domingo, 23 de junho de 2024

“Helena” – Machado de Assis

                                                “Helena” – Machado de Assis




Resenha Livro - “Helena” – Machado de Assis – Iba Mendes Editor Digital

Existe uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas grandes fases.

Num primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram estabelecidas as bases do realismo-naturalismo  literário em terras brasileiras.

Essa forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma ressalva.

Vistos todos os livros, de conjunto, é possível de se perceber todas as tendências intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição e escritor, como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo, sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado, extraindo elementos para a criação de um estilo próprio[1].  

Válido ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.

Em todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de Assis passa por duas etapas bem diferenciadas.

Poderíamos falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos românticos e sua obra tem um caráter mais convencional.

Dessa primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”   (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).

O divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista deu—se, como dito, a partir do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).

A partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua vez marcaram as obras de juventude.

A pouco verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou exigências sociais, como se dá com a personagem Helena em seu romance homônimo, é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias Póstumas.   

Em ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.

A arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.

Num primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de um conformismo político.

Num segundo momento,  essa descrição da vida terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais vigentes.  

Neste marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao universo burguês citadino, e, frequentemente,  desconsideram as desigualdades sociais e a principal chaga social da época: a escravidão.

Esse ponto de vista também é discutível.

Mesmo em “Helena” (1876), um livro tipicamente romântico, voltado um público feminino da classe dominante do Brasil do II Império, tanto o tema da escravidão como o da pobreza estão presentes na obra, ainda que de forma tangencial.  

Pode-se dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades – há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”. Mas, evidentemente, o romance de Machado de Assis pode ser caracterizado de diversas formas, menos como arte voltada ao proselitismo político.  

Sobre o Romance Helena.

“Helena” foi publicado em folhetins entre agosto e setembro de 1876 pelo jornal “O Globo”. Foi reunido naquele mesmo ano num volume único pelo editor Baptiste-Louis Garnier.

Consta ter sido um sucesso de público: foi, aliás, escrito quando o escritor já era conhecido e consagrado pelo pequeno público leitor da época.

A história se passa em meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro.

Após a morte por apoplexia do Conselheiro Vale, um rico potentado do Rio de Janeiro, seu filho e herdeiro Estácio recebe através do testamento a informação de que seu pai, conhecido em vida pela infidelidade conjugal, deixara uma filha oriunda de relacionamento ilícito. Como última disposição, o morto manifestou a vontade de que essa descendente fosse acolhida como filha legítima e parte da família.

Esta filha é Helena, a protagonista da história.

Ao chegar à casa do falecido Conselheiro, aos dezessete anos de idade, é vista com reservas, não tanto pelo seu meio irmão, mas por D. Úrsula, senhora de idade, beata e irmã do Conselheiro. Contudo, as qualidades morais de Helena e mesmo a sua beleza vão aos poucos desconstituindo todas as reservas, inclusive da severa tia de Estácio:   

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócio, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”.

A afeição entre a protagonista e o seu meio irmão vão se acentuando ao ponto de sugerir cada vez mais ao leitor a existência de um amor proibido, posto que incestuoso.

Helena e Estácio cresceram em famílias separadas: não aprenderam a falar pelos lábios da mesma mãe. Quis a fortuna que entre os dois não houvesse a imagem da infância comum e a comunhão dos primeiros anos. Em plena mocidade, passaram, do total desconhecimento um do outro para a intimidade de todos os dias no lar comum. Circunstâncias que fizeram brotar um amor impossível, que, aliás, não era sequer percebido de forma consciente por Estácio.

Posteriormente, este sentimento terá outros desdobramentos diante da impactante notícia de que o Conselheiro Vale não fora efetivamente o pai biológico de Helena.

Essa descoberta se deu após Estácio confrontar Salvador, um homem em situação de miséria que morava numa chácara próxima da residência do Conselheiro.

Helena de forma clandestina diariamente visitava aquela casa, até quando seu irmão, voltando de uma caçada, viu a protagonista se despedindo daquele homem velho,  naquela palhoça em situação de abandono. Num primeiro momento, pensa se tratar de um enlace amoroso que levaria à desgraça e desmoralização de Helena, até então vista como a mais cândida das criaturas. De uma forma previsível, ao melhor estilo romântico, a pureza de intenções da protagonista será depois confirmada: Salvador era de fato o pai de Helena e não o seu amante. Já a mãe de Helena abandonou Salvador para viver em melhores condições na companhia do Conselheiro Vale, ainda que na forma de uma relação extraconjugal e clandestina. Àquele momento, Helena era uma criança: Salvador aceita o triste destino, com a esperança, depois confirmada, de que o Conselheiro premiaria sua filha pobre com um bom legado.  

Após a descoberta do segredo envolvendo o passado da protagonista, fica também evidenciada a possibilidade do amor entre Estácio e Helena: ambos não são irmãos. Mas, mesmo deixando de ser um amor incestuoso, ainda havia a barreira social, esta tão intransponível quanto a barreira moral. Reconhecida até então como filha do Conselheiro, passaria a ser identificada como descendente de um simples artesão.

Ao término da história, Helena falece após a forte comoção oriunda da revelação da do seu passado.  O amor impossível entre ela e Estácio apenas poderia se resolver através desta forma.

