, pode-se dizer que o livro revela a pretensão do artista contar histórias de sua terra. A cidade de Caruaru, conhecida como a “Princesa do Agreste”, é a verdadeira protagonista do livro, de forma semelhante com que Aluísio Azevedo atribuiu o protagonista do espaço em relação aos próprios personagens no seu livro “O Cortiço”. Nas novelas de José Condé, o leitor entra em contato com toda variedade dos tipos populares que compõem uma cidade do agreste nordestinos no início do século XX: ex escravos, recém libertos do cativeiro, caixeiros viajantes, juízes, advogados, delegados de polícia, prostitutas, beatas, padres e até um líder religioso missionário ao estilo de Antônio Conselheiro.

Esse elogio de sua terra natal realça uma dimensão heroica de alguns personagens. É o caso Ezequias Vanderlei Lins, mais conhecido como seu Quequé, um caixeiro viajante dotado de carisma especial para conquistar o amor feminino.

Como a sua profissão obriga-o a estar sempre em viajem, fazendo comércio, Quequé termina constituindo três famílias em três cidades diferentes. Ele é casado com Eleuzina em Caruaru, com Santinha na cidade de Penedo em Alagoas e com Nicinha na cidade de Estância em Sergipe. Nenhuma das mulheres, e seus respectivos filhos, sabe da existência das outras com que o herói contraiu matrimônio.  Não existe por parte de Quequé maiores escrúpulos em torno da mentira. Não se julgava imoral, mas, pelo contrário, buscava o amor através de suas múltiplas faces. Adaptava-se a cada situação, a cada relacionamento amoroso com as suas particularidades, procurando tirar de cada uma delas o melhor proveito que o amor feminino pode oferecer. Em determinada passagem da novela, o caixeiro viajante menciona uns versos que escrevera na mocidade:

“Não amo mulher nenhuma,

Amo a mulher, sim senhor.

Pois amando a espécie em suma,

Vou amando o próprio amor.”.

Essa forma variável com que o protagonista experimentoU o amor se revela nas cartas que escreve para cada uma das suas companheiras.

O estilo com que escreve revela os diferentes traços de personalidade de cada mulher e as particularidades em torno de cada casamento, evidenciando as tais possibilidades infinitas do amor.

Eleuzina de Caruaru tem um perfil boêmio e acompanha Quequé nos saraus do Major Sindô, regados à cachaça, música e aos elogios do Major à figura de D. Pedro II. Santinha, como o nome sugere, é uma mulher cândida, viúva muito jovem, e que, depois do luto pela morte do marido, adotou uma vida beata, trancada dentro de casa. Até conhecer Quequé, por quem se apaixonou e travou um casamento convencional. E por último Nicinha, uma jovem e belíssima sergipana, desmiolada, e a única que despertara ciúmes mortal do caixeiro viajante.

Ao fim da história, o protagonista é dedurado por um invejoso e levado às barras dos Tribunais pelo crime de poligamia, ao constituir três casamentos em três estados diferentes. No dia do julgamento, as três esposas comparecem no Tribunal e, curiosamente, ficam ao lado de Quequé, dizendo que elas eram as maiores interessadas em torno do crime de trigamia, conquanto não tinham o menor desejo de punir o Réu. A defesa inusitada das vítimas em favor do seu algoz levou o público que assistia ao julgamento às gargalhadas. De nada adiantou: Quequé pegou três meses de prisão.

