terça-feira, 28 de outubro de 2025

Uma História da Amazônia

 Uma História da Amazônia





Resenha Livro – “História do Brasil Geral e Regional – 1º Volume – Amazônia (Acre – Amazonas – Pará e Territórios)” – Ernani Silva Bruno – Ed. Cultrix

“Revelada à Europa a existência da América e descoberto o Brasil, a costa do extremo-norte brasileiro e as margens do baixo Rio Amazonas passaram a ser de longe e longe abicadas pelas caravelas de um ou de outro navegante castelhano ou português mais atrevido. Era a madrugada do século dezesseis, e o mistério das terras e das ilhas de aquém-Atlântico devia envolver ainda em um clima incomum e quase fantástico de aventura a jornada de veleiros que se botavam para o Novo Mundo. Mas permaneceu ainda por alguns decênios desconhecido pelo homem branco – e ignorado pela cultura do “mundo civilizado” da época – o segredo bárbaro das florestas, dos rios, das ilhas e dos nativos da região amazônica”.

Missionário franciscano e governador do Bispado da Bahia, Frei Vicente do Salvador (1564/1639) foi o primeiro cronista da História do Brasil. Escreveu sobre o território que então pertencia à colônia portuguesa em dezembro de 1627, pouco mais do que um século após a chegada de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro.

Ficou famosa a imagem com que Frei Vicente descreveu do processo de ocupação do território do Brasil nos primeiros anos da colônia: por negligência dos portugueses, mesmo sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitaram delas, contentando-se em “andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”.

De fato, no primeiro século da colonização do Brasil, a ocupação do território limitou-se às regiões litorâneas, do norte ao sul – daí a conhecida analogia com a forma como se movem os caranguejos.

Essa situação se explica por razões econômicas: num primeiro momento, estabeleceram-se feitorias na costa, onde os navegadores transacionavam o pau brasil e especiarias. E a partir do século XVI houve a constituição dos engenhos de açúcar, também situados na costa, dada a proximidade dos mercados europeus. Há também as razões políticas:  a constituição das capitanias hereditárias em 1534 em núcleos portuários de norte ao sul teve como causa primordial resguardar o território em face dos assédios dos franceses, ingleses e holandeses. Ou mesmo antes, por meio do Tratado de Tordesilhas  (1494), quando foi atribuído à Portugal a parcela ao leste de um meridiano traçado a 400 léguas do arquipélago de Cabo Verde.  

O processo de interiorização da ocupação territorial do Brasil se daria de forma paulatina, a partir do 1600, seja através das expedições dos sertanistas paulistas na caça de índios para a escravidão, iniciando com a destruição de missões jesuíticas ao sul, ampliando as fronteiras do país; deu-se através da pecuária, especialmente na região do nordeste, servindo como mercado abastecedor das regiões portuárias; e finalmente através do ciclo da mineração, que também mobilizou os bandeirantes através de frentes pioneiras em direção ao centro oeste e norte – em 1651, tendo partido de São Paulo e transposto os Andes, a bandeira de Antônio Raposo Tavares desceu pelo Rio Amazonas.  

Quando falamos da região da Amazônia, o processo de ocupação populacional daquele vasto território, que abrange os estados do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Amapá, foi certamente o que encontrou maiores dificuldades.

Ainda hoje, a baixa densidade populacional é o traço mais característico da região.

A distância com os mercados europeus fez com que no período colonial houvesse pouco desenvolvimento da agricultura de exportação na Amazônia. Os índios, ao seu passo, além de frequentemente trucidarem os poucos colonos que tentaram ocupar a área, quando pacificados, também não se revelavam aptos e disciplinados ao trabalho do campo.

As grandes distâncias, na escala de milhões de km², aliada à vegetação fechada, com rios caudalosos, chuvas e alagamentos, onças, saúvas e morcegos, tornaram o ambiente inóspito para a formação de núcleos populacionais em torno de alguma atividade agrícola. Dada a inadaptação do índio ao trabalho na lavoura, prevaleceu a economia extrativista – e os poucos engenhos de açúcar da região, distantes dos centros consumidores, explicam a baixa presença da população africana (escrava) na Amazônia.

