quinta-feira, 11 de novembro de 2010
“O Que Fazer?" V. I. Lênin
Resenha #5 - "O que Fazer" - Lênin - Ed. Expressão Popular
Obra e Autor
Discutir Lênin significa avaliar tanto os aspectos teóricos de seus textos quanto o significado histórico de seu ativismo político. Necessariamente, os dois aspectos não aparecem de forma isolada: na verdade, a teoria em Lênin vai sinalizando as tarefas dos socialistas russos nas diversas etapas da luta e da revolução: nos embates contra a autocracia tzarista, na disputa teórica dentro do POSDR, na luta mais geral pela revolução e na direção política da construção do socialismo. Há ainda outro aspecto complicador: teoria e prática acabam necessariamente sendo avaliadas – hoje – levando-se em consideração os resultados da revolução russa, em especial o problema da burocratização, ausência de socialização eficaz da gestão econômica, o autoritarismo e repressão política. Neste sentido, discutir uma obra de Lênin (pela esquerda) é sempre dialogar com vertentes mais ou menos vinculadas às tradições daquela experiência histórica ou não. Também significa pensar sobre em que aspectos as formas de organização política dadas pelo leninismo contemplam hoje as formas de luta anticapitalista: o que ainda subsiste na teoria e na prática política dos socialistas em Lênin.
Este aspecto mais prático e ativista do pensamento de Lênin é bastante expressivo em “O que Fazer”. Nesta obra, escrita entre 1901-1902 em pleno regime Czarista autocrático na Rússia, Lênin trava embate dentro do Partido Social Democrático reivindicando uma intervenção qualificada, menos artesanal e mais profissional do partido, com um programa socialista e revolucionário para toda a Rússia, a organização de um jornal amplo, a politização de todas as lutas e a conformação de direções políticas competentes. A Crise da Social Democracia na Rússia decorre da ausência de bons quadros e de teoria revolucionária: há, a partir daqui, as críticas ao espontaneísmo e às vertentes terroristas representadas pelo jornal “Svoboda” e pelo “economicismo” ou “trade-unismo” de grupos como “Rabotchie Dielo”.
“O que Fazer” é obra da fase ainda jovem de Lênin, com apontamentos de tarefas gerais que, segundo Florestan Fernandes, significaram transformar, pela primeira vez, “o marxismo em processo revolucionário real”.
Duas questões aparecem como ponto de partida para uma discussão sobre o significado da obra. A primeira e mais óbvia tarefa é circunscrever os limites do texto ao contexto histórico em que foi escrito, sem atualizações mecânicas e, principalmente, sem considerar os apontamentos de Lênin como um “livro de receitas” de organização política. Não se pode falar em uma técnica política leninista, mas, antes, em exemplos práticos de como o marxismo vai se manifestando enquanto prática política pela intervenção de Lênin.
O segundo problema é, ao contrário, ir buscando o que há de atual e universal nas teses políticas “d’O que fazer”, o que, entendemos, significa menos as teses por elas próprias e mais o seu sentido naquelas circunstâncias, ao aspecto mais emblemático e exemplar das teses. Assim como Lênin em seu tampo, cabe aos socialistas da América Latina formular uma teoria revolucionária de seu tempo, “propagar o socialismo revolucionário nesses setores da sociedade (trabalhadores e povo) e, com o amadurecimento da experiência política, tentar-se o equacionamento do “por onde começar”. (Florestan Fernandes).
As críticas ao economicismo e ao espontaneísmo
Economicismo (ou trade-unismo) e espontaneísmo referem-se às tendências internas do POSDR que se diferenciam do grupo Iskra (do qual Lênin é o porta-voz) por sua intervenção centrada ora na luta econômica ora no trabalho artesanal, sem um horizonte claro e cotidiano de afirmação do socialismo e de uma profissionalização militante. A centralidade das greves e das lutas por melhorias econômicas por elas próprias não surtirão efeitos sem uma politização externa ao movimento correspondente ao partido social democrático. Neste ponto as críticas também se direcionam ao chamado espontaneísmo, a idéia de que lutas independentes são capazes de se generalizar num sentido revolucionário sem coordenação geral. Neste aspecto Lênin é enfático: da consciência em si (reforma) para a consciência para si (revolução), o movimento necessariamente precisará de teoria e de uma organização fortemente preparada, centralizada e que conte com confiança política (sem “falsos democratismos”) para incutir neste movimento uma luta geral contra a ordem. A linha de raciocínio de Lênin é a de que o socialismo enquanto teoria é exterior à classe operária russa daquele momento.
A contundência com que Lênin vai debatendo com as variações economicistas e espontaneístas do movimento revela sua confiança na viabilidade da revolução (mesmo numa conjuntura em que isto parecia pouco provável, daí sua famosa afirmação de que “é preciso sonhar”.) Revela também a caracterização dessas vertentes como oportunistas.