José Condé faleceu em 1971 no Rio de Janeiro, cidade onde morou a maior parte de sua vida, a despeito do foco de sua obra estar voltado à sua cidade natal. As suas novelas retratam de forma realista a vida urbana de uma cidade do interior nordestino, com ênfase especial aos extratos sociais mais baixos. A descrição daquelas cidades é comovente àqueles que conhecem o Brasil profundo: são as igrejinhas situadas no centro da cidade, as zonas de meretrício, as feiras barulhentas e agitadas, as festas religiosas, aos bares onde se bebe cachaça e se toca sanfona. Trata-se de fonte preciosa aos interessados em conhecer a cultura popular nordestina.  

domingo, 23 de novembro de 2025

“A Imaginária” – Adalgisa Nery

 “A Imaginária” – Adalgisa Nery



Resenha Livro - “A Imaginária” – Adalgisa Nery – Editora José Olympio

“Às vezes, o pensamento me vem, como agora. É como se todos os instantes em que vivi tivessem deixado uma profunda marca sobre as múltiplas facetas do meu ser.

Estou ao largo da madrugada. Chego à janela aberta. O primeiro plano da paisagem é a rua asfaltada, cortada por trilhos brilhantes e polidos pelo uso. O segundo plano é um pequeno morro salpicado de casebres. Sobre todas essas coisas um imenso e profundo céu, e o silêncio. Se eu pudesse alcançar o cume da mais alta montanha do universo e varrer com o olhar toda a extensão do globo terrestre, veria que a única coisa que existe é a solidão”.

Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira (1905/1980) foi escritora, jornalista e poetisa.

Nascida em 1905 no Rio de Janeiro, sem escolaridade formal, lançou o seu primeiro livro de poesias em 1937, quando já era viúva e tinha os seus 32 anos de idade.

Teve o mérito de se tornar uma escritora de talento num tempo em que poucas mulheres poderiam ter condições de granjear algum reconhecimento no meio literário.

Os seus livros de poemas, contos e romances foram publicados entre os anos de 1930 até 1970. O direito feminino ao voto no Brasil é de 1932. A primeira lei do divórcio no Brasil foi aprovada em 1977 – até então, o casamento, não raramente, poderia equivaler a uma prisão hedionda. Pouquíssimas mulheres nesse período puderam cursar o ensino superior – a formação intelectual, quando muito, se dava em torno do magistério ou nos colégios de freiras.   

Rachel de Queiroz, contemporânea de Adalgisa Nery, também publicaria o seu romance de estreia, denominado “O Quinze”, nos anos de 1930. O seu retrato realista das famílias nordestinas retirantes da seca faria com que Graciliano Ramos, ao ler o livro, duvidasse que ele tivesse sido escrito por uma mulher. Rachel de Queiroz só seria agraciada como membro da Academia Brasileira de Letras em 1977, mais de quarenta anos depois do seu primeiro e mais impactante romance.

Foram, portanto, poucas as mulheres que conseguiram vencer as barreiras sociais para conquistar uma posição de destaque na literatura brasileira. Os exemplos, de fato, não são muitos: Adalgisa Nery, Rachel de Queiroz, Júlia Lopes de Almeida, Carmen Dolores, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, esta última talvez a mais conhecida de todas.   

A Imaginária (1959) é um romance autobiográfico.

Nele, a escritora irá relatar suas experiências desde a infância no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, até o seu casamento precoce com o pintor Ismael Nery, este último um precursor do expressionismo e do modernismo nas artes plásticas brasileiras. Casou-se por amor, aos quinze anos de idade, contrariando sua família. O casamento com um artista dotado de inteligência incomum trouxe-lhe a oportunidade de participar de discussões com intelectuais que frequentavam a sua casa – o que pôde suprir a ausência de escolaridade formal com o aprendizado e a vivência nesses debates que ocorriam à noite na sala de visitas.  