Dado interessante é que a abolição da escravidão na província do Amazonas ocorreu em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. O que se explica não por algum bom senso da classe dominante daquela província, mas pela pouca importância do trabalho escravo na região.

Do ano de 1500 quando surgiram as primeiras viagens de reconhecimento até meados do século XIX quando se abriu a etapa do ciclo da borracha, a economia da região Amazônia centrou-se em atividades coletoras e na agricultura de subsistência. A fonte de alimentação, seguindo a tradição do índio e do caboclo (“tapuia”) se dava através da caça, da pesca. Houve o desenvolvimento de alguns poucos engenhos de cana de açúcar, a produção do algodão, do cacau mas a predominância deu-se em torno da atividade coletora dos produtos das florestas, designadas “drogas do sertão” (castanha, anil, urucum e salsaparrilha).

Essa economia do tipo coletora e extrativista foi um fator de dispersão do povoamento e estabeleceu uma dificuldade crônica de criação de cidades ou vilas com alguma duração no tempo: encerrando-se determinado ciclo produtivo, as áreas eram logo abandonadas, o que se evidenciou de maneira dramática durante o período do ciclo da borracha, quando muitos tapuios abandonaram as suas fazendas para se lançar à extração da seringueira. 

Desde o período colonial até o século XX o principal e em muitos casos o único meio de transporte se dava através da navegação fluvial. Para se ter uma ideia, até meados do século XIX, uma viagem da província de Belém até a capitania de Rio Negro (hoje Estado do Amazonas) levava 40 dias de viagem a barco. Essa situação melhoraria em 1853 com a criação da navegação a vapor:  durante os primeiros 300 anos da colonização as viagens eram feitas em barcos movido à vela ou através do remo puxado pelos bugres.

É possível dividir a História da Amazônia em algumas grandes fases: (i) de 1500 e 1640 quando o território esteve em disputa aberta e as fronteiras indefinidas entre as coroas de Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda; (ii) de 1640 quando há a consolidação do domínio português até o declínio econômico e social causado pelos cinco anos de guerra civil, até o término da revolta da cabanagem em 1840; e (iii) a partir de 1850 com o advento da navegação à vapor e do ciclo da borracha – a produção dos seringueiros inicia-se em 1860 e sofre um impulso 1895 com a criação do pneumático que seguiu à vulgarização do carro. Data de 1911 o apogeu e início do declínio da borracha, que só teria depois um pequeno surto de recuperação durante a II Guerra para atender às demandas dos aliados.

Os primeiros registros históricos de expedições do colonizador europeu na região amazônica remetem às primeiras décadas do 1500. O Tratado de Tordesilhas (1494) era bastante vago na delimitação das fronteiras da região norte do Brasil, tornando difusa a presença de portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses.

Inclusive, as primeiras expedições oficiais de reconhecimento do território partiram da Espanha – tendo como ponto de partida o Vice Reinado do Peru, em 1541 partiu de Quito o espanhol Francisco Orellana com cinquenta e sete companheiros, descendo o Rio Amazonas até sair no Atlântico.

A partir de fins do século XVI, aventureiros ingleses e holandeses fazem viagens de reconhecimento e instalam feitorias e pontos de negócio. E em 1616 partiu a expedição portuguesa sob a chefia de Francisco Caldeira Castelo Branco, saindo do Maranhão, tendo como objetivo tomar posse das terras do Grão Pará; foi assim fundada a povoação de Nossa Senhora da Graça – núcleo da atual cidade de Belém.