Machado de Assis no prefácio do livro reforça aquilo que expusemos anteriormente: Helena é uma obra de juventude, parte da fase de maturação artística.

Ainda assim, demonstrou alguma satisfação com o resultado do livro:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco da mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.



[1] de Moraes, V. L. A. (2008). Helena: Construções e contradições. Revista Da Anpoll, 1(24). https://doi.org/10.18309/anp.v1i24.16

sábado, 1 de junho de 2024

A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino

 A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino.





Resenha Livro – “Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino” – Patativa do Assaré – Ed. Vozes.

“Arguém diz que o mundo presta,

Grita mermo em arto som,

Mas é tolo e nada sabe

Quem diz que este mundo é bom.

Como é que ele tem bondade

Se a nossa felicidade

Voa como pensamento

E da praça inté no campo

O gozo é cumo relampo

Que abre e fecha num momento

Dêrne do primero dia,

Que Adão mais Eva pecou,

A rosa criou espinho,

Tudo se desmantelou.

E Deus vendo que a desgraça

De Adão, o chefe da raça,

Precisava sê comum,

Depressa sentenciou,

E uma pacela de dô,

Reservou para cada um.

(A Menina e a Cajazera)

Patativa é uma pequena ave cujo canto é fino e melodioso, imitando em alguns casos os sons do bem-te-vi. O seu nome científico é Sporophila plúmbea, que dignifica (Ave) cor de chumbo que gosta de sementes.

Foi a ave que batizou o poeta sertanejo Antônio Gonçalves da Silva (1909/2002) nascido na cidade de Assaré, situada no sertão do estado do Ceará.

A relação do poeta com o passarinho decorre da forma e do conteúdo dos seus versos.

 Na forma, pelo fato de Patativa do Assaré exprimir a sua poesia através da oralidade: desde criança, cantava em verso as histórias de sua terá natal.  Sua obra em livros na verdade são coletâneas de poemas que cantava e sabia de memória, recitando-os de cabeça até os noventa anos de idade.

No conteúdo pelo fato de sua poesia ser uma afirmação dos sentimentos da terra: a percepção direta da natureza e da sociedade rural do sertão são os fatos geradores da arte. Nela nada há de cerebrino: há uma espécie de filosofia telúrica cujas ideias estão intimamente relacionadas à experiência e a vivência com a terra. Neste último ponto, foi uma espécie de versão brasileira de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa: são poetas ligados à natureza, captada através da simplicidade das palavras e de uma profunda emotividade.

A poesia exurge de forma tão natural quanto o canto da ave.

Veja neste sentido “Aos Poetas Clássicos”

“Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês.

(...)

Na minha pobre linguage

A minha lira servage

Canto o que minha arma sente

E o meu coração incerra,

As coisa de minha terra

E a vida de minha gente.

(“Aos poetas clássicos”).  

 De outro lado, a percepção do imediato não se limita à contemplação da natureza mas à crítica social: a denúncia do latifúndio, a exposição da miséria do retirante, o problema da manipulação política dos coronéis. Porém, o sofrimento do homem do sertão não estimula o poeta ao rompimento com os seus laços da terra. Com todos os problemas, ainda afirma que sua felicidade repousa no canto da terra onde nasceu.

Sobre a infância do poeta, válido citar a “autobiografia” tratada pelo poeta no prefácio do livro “Cante Cá que eu Canto Lá”:

“Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, a três léguas da cidade do Assaré. Meu pai, agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte da terra, a qual depois de sua morte foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos pois ficamos em completa pobreza”

Apenas frequentou a escola aos doze anos e nela ficou por quatro meses, sem interromper o trabalho na roça. Apenas aprendeu a ler, e depois nunca frequentou um banco escolar. Ainda,  perdeu a visão de um olho na infância por conta de sarampo.

Aos 16 anos, comprou o violão e começou a fazer repentes e a cantar de improviso. Fazia apresentações em festas populares. E a poesia continuou a fazer parte de sua vida junto com o trabalho no campo: morreu aos 93 anos na mesma cidade de Assaré, a despeito de ter sido reconhecido como o grande poeta popular brasileiro já em vida. Basta dizer que foi agraciado ainda em vida como Doutor Honoris Causa em mais de uma universidade, além de ter sido criada uma universidade naquele estado que leva o seu nome e funciona até os dias e hoje.

O leitor que tem contato com a poesia de Patativa do Assaré é levado à conclusão de que nem sempre a afirmação da tradição está em contradição com a crítica social que sugere grandes transformações do mundo.

Sua ideologia cabocla, em oposição à modernidade, aspira a justiça social. A forma visionária e lúdica com que descreve o mundo sertanejo nos faz lembrar de um mundo rural em vias de extinção com  a troca do engenho de pau pelo engenho de ferro e depois pela Usina capitalista. Os filhos dos camponeses que se aventuram na cidade, tornam-se vítimas da exploração do patrão da indústria e estão sujeitos à desgraça do crime e da prostituição. O crescimento da cidade vai fazendo evaporar aquele mundo rural secular.

Curiosamente, essas ideias o tornariam hoje um “dissidente” em oposição à fragmentação e desmantelamento dos laços comunitários típicos da modernidade e da sociabilidade liberal e capitalista.