Entretanto, o matrimônio também lhe traria os horrores de uma vida familiar trágica, envolvendo uma sogra com lapsos e impulsos de loucura e violência, uma tia beata profundamente avara e egoísta, a morte precoce de filhos, a infidelidade conjugal e a completa incompreensão de todos aqueles que a cercam, ignorantes da sua viva sensibilidade. A mais dolorosa incompreensão vinda do seu marido que, após 13 anos de matrimônio, ainda via sua mulher apenas como uma boa mãe e uma boa dona de casa, desconhecendo o turbilhão de sentimentos e emoções que dão à Adalgisa os caracteres de poeta e artista:

“E qual a categoria a que pertenço? Quais são essas pessoas que formam um grupo? São os poetas e artistas que possuem no mais alto grau a faculdade de viver não somente o seu próprio tempo e as suas impressões, mas também a vida exterior e a vida interior dos outros, através do cálculo da sensibilidade. De sentir não somente a sua paisagem, a sua raça, mas também a dos outros, de ter consciência de várias existências como a da própria .”.

A morte precoce do primeiro marido e as dificuldades de uma mulher solteira, intelectualmente sofisticada, seriam alguns capítulos de uma vida marcada pelo intenso sofrimento da alma.

Como mencionado, este é um livro autobiográfico. Entretanto, falar que “A Imaginária” é uma mero relato da trajetória de vida da autora seria a mais completa falsificação da obra.  

A sucessão de eventos da vida da protagonista aparece de forma secundária no livro. A história é contada em primeira pessoa e apenas incidentalmente descobrimos em determinada passagem que a narradora se chama Berenice. Ela não atribui nome à mãe, falecida quando tinha oito anos de idade, nem ao pai, nem aos irmãos, nem à madrasta. Também não faz alusão ao nome do seu marido. Apenas se refere à sogra como “a mãe do meu marido”. Como insistentemente se refere a essa personagem dessa maneira, fica claro ao leitor a sua intencionalidade de sequer qualificá-la como “sogra” para evidenciar uma relação de não pertencimento à tumultuada família do esposo – a tal “mãe do meu marido” procuraria culpar o próprio filho pela doença que o levaria à morte e, depois, passaria a jogar o neto contra sua nora, incutindo-lhe desconfianças de que Berenice travaria relações com amigos que frequentavam a casa.

Também não existem no livro alusões mais detidas sobre o espaço e o tempo. Há a descrição da casa onde a protagonista viveu, do colégio de freira onde estudou, do sanatório onde o marido foi internado. Mas não sabemos onde esses lugares estão situados, não há um nome de uma cidade ou de um país. Também não sabemos bem quando se passa a história. A narradora fala dos seus sentimentos e eles adquirem uma dimensão universal, na medida em que pouco sabemos sobre os nomes dos envolvidos na trama, das cidades e do país onde vivem e da conjuntura histórica em que estão situados.

 O motivo principal do romance é, portanto, as cogitações da protagonista, dotada de uma sensibilidade dilacerante, que irá voltar sua energia para descrever a percepção do mundo e das pessoas a sua volta – o cotidiano não é a fonte da história, mas um meio de revelação da alma da poetiza. “O fato de eu pensar no meu próprio pensamento me faz compreender a minha incompreensão”, afirma a protagonista em determinado momento.

E esse deslumbramento das suas próprias emoções, somado à profunda capacidade de compreender os outros e a si própria, será uma fonte constante de angústia.

O sofrimento é a lei inescapável da vida. Ao ponto da protagonista em determinado momento afirmar inexistir a felicidade, mas apenas meros hiatos entre uma ou outra forma de derivação do sofrimento. Não tem, entretanto, nenhum pendor ao papel de vítima. Não esboça revolta contra as injustiças, mesmo quando seu marido, no leito da morte, confessa o caso extraconjugal. Procura ver a vida com resignação, que só pode ser alcançada através de uma profunda capacidade de compreensão do outro. Sempre através da sua sensibilidade exacerbada e, nas palavras da escritora, “monstruosa”, a poetiza sofre mas compreende com naturalidade esse sofrimento.