Foi nesta primeira fase que se criaram alguns mitos em torno do El Dorado amazônico: as expedições respondiam a alguns mitos e histórias contadas pelos índios sobre terras povoadas de ouro. Falava-se de terras longínguas na América onde o ouro e a prata eram tão abundantes que os próprios indígenas não compreendiam a importância dada a essa riqueza pelos europeus. Foi nessa primeira etapa das expedições de reconhecimento do território amazônico que surgiram também alguns mitos fundadores da região: na embocadura do Rio Jamundá (Nhamundá) começava a boa terra e senhoria das Amazonas, mulheres lendárias e guerreiras que viviam isoladas do seu senhorio, “eram alvas e altas”, apenas coabitavam de tempos a tempos com os homens e só conservavam os filhos quando pertenciam ao seu próprio sexo.

Seria a partir de 1640 que se consolidaria o domínio português na região do extremo norte brasileiro. Desde meados do século XVII até meados do século XIX, a região passou por uma fase de conquista e povoamento. Já em 1621 houve a criação do Estado do Maranhão e Grão Pará, com jurisdição separada do resto do Brasil e no ano de 1755 houve a criação da Capitania de Rio Negro, futuro estado do Amazonas.

A conquista do Acre é mais recente – ela foi produto de conflito de interesses entre a Bolívia e seringueiros brasileiros que atuavam na região, passando a integrar o território brasileiro após negociações diplomáticas conduzidas pelo Barão de Rio Branco consolidada no Tratado de Petrópolis, firmado em 17.11.1903.

Papel fundamental dentro desse processo de conquista e povoamento se deu através da atividade das missões jesuíticas. Foram justamente nos aldeamentos onde se pode desenvolver alguma atividade agrária mais duradoura, servindo-se do trabalho dos índios. E após as reformas pombalinas que acarretaram a expulsão dos missionários, os aldeamentos subsistiram através da criação de Diretórios – na prática, foi colocado fim ao poder temporal dos padres, mas mantida a mesma situação precária do índio.

A guerra da cabanagem (1835/1840) colocou em oposição os tapuios (caboclos, filhos do branco e do índio que falavam a língua tupi) e os reinóis – foram cinco anos de guerra civil que causaram 40 mil mortos e o retrocesso da economia, ao abandono e destruição das fazendas.

O ciclo da borracha remonta à terceira e última grande onda de desenvolvimento da Amazônia.

Essa fase criou uma nova composição populacional do território com a vinda massiva de emigrantes do nordeste, fugidos da seca, que se lançavam nos mais desconhecidos pontos da selva para exploração do ouro negro.

A revolução da borracha foi acompanhada da utilização da navegação à vapor, um sistema de transporte que facilitou o desenvolvimento da indústria, como ainda serviu como meio difusor de ideias. Em seu apogeu, o ciclo da borracha levou ao enriquecimento de uma elite local e ao desenvolvimento urbano de Belém e Manaus: ficou conhecido como exemplo o suntuoso edifício do Teatro Amazonas inaugurado em 1897 em Manaus.

Nos dias de hoje, a Amazônia ainda carrega traços marcantes do seu passado.

Baixa densidade populacional, composição étnica da população na figura dos tapuios e índios, baixo desenvolvimento industrial, comunicações terrestres dificultadas pelas longas distâncias e forte presença da economia coletora e extrativista, contando agora com a expansão do agronegócio e da pecuária – ainda que no caso da pecuária, o seu desenvolvimento na Ilha de Marajó remonta aos anos de 1600.

Muito de sua riqueza ainda é desconhecida e um novo ciclo de desenvolvimento prescinde de um combate político intransigente em face de Ongs financiadas pelo imperialismo europeu e norte americano; são os interesses exógenos que remontam historicamente aos assédios de contrabandistas holandeses, franceses e ingleses desde 1590/1640. Hoje, os grupos estrangeiros e os seus prepostos brasileiro visam paralisar qualquer iniciativa oficial de exploração das riquezas naturais da Amazônia, incluindo o Petróleo – sob a propaganda de defesa do meio ambiente e do índio, o objetivo é manter a biopirataria e as formas clandestinas de espoliação, sem prejuízo da criação de uma “reserva natural” que possa depois servir aos países estrangeiros seja através de movimentos separatistas ou da campanha em torno da “internacionalização da Amazônia”.  

