Resenha Livro #24- “Condição Pós-Moderna “ – David Harvey – Ed. Loyola
Autor
Harvey é um geógrafo britânico e professor de universidades norte-americanas. Suas pesquisas são focadas particularmente sobre o estudo das cidades – as análises sobre as implicações econômicas sobre a arquitetura das cidades e as noções de espaço-tempo discutidas em “Condição Pós-Moderna” sinalizam o diálogo particular de Harvey com a geografia. “Condição Pós-Moderna” corresponde ao seu terceiro livro, tendo sido lançado no Brasil em 1993.
Visão Panorâmica da Condição Pós Moderna
“O Novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, revela um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido” – Jürgen Habermas – Citado por David Harvey
O livro de Harvey tem seu formato pensado e organizado de maneira a oferecer uma crítica dialética do que é apresentado como “condição pós-moderna”. O significado dialético da análise de Harvey refere-se ao esforço de confrontar as tendências da arte, da arquitetura, da filosofia e da política pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo. É nesse sentido que toda a análise de Harvey acerca da “Condição Pós-Moderna) diz respeito a certa condição histórico-geográfica.
O próprio autor dá uma boa síntese das suas preocupações e objetivos da obra.
“Por meio do primeiro (materialismo histórico), podemos compreender a pós-modernidade como uma condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível lançar um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de Vir-a-Ser em vez de Ser, buscando a unidade no interior da diferença, embora um contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da compreensão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da alteridade sejam claramente entendidos”. (Pg. 325)
Destacamos a ponderação final do autor: reconhecer a necessidade de ampliar o campo de compreensão da alteridade e o que ele chama de novas relações de “tempo-espaço” também deve ser objeto das análises críticas. Se a intenção geral de Harvey nos pareceu lançar uma crítica sobre a condição pós-moderna, se apropriando da dialética e da ideia do materialismo histórico, sua opção metodológica não implica na mera negação “em bloco” dos questionamentos dos desafios teórico-metodológicos colocados pela “condição pós-moderna”. Muito pelo contrário: há, sim, o esforço de se promover uma “renovação do materialismo histórico-geográfico (que) pode na verdade promover a adesão a uma nova versão de projeto do Iluminismo”.
Outro aspecto interessante da obra, e que igualmente sinaliza a apropriação da dialética como fonte de crítica social, é a própria forma como o ensaio é dividido. As IV partes do texto complementam e confrontam ideias entre si, de maneira que a parte 4 (Condição Pós-Moderna) corresponde a uma síntese das discussões acerca do significado geral das mudanças culturais, geográficas (ideia de espaço-tempo) e políticas da fase da acumulação flexível.
Breve síntese do ensaio
Na Parte I – “A Passagem da Modernidade à Pós-Modernidade na cultura contemporânea”, são apresentados em linhas gerais os elementos que configuram a estética pós-moderna, destacando-se especialmente a arquitetura, de maneira a introduzir o debate, ilustrando a forma como a condição pós-moderna se situa no espaço urbano, na arte, na publicidade, nos meios de comunicação. Há a exposiçãoda forma como o discurso da pós-modernidade incide no cotidiano, sugerindo a atualidade do debate. Neste momento, ainda não identificamos as posições políticas do autor com relação ao problema.
Na Parte II – Em “A transformação político-econômica do capitalismo do final do séc. XX”, as atenções do autor voltam-se agora para as relações econômicas, e particularmente o momento de transição das formas de organização do trabalho. A transição do modelo fordista ao modelo da “acumulação flexível” passa a subsidiar o entendimento materialista histórico-geográfico da condição pós moderna. A definição de acumulação flexível parece ser do próprio autor (não conhecemos a origem da expressão) e é amplamente descrita, a partir de gráficos e tabelas, como momento da reestruturação produtiva do capitalismo a partir dos anos de 1970.
“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”.
Evidentemente, as mudanças econômicas exigem transformações nos discursos que dão sustentação à natureza ideológica do trabalho. Harvey identifica autores que falam em “fim do trabalho”, particularmente Gorz, com distorções que têm a ver com a condição pós-moderna.
Na parte III, na nossa opinião o momento mais complexo e difícil do texto, Harvey discute as experiências do espaço-tempo ao longo da história: do começo da modernidade, referindo-se às mudanças das noções de espaço e tempo decorrentes das transformações tecnológicas, políticas e sociais do início da modernidade, o sentido de tempo e espaço dentro do projeto Iluminista e, talvez o capítulo mais interessante do livro, a discussão do tempo e espaço no cinema pós-moderno a partir de análises dos filmes “Blade Runner” de Ridley Scott e “Asas do Desejo” do cineasta alemão Wim Wenders.
