domingo, 10 de agosto de 2025

“Mar Morto” – Jorge Amado

"Mar Morto" - Jorge Amado


  

Resenha Livro - “Mar Morto” – Jorge Amado – Ed. Record

“... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar”.

 É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações das obras no teatro, no cinema e na televisão.

Jorge Amado é também um dos escritores brasileiros mais conhecido e lidos fora do país – no ano de 1971, por exemplo, o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura popular.

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos.

Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm. 

A segunda fase da produção literária do escritor baiano se relaciona com uma reorientação política. Teve como eixo a ruptura de muitos intelectuais com o movimento comunista no contexto do XX Congresso do PCUS no ano de 1956, quando Nikita Kruschev denunciou aquilo que caracterizava como os “crimes do stalinismo” – na prática, tratava-se do marco inicial da restauração capitalista da União Soviética.  São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966).

Apesar de “Mar Morto” (1936) ser uma obra da juventude de Jorge Amado, foi por ele considerado o seu melhor romance.

A história dos homens que vivem no mar, transportando mercadorias nos seus barcos a vela (saveiros), em condições de extrema pobreza e sujeitos ao risco de uma tempestade leva-los à morte, remonta à preocupação  do escritor com a vida e a luta do povo e dos trabalhadores. Mas, o componente político não compromete a qualidade literária da obra.

A grandeza do escritor reside justamente nessa capacidade de expressar a luta de classes sem o fazê-lo por meio de proselitismo partidário ou até mesmo com uma intenção de agitação e propaganda em torno de determinada ideologia. Com esse arranjo, suas histórias são factíveis, a conduta dos personagens, ainda que heroica em determinados momentos, não se revela como algo não plausível.  

O protagonista da história chama-se Guma, mais um daqueles muitos homens do cais. O seu pai sofrera o destino irremediável daqueles marinheiros: morrera num naufrágio do seu Saveiro para o encontro inevitável com Iemanjá, a divindade protetora dos marinheiros. Sua mãe foi uma prostituta que, sem condições de cuidar do filho, deixou-o aos cuidados de um Tio, também marinheiro, que ensinou à Guma desde menino a pilotar o barco de vela,  chamado simbolicamente de “Valente”.

O que caracteriza aqueles homens do mar é a coragem.  E a experiência de viver o amor e a vida em geral de forma intensa.

A coragem reside na formação para um trabalho em que estarão sempre cercados pelo risco da morte. São as tempestades repentinas e os ventos que destroem os saveiros e levam seus condutores ao encontro de Iemanjá. Além disso, Guma e os demais são desde criança levados ao trabalho no mar. Apenas frequentam poucos anos de escola para apenas aprender de forma rudimentar a escrever o seu próprio nome. Já aos 10 ou 11 anos de idade, abandonam o estudo para cumprir o seu destino. Reproduzem um ciclo que vem dos seus pais e avós. Tornam-se por isso homens antes do tempo.

Além disso, os homens do cais vivem o amor de forma intensa. Passam temporadas em viagens e quando retornam à família, amam suas mulheres como se não houvesse amanhã. Afinal, nunca saberão o dia em que não retornarão.

Não encaram essa fatalidade com revolta, nem tão pouco com resignação. Trata-se de predestinação, vista por eles em seu caráter heroico. Todos aqueles homens sabem que o seu destino é perecer nas águas do mar. O tio de Guma, uma exceção à regra, envelhece até esgotar suas forças para conduzir o saveiro. Perecer de velhice, sem cumprir o seu destino de marinheiro, é motivo de tristeza àqueles homens.

A dimensão política da obra se revela na exposição das condições de vida dos trabalhadores do mar. Os marinheiros quando naufragam obrigam suas esposas a sobreviver da prostituição ou do trabalho precário nas fábricas. O baixo preço pago pelas viagens levam-nos em determinado momento a cogitar a greve geral. Há ainda na história dois personagens oriundos de uma pequena burguesia que aderem e defendem os interesses dos trabalhadores. São os intelectuais que gravitam em torno da luta social.

Dona Dulce é uma professora de escola primária, ensina os meninos que dentro de pouco tempo abandonarão ao estudo para o trabalho. Acredita que haverá no futuro um grande milagre que trará a redenção do povo: sem atribuir nome a esse milagre, o leitor facilmente compreende essa esperança com o advento do socialismo. Outro intelectual é o Dr. Rodrigo, um médico que renuncia a riqueza e a vida confortável do trabalho na cidade para viver no cais, lado a lado com os trabalhadores, ajudando-nos com dinheiro e medicando o povo de forma gratuita.

“Mar Morto” é também uma história de amor.

As mulheres dos marinheiros vivem um triste destino: esperam a cada noite de tempestade a notícia da morte dos seus maridos.

Lívia, a companheira de Guma, é uma delas. Contra a vontade da família, casa-se por amor sincero. Em toda a história, passa pela não aceitação do destino que leva os trabalhadores ao encontro inevitável com Iemanjá. No início do casamento, busca até mesmo acompanhar Guma nas suas viagens no navio. E o amor de ambos enseja pela primeira vez um sentimento de medo em Guma: nas viagens em que está acompanhado de Lívia, experimenta um novo sentimento de temor de um naufrágio, que agora arrastaria consigo a sua companheira.

A morte heroica do protagonista no final da história traz-nos a revelação de que Lívia não fora simplesmente uma companheira de Guma. Na busca pelo corpo do marido, a história termina com a sugestão de que Lívia nada mais fora do que uma materialização de Iemanjá, também conhecida pelo povo como Janaína. A vida no mar os uniu e a morte no naufrágio do barco “Valente” os reuniu.  

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