 

sábado, 11 de outubro de 2025

“Diogo Álvares – O Caramuru”

 “Diogo Álvares – O Caramuru”


 

Resenha Livro – “O Caramuru – Aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil” – João Ribeiro – Livraria Sá da Costa – Editora Largo do Poço Novo – Lisboa – 1935

 

Diogo Álvares (1475-1557), mais conhecido como o “Caramuru”, foi o primeiro desbravador das terras onde hoje se situa o Estado da Bahia. Sua importância reside no fato de ter preparado o terreno para a ocupação portuguesa do território recém descoberto, trazendo ao convívio dos portugueses os índios tapuias disposto ao convívio pacífico, que o viam como uma liderança com feições sobre humanas.

Esse português que foi alçado à condição de fundador da nacionalidade brasileira aportou no Brasil nos primeiros instantes da chamada “descoberta” em 1500.

Muitos historiadores, a começar por Afrânio Peixoto, muito propriamente dizem ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo “achar” remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro: se o tratado é anterior à 1500, presume-se que já se tinha noção da existência das terras de Santa Cruz, depois batizada de Brasil.

Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento, exploração e defesa do território em face do assédio das demais potências marítimas, especialmente os franceses. Na expedição de reconhecimento foram localizados portugueses degredados que provavelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes de 1500.

Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente. Já se tinha alguma noção da existência desse território – por questões geopolíticas, eram informações tratadas como segredo de estado entre as duas principais potências marítimas, Espanha e Portugal. Degredados eram despejados no litoral para travarem as primeiras relações com os índios bárbaros, pavimentando o caminho da colonização. A grande expedição dirigida por Cabral que aportou em 1500 foi apenas, neste sentido, um ato oficial de consumação das descobertas.

Diogo Álvares, ou o Caramuru, aportou nas praias da Bahia após um acidente que levou ao naufrágio e a morte a maior parte dos tripulantes. Sobreviveram apenas 7, que foram acossados pelos índios e tornados prisioneiros. Conforme a prática daqueles povos, alimentavam e engordavam os prisioneiros para depois comê-los. Todos os navegantes foram vítimas no ritual antropofágico, exceto Diogo, que consegue escapar num momento em que os tapuias se vêm obrigados a enfrentar o ataque de uma tribo rival.

Sozinho e doente, Diogo consegue resgatar da embarcação que naufragou algumas armas que lhe garantiriam a sobrevivência. Encontrou escudos de guerra, capacetes, pólvora, espingarda e balas. Ao manejar a arma de fogo e dar tiros ao ar, apavora os índios que o vêm como um ente sobrenatural capaz de provocar raios e trovões. Relacionado às crenças mitológicas dos indígenas, o português é temido e adorado por manifestar poderes sobre humanos através das armas de fogo e dos recursos da pólvora. À noite, na escuridão, utilizando a pólvora, Diogo magicamente acende o fogo que ilumina, assombrando os índios que só sabiam fazer a luz com muito esforço, esfregando pedações de madeira uns com os outros.

Conforme conta o historiador João Ribeiro, os índios “por isso ficam atônitos ao ver a chama nascer tão rapidamente do fuzil de ferro. Julgam que ela vem do céu ou que nasce das mãos de Diogo. E mais se persuadem do poder sobrenatural que nele creem existir”.

Utilizando mais a astúcia e a inteligência do que a força física, o Caramuru consegue exercer prestígio e influência sobre os indígenas.  

O nome Caramuru vem do espanto dos índios com o barulho da arma de fogo. Existe alguma controvérsia em torno da origem da palavra no idioma do índio, mas a versão mais conhecida é que se trata do nome de um peixe violento que ao atacar faz um som parecido com os tiros de pólvora.

Alçado à condição de um líder com poderes sobrenaturais, o Caramuru se envolve nas guerras dos tapuias contra os caités. Diante da superioridade das armas de fogo, impõe a derrota aos inimigos dos tapuias.  