O que há de comum nas duas películas é a forma como são retratados o espaço-tempo na pós-modernidade. A tese de Harvey é a de que, ao contrário do momento Iluminista em que a noção do “Vir-a-Ser” tem importância central na percepção social do tempo e do espaço – remetendo, na nossa interpretação, a uma história dotada de sentidos, a condição Pós-Moderna, ao fastar o “Vir-a-ser” e instaurar a hegemonia do “ser”, implica numa crise de representatividade do tempo e do espaço, dinamizada pela lógica da acumulação flexível. No Caso de Blade Runner, a crise diz respeito às experiências dos “Replicantes”, espécies de robôs fabricados à imagem e semelhança dos homens, que têm sentimentos, mas não têm história de vida: são simulacros de pessoas que, ao final do filme, pouco se diferenciam dos homens enquanto sujeitos sociais e históricos. As diferentes noções de tempo e espaço vivenciadas por personagens que convivem e interagem, também aparece em Asas do Desejo, estabelecendo relações entre homens a anjos, mortais e imortais, pouco se podendo diferenciar passado, presente e futuro. Tais exemplos sinalizam aquilo que se chama de Crise da representatividade do Tempo e Espaço. Mais uma vez, o desafio aqui é identificar tais crises não enquanto inevitabilidades que corroboram para uma visão irracionalista da vida – aquilo que Carlos Nelson Coutinho diria ser a “Miséria da Razão”.
O desafio é transpor os discursos ideológicos identificando as crises de representação enquanto partes de um determinado desenvolvimento histórico pautado por exigências econômicas e pelos conflitos de classe. Este é o termo a que se chega a parte IV. Há aqui uma proposta de síntese, sinalizando, dentre outros, os desafios colocados pela Condição Pós-Moderna àqueles que lutam por uma sociedade que, nas palavras de Harvey, equiparem as potencialidades econômicas às necessidades humanas, o que quer dizer socialismo.
O Materialismo Histórico frente à Crise da representação do espaço-tempo
O sentido e as implicações gerais da Condição Pós Moderna podem não ter sido bem captadas pela esquerda, de maneira a não contrapor as críticas acerca da “insuficiência” ou “reducionismo” do materialismo histórico e dialético frente às esferas culturais e políticas da era da acumulação flexível. Particularmente, a reflexão acerca da crise das representações de tempo-espaço deve ser objeto de atenção, até para se considerar em que medida formas de organização e intervenção política anti-capitalistas podem estar desgastadas frente às circunstâncias tecnológicas e sociais que viabilizam trocas de experiência e de ideias em curto espaço de tempo. Ações diretas, lutas espontâneas, intervenções lúdicas e poéticas podem somar-se às tradicionais formas de resistência e mobilização, contrapondo a crise de representação de tempo-espaço a uma percepção humanista e dotada de sentidos acerca do tempo e do espaço. Capacitar estudantes e trabalhadores a serem protagonistas históricos significa também combater os discursos de fragmentação ou eliminação da história, decorrentes daquela crise de representação.
Harvey elenca quatro itens que, no nosso entendimento, bem corresponderia a 4 novas exigências de estudos por parte da esquerda diante da era da acumulação flexível. Vale a pena citar os 4 desafios, a título de conclusão.
1-“ O tratamento da diferença e da “alteridade” não como uma coisa a ser acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças produtivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda tentativa de apreensão da dialética da mudança social. A importância da recuperação de aspectos da organização social como raça, gênero, religião, no âmbito do quadro geral da investigação materialista histórica (com a sua ênfase no poder do dinheiro e na circulação do capital) e da política de classe (com sua ênfase na unidade da luta emancipatória) não pode ser superestimada”.
2- Um reconhecimento de que a produção de imagens e discursos é uma faceta importante de atividade que tem que ser analisada como parte integrante da reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção.
3- Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são relevantes, e de que há geografias reais de ação social, territórios e espaços de poder reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras na geopolítica do capitalismo, ao mesmo tempo em que são sede de inúmeras diferenças e alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas quanto no âmbito da lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente começa a levar a sério sua geografia.
4- O materialismo histórico-geográfico é um modo de pesquisa aberto e dialético, em vez de um corpo fixo e fechado de compreensões. A metateoria não é uma afirmação de verdade total, e sim uma tentativa de chegar a um acordo com as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo, tanto em geral como em sua fase presente”.
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