O livro é uma viagem profunda da narradora dentro de si mesma através do exercício da introspecção. Um paralelo poderia ser traçado aqui com o livro “Angústia” (1936) de Graciliano Ramos, talvez o mais introspectivo livro do grande escritor alagoano. Os dois livros, “Angústia” e “A Imaginária” são um relato em primeira pessoa de uma história pessoal, cujos eventos principais cedem espaço aos efeitos desses mesmos eventos sobre as emoções do narrador. No caso de Angústia, esse movimento irá dar causa à loucura do protagonista Luís da Silva. Já no caso de “A Imaginária”, a introspecção dará ensejo à aceitação da vida como ela é, a resignação como produto da compreensão mais profunda dos outros e duas suas próprias razões.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

“O Povo Brasileiro” – Darcy Ribeiro

 “O Povo Brasileiro” – Darcy Ribeiro


 

Resenha Livro - “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” – Darcy Ribeiro – Ed. Global

“Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua curiosidade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da terra”.

No prefácio do livro “O Povo Brasileiro” (1995), Darcy Ribeiro revela ter demorado trinta anos para concluir a obra, escrevendo-a e reescrevendo-a ao longo de todo esse tempo, a medida que foi amadurecendo suas pesquisas e experiências na vida pública.   

No ano de 1995, quando estava internado na UTI para tratar de um câncer de pulmão, o autor tomou a insólita decisão de fugir do hospital para uma casa de praia em Maricá/RJ, onde pôde ter a tranquilidade necessária para concluir o ensaio.

Felizmente, teve a oportunidade de terminar a obra, certamente a mais importante que produziu. Morreu dois anos depois da fuga do hospital, deixando atrás de si uma trajetória política e acadêmica que envolveu a chefia da Casa Civil no governo João Goulart (1963), foi vice governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel Brizola (1982)  e foi fundador da Universidade de Brasília (1962).  

O livro tem o propósito de construir uma teoria do povo brasileiro. Entendendo esse povo como uma nova etnia, configurada através das três grandes matrizes raciais – o índio originário da terra, o negro africano e o branco português. E mais do que uma nova etnia, uma nova civilização, consistente na encarnação ultramarina e tropical da civilização latina, naquilo que denomina ao final do livro como a “Nova Roma”.

Baseando-se na premissa em torno da especificidade brasileira, Darcy Ribeiro irá traçar um relato da evolução histórica da conformação do povo e o seu desmembramento em quatro grandes matrizes: o “Brasil Crioulo” constituído através dos engenhos de açúcar, do latifúndio, da monocultura agrário exportadora e do trabalho escravo; o “Brasil Sertanejo”, relacionado à interiorização da ocupação territorial no nordeste através da pecuária, com as suas figuras messiânicas e o banditismo social dos cangaceiros; o “Brasil Caipira” que remonta aos bandeirantes paulistas, passando pela economia da mineração e despontando na economia do café e na imigração italiana; e o “Brasil Sulista”, temperado nas guerras e na animosidade bélica de gaúchos e caudilhos, que se entrincheiram em suas fazendas, disputando terras na bala com os espanhóis.

A origem mais remota do povo brasileiro, o seu nascimento, dá-se através do mameluco, também qualificado pelo autor como “brasilíndio”.

No Brasil, ao contrário do que ocorreu nas colônias de povoamento da América do Norte, foram constituídas aquilo que Caio Prado Júnior muito bem descreve como “colônias de exportação”, empreendimentos agrário exportadores, por meio dos quais o branco europeu lançou-se aos trabalhos de escambo com os índios e posteriormente à economia do açúcar, sem a intenção de constituir um  povoamentos ao estilo europeu.

Diferentemente do que ocorreu na América do Norte, onde famílias europeias eram transplantadas para reconstruírem no novo mundo a velha sociedade europeia, no Brasil houve a necessidade de construir algo novo. O português aqui chegou sem trazer a mulher branca, dando vazão à concupiscência sexual na sua relação com as índias e depois com as negras e mulatas.

E daí exsurge os primeiros brasileiros:

“O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasileiro mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos – que ele desprezava -, nem com os europeus – que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos lusonativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro”.