A ele é dada a mão da filha do chefe Gupeva, a bela e desejada Paraguaçú. Trata-se da primeira família brasileira e da mais antiga linha genealógica do nosso país.

Residindo no litoral da Bahia, o Caramuru trava relações com os navegantes portugueses, espanhóis e franceses que aqui transitam em busca do pau brasil. Ele exerce o papel de articulador e mediador daqueles dois povos.

Dentro da mitologia criada em torno da sua figura, ele é descrito como o agente que leva os índios selvagens à salvação pela fé e aos hábitos da civilização europeia. Usando da ameaça de suas armas, proíbe os índios de praticarem a antropofagia. Leva aos índios os ensinamentos do cristianismo e os mobiliza para defender os interesses da Monarquia Portuguesa e do Rei.

Escolhe Paraguaçú como esposa e, após travar relações com navegantes franceses, consegue fazer uma viagem levando consigo sua companheira à França, onde é recebido pela Corte. A bela índia é batizada e recebe o nome de Catarina. O casal fica três anos na Europa e retorna à Bahia, onde o Caramuru segue exercendo o papel de proeminência perante os índios do litoral.

Essa importância conferida ao Caramuru se evidencia quando o próprio Rei de Portugal recomenda Diogo Álvares a Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil. Após o insucesso da maioria das capitanias hereditárias, foi instituído o Governo Geral (1548) como uma primeira tentativa de centralização política administrativa com a constituição de cargos e funções para assuntos de natureza judicial, financeira e militar.

O primeiro governo geral teve como sede a Bahia, onde Tomé de Souza fundou a cidade de Salvador, chamada “São Salvador da Bahia de Todos os Santos”. O primeiro governador geral desembarcou na colônia em 29 de março de 1549 e contou com a colaboração decisiva do Caramuru para fundar a primeira capital do Brasil.  

Deixando de lado o mito, a figura de Caramuru evidencia aquilo que Darcy Ribeiro, no seu livro “O Povo Brasileiro” (1995), caracteriza como a instituição social que pavimentou a formação do povo brasileiro. A essa instituição ele atribui o nome de “cunhadismo”. Trata-se de um velho uso indígena “de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhe dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo”.

A mestiçagem que caracteriza a gênese do povo brasileiro se inicia através das relações sexuais abertas e desregradas dos portugueses com as índias – ao contrário das colônias de ocupação ao norte, quando as famílias entram transplantadas para o novo mundo, no Brasil, uma colônia de exportação, sem a presença da mulher branca, as primeiras famílias eram aqui constituídas pela relação do português com a índia, formando os mamelucos, ou seja, os primeiros brasileiros.

A criação de laços de parentesco amplo, com europeus travando relações poligâmicas com as índias, a despeito da censura dos jesuítas, foi o que Darcy Ribeiro chamou de cunhadismo, prática sem a qual era impraticável a crianção do Brasil.

Os primeiros povoadores, como o Caramuru, consistiam em alguns poucos náufragos ou degredados, além de marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os nativos. Em pouco número, por si sós, teriam passado desapercebido se não tivessem sido assimilados pelos grupos indígenas e inseridos como parte de uma mesma família.  

Bibliografia:

BARROS, João. “O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil”.

RIBEIRO, Darcy. “Formação do Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

“Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” - Oliveira Lima

 “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Oliveira Lima



Resenha – “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Manuel de Oliveira Lima – Coleção “Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro” – Folha de São Paulo

 

“Os portugueses, misturando-se com os índios, produziram uma raça igualmente valente e fundamentalmente empreendedora, à qual é sobretudo devida a conquista do interior do Brasil (...) O Brasil é, pois, a obra nacional – geográfica tanto quanto política – dos seus próprios filhos. Isto nos garantiu uma tradição no passado e nos representa uma garantia para o futuro. Foram com efeito os bandeirantes, a saber, os aventureiros votados à pesquisa do ouro e dos escravos que recuaram as nossas fronteiras, dilataram nosso Império, e emprestaram ao Brasil essa maravilhosa uniformidade social que lhe é tão particular e que se destaca tão bem sobre o fundo constituído pela diversidade dos efeitos pitorescos e pelo variegado das três raças misturadas: branca, vermelha e negra”. 