A crítica ao trade-unismo já remete ao que será a linha política social democrática da 2ª Internacional. Lênin defende que toda e qualquer manifestação de opressão e violência (dentro e fora da esfera do trabalho local) devam ser objetos de politização. A Luta econômica em Lênin deve estar subordinada à luta pelo socialismo, ao contrário do entendimento de que a luta econômica é uma “etapa” para a luta política, ou que as lutas econômicas por elas próprias generalizam-se em luta revolucionária.
Alguns aspectos reivindicados pelas organizações revolucionárias do espontaneísmo pecam por não levar em consideração a difícil correlação de forças frente ao Estado autocrático: não se pode intervir a nível geral com formas de trabalho militante “artesanal”. Sem preparo teórico e forte organização, os socialistas seriam presas fáceis da repressão do Estado. O mesmo vale com algumas discussões entendidas como “principistas” – o falso democratismo de eleições para cada execução de cada tarefa dentro do partido não deve sobrepor-se a uma relação de confiança e solidariedade política, dentro, mais uma vez, de um quadro de intervenção política ilegal, dentro de um regime autocrático em que qualquer vacilação ou erro significam prisão e morte. Muito resumidamente, estas são algumas das críticas de Lênin dirigidas aos demais setores do Partido.
Uma provocação
Algo que vai sendo mais ou menos permanente nas discussões do movimento socialista daquele período é a relação entre consciência e organização política – as chamadas condições subjetivas e objetivas da revolução e as tarefas do partido revolucionário. Se por um lado reconhecemos ainda hoje a importância da teoria como forma de direcionar as organizações e fazer com que elas incidam sobre os problemas gerais dos trabalhadores e do povo, politizando-os, não entendemos ser a teoria nem construída nem difundida de forma exterior à classe ou mesmo introjetada de fora para dentro.
Em Lênin há a necessidade da teoria e de um trabalho intelectual “externo” ao movimento operário, que é incapaz de espontaneamente conduzir a luta. Num novo contexto do capitalismo em que há a maior qualificação e complexidade do trabalho no âmbito do toyotismo, passa a ser necessário discutir a real atualidade desta tese. Aliás, as novas formas de organização do trabalho foram apropriando e reproduzindo exatamente formas de resistência autônomas dos trabalhadores num contexto de lutas anticapitalistas (greves, tomadas de fábricas, movimentos sociais e estudantis, etc.) dentro de ciclos de mais valia relativa (João Bernardo). Se em Lênin nós percebemos uma forte ênfase da teoria à prática revolucionária, passamos também a reconhecer a importância da prática à teoria revolucionária, levando em consideração as formas independentes de resistência, o saber e as práticas populares, etc. Conciliar o trabalho de base com radicalidade política e capacidade de incidência geral e organizada sem implicar nas vertentes economicistas/reformistas é o desafio inconcluso.
Ainda assim...
Porém, contemplando Lênin, é necessário desmistificar o trade-unismo que se serve, ainda hoje, do eixo político “democrático-popular” para, conscientemente ou não, desenvolver a política de reformar o capitalismo.
“É Preciso Sonhar”
Responde Lênin àqueles que, julgando-se marxistas fiéis, não reconhecem possibilidades de construção do socialismo na Rússia naquelas condições históricas. A ocorrência do místico e da utopia também está presente no pensamento do autor, ainda que muitas vezes vão prevalecendo os aspectos mais “duros” da sua narrativa (a denúncia, os embates, a ironia, etc.). Reproduzimos uma passagem longa, mas bastante expressiva, em que Lênin vai descrevendo a situação de seu pequeno grupo de revolucionários frente à fragilidade do movimento e à conjuntura difícil, ainda assim resistindo e lutando.
“Marchamos em pequeno e unido grupo por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados por todas as partes de inimigos e temos que marchar quase sempre debaixo de seu fogo. Estamos unidos por uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra inimigos e não cair, com passos em falso, no pântano vizinho, cujos moradores nos censuram desde o início por nos separarmos num grupo à parte e por escolhermos o caminho da luta e não o da conciliação. De imediato alguns dos nossos começam a gritar: “Vamos para o pântano!, E quando se tenta envergonhá-los, replicam: “que gente tão atrasada vocês são! Como é que não se envergonham de nos negar a liberdade de convidar-vos a escolher um caminho melhor”!. Sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, senão de ir aonde melhor vos aparecer. (....) Neste caso, soltai as nossas mãos, não nos agarrai, nem manchai a grande palavra liberdade, porque nós também somos “livres” para ir aonde nos convier, livres para lutar não só contra o pântano, como também contra os que se desviam para ele”!
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Ótimo texto, Paulo. Respondendo a sua provocação sobre a teoria externa à classe, no prefácio para a edição de 1967 para "História e Consciência de Classe", Lúkacs resgata o verdadeiro significado de consciência de classe defendida por Lênin em “O que fazer?”. Uma leitura apressada desta obra tornou famosa a idéia de que a consciência deve chegar ao proletariado de fora para dentro. Porém, a consciência referida por Lênin, lembra Lúkacs, encontra-se externa não em relação à classe trabalhadora, mas à luta econômica e ao conflito entre empregados e patrões. Abraço!
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