O brasileiro nasce portanto dentro dessa dupla dinâmica de exclusão: rejeita a mãe de origem indígena e é rejeitado pelo pai de origem europeia.

Existe muita controvérsia hoje em dia em torno do papel da mestiçagem na formação do nosso povo e do conceito da democracia racial, teses representativas do pensamento de Gilberto Freire.

Darcy Ribeiro reconhece o racismo do Brasil, mas ressalva que aqui o nosso preconceito predominante é o de classe.

Nossa situação não se confunde com o segregacionismo racial dos norte americanos. Lá existe um preconceito de raça, ao passo que no Brasil existe um preconceito de cor, sempre temperado pelo preconceito de classe. Enquanto no norte se trata de um problema de sangue, aqui se trata de preconceitos em torno de fenótipo.

“O preconceito de raça, de padrão anglo saxônico, incidindo indiscriminadamente sobre cada pessoa de cor, qualquer que seja a proporção de sangue negro que detenha, conduz necessariamente ao apartamento, à segregação e à violência, pela hostilidade a qualquer forma de convício. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo, diferencialmente, segundo o matriz de pele, tendendo a identificar como branco o mulato claro, conduz antes a uma expectativa de miscigenação. Expectativa, na verdade discriminatória, porquanto aspirante a que os negros clareiem, em lugar de aceita-los tal qual são, mas impulsora da integração.”.

A própria ideia de miscigenação é levada num novo patamar na obra. Ela está diretamente relacionada, no caso brasileiro, com a “deculturação” do português, do africano e do índio pré colombiano.

Na gênese do povo brasileiro – diferenciação de um povo dotado de especificidade –  o  índio é “destribalizado”, negro é “desafricanizado” e português é “deseuropeizado”  - cada um deles para se constituir como Brasileiro.

Não foi portanto a mestiçagem uma mera mistura de raças mas a reconfiguração de cada uma dessas matizes étnicas para a criação de um novo povo.

No caso do índio, a sua “destribalização” se seu através da intervenção dos missionários, particularmente os jesuítas, que através dos seus aldeamentos, disciplinaram-nos ao trabalho, tentando-lhes incutir alguns valores cristãos e buscando conter a poligamia, a antropofagia e outros excessos.  

A intervenção dos colonos, ou mais especificamente dos sertanistas paulistas, que capturam os índios para escravizá-los, inclusive destruindo as missões jesuíticas, aproveitando que os índios já estavam agrupados e prontos ao trabalho, também foi uma forma de “destribalização”.

A deculturação dos africanos decorreu de uma estratégia dos latifundiários: no tráfico de escravos, buscou-se misturar as diferentes nações africanos dentro das mesmas frentes de trabalho. Evitava-se assim criar um sentimento de coesão tribal que pudesse desafiar o regime escravocrata. Interessante notar que esse fato fazia com que os escravos, de diferentes etnias, sequer conseguissem comunicar-se entre si. Cada tribo diferente da África tinha os seus próprios dialetos. Nos locais onde grassava a escravidão negra, os africanos logo aprendiam o português, por ser a língua que os unificava enquanto trabalhadores do engenho.

E a deseuropização do português deu-se na exata medida em que aqui tiveram de consolidar um novo estilo de vida, sem a pretensão de transplantar famílias e modos de viver do velho continente, tal como se deu na América do Norte.

Essa originalidade do processo histórico cria as bases de uma nova civilização, de um povo original cuja data de nascimento é bastante recente, em termos históricos, se cotejada por exemplo com os árabes, eslavos ou chineses. As nossas potencialidades, neste sentido, são enormes e estão longe de se exaurirem.

“O Povo Brasileiro”, sem perder de vista a crítica impiedosa às mazelas da escravidão do negro e à destruição da cultura indígena, é um chamado à defesa do Brasil.

Nas palavras do escritor, no prefácio, “este é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.