 

Manoel de Oliveira Lima foi diplomata, jornalista e historiador, tendo cumprido papel intelectual proeminente entre os fins do século XIX e inícios do século XX.

Basta dizer que foi membro do IHGB e assumiu a cadeira de Francisco Varnhagen na Academia Brasileira de Letras. Além disso, participou intimamente da convivência com figuras como D. Pedro II, José Martiniano de Alencar, Rui Barbosa, Afonso Celso e Machado de Assis (com quem trocou cartas), havendo em seus livros a percepção efetiva de quem vivenciou diretamente os fatos políticos e institucionais do Brasil do II Império.

O historiador nasceu em Recife/PE no dia do natal em 1868, sendo o último filho de Luiz de Oliveira Lima, um rico comerciante português que fez fortuna e garantiu a sua família prosperidade. Contudo, consta que o pai do de Oliveira Lima foi de origem simples, tendo alcançado com o seu esforço a riqueza, sem que, com isso, fosse parte da tradicional elite pernambucana.

Logo na infância, aos seis anos de idade, o historiador mudou—se para Portugal. Matriculou-se na Universidade de Lisboa, onde estudou e se formou no Curso Superior de Letras.

Aqui já existe algo que irá particularizar o futuro historiador.

Até então, os grandes estudiosos da História do Brasil eram em certo sentido “auto-didatas” – os primeiros cursos superiores de História só foram criados no país no ano de 1930. Parte desses estudiosos sem formação específica vinha da diplomacia, a começar pelo pioneiro e fundador do estudo da disciplina no país, Francisco Adolfo Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Outros tinham formação em Direito, como Joaquim Nabuco e Caio Prado Júnior. Já Capistrano de Abreu, o discípulo de Varhagen e um dos nossos melhores historiadores de todos os tempos, sequer estudou em instituição de Ensino Superior. Euclides da Cunha, outro grande historiador daquela época, era militar. Já Oliveira Lima, graduado em Portugal, num momento em que não existiam cursos de Letras e História no Brasil, foi um dos primeiros pesquisadores do nossa passado com uma formação mais especializada.

Quando jovem estudante de Letras em Lisboa, Oliveira Lima era simpática ao republicanismo. Posteriormente, mudaria o seu posicionamento, tanto que em 1913 (14 anos após a proclamação da república) o senado votou contra a sua entrada na embaixada de Londres alegando que o candidato era monarquista.

Pode-se dizer que os seus trabalhos historiográficos evidenciam que o escritor parecia mesmo ser um saudosista da Monarquia – com certeza, foi um descrente da República, que viu ser alçada como regime político oficial no Brasil quando tinha 20 anos de idade.   

Nas suas conferências sobre a História do Brasil reunidas no livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” (1911),  descreve D. Pedro II como o rei filósofo, incentivador  da cultura e da ciência, ele próprio criador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e frequentador de suas reuniões.

O Imperador de fato, era bastante liberal em relação às críticas incendiárias da imprensa então nascente, de natureza bastante panfletária, especialmente a partir de 1870, com a criação do Partido Republicano. Cioso, portanto, da liberdade de imprensa e de pensamento, o Imperador não desencadeou perseguições políticas de maior importância aos seus detratores de imprensa, tinha um posicionamento tolerante e pendente à conciliação, o que garantiu a estabilidade do II Império, que perdurou por mais de meio século. Oliveira Lima descreve D. Pedro II como um homem cioso da moralidade pública, mais interessados em travar relações com intelectuais do que com gente da aristocracia, e indulgente para com os inimigos políticos, mas ainda intransigente em seu patriotismo, conduzindo o país à vitória na Guerra do Paraguai.

O posicionamento francamente favorável à monarquia também se revela no peso que o historiador atribuiu aos eventos que vão da chegada da Corte Portuguesa em 1808 e ao Reinado de Dom. João VI como os momentos precursores de maior importância para o advento da independência e para a formação histórica da nacionalidade brasileira.

Dentro da historiografia, Oliveira Lima é mais frequentemente estudado pelos historiadores que pesquisam o nosso processo de independência; e o intelectual pernambucano atribui um peso decisivo ao processo de emancipação ao arranjo institucional muito particular em que se deu a nossa emancipação, considerando a manutenção da dinastia dos Brangança e o transplante do regime político português ao Brasil desde a chamada “fuga” da corte portuguesa em 1808, sob a mira do exército napoleônico.

Oliveira Lima quebra alguns preconceitos em torno dos eventos do ano de 1808 e da própria figura de D. João VI, frequentemente ridicularizado como um rei fraco e pusilânime, além de exposto ao ridículo pelas notórias traições extraconjugais por parte de Carlota Joaquina, a Imperatriz.

Não se tratou de uma “fuga”, mas de uma decisão assertiva de D. João VI que conseguiu manter a existência do Império Português, transplantando a sua sede ao Rio de Janeiro – se tivesse optado por ficar em Portugal, acabaria como os espanhóis, que capitularam ao exército napoleônico e consequentemente perderam não só o país mas também suas colônias na América para a França.

Ao chegar ao Brasil, Dom João VI afirmou que sua intenção era formar um novo Império. O Rio de Janeiro foi elevado à condição de capital da monarquia portuguesa. O Brasil, até então uma mera colônia de exploração dos portugueses, foi alçado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves (1815), um ato com efeito revolucionário, pois colocou ao menos juridicamente o Brasil em condições de igualdade a Portugal.

Toda essa situação conferiu a originalidade da independência brasileira ressaltada pelo monarquista Oliveira Lima, já que ela se deu por meio da manutenção da Casa e Bragança, quando D. Pedro I se opõe às pretensões recolonizadoras das Cortes de Lisboa, se recusa a atender a sua convocatória para retornar à Portugal e grita no 7 de Setembro seu famoso brado: independência ou morte. Ela foi precedida pela literal “transplantação” do regime político português ao Brasil, o que serviu de base à formação de um regime monárquico constitucional que perduraria até 1889.

O transplante da corte portuguesa e essa particularidade acarretaram num caso singular: o país que saiu do movimento de independência manteve o regime monárquico, com a constituição do I Império, diferentemente da experiência dos países da América Espanhola que se fracionaram em diversas repúblicas, criadas a base de guerras de maior proporção do que os conflitos ocorridos no Brasil.

Em certo momento, Oliveira Lima afirma que a independência do Brasil foi conquistada com “luvas de pelica” o que resultou em críticas de s historiadores que corretamente afirmam que a nossa independência também foi marcada por guerras – certamente não foi um movimento pacífico, mas certamente menos conturbado que a experiência da América Espanhola, com acréscimo da manutenção da integridade do território, mantida sua dimensão continental estabelecida desde o Tratado de Madrid (1750). Se tivéssemos trilhado o mesmo caminho dos espanhóis, o Brasil hoje estaria fracionado em diversos estados menores – a manutenção da grandeza territorial, mesmo após os episódios de turbulência, bastante graves na época da regência – sem dúvida é uma conquista do Império, ou seja, do Estado Brasileiro dentro do regime monárquico.   

VIDA E OBRA DO HISTORIADOR/DIPLOMATA

Oliveira Lima Iniciou sua carreira diplomática como segundo secretário da legação de Lisboa (1891). Naquela época, o ingresso nesta carreira não se dava por concurso público, mas por indicação. Sua seleção deu-se, entre outros, após estabelecer relações com Quintino Bocaiuva e o Visconde de Cabo Frio, bem como diante da influência de sua esposa Flora Cavalcanti de Albuquerque que, como o sobrenome indica, pertencia a família firmemente estabelecida entre os proprietários de engenho e tinha boas credenciais junto à sociedade pernambucana.

Na diplomacia, ocupou cargos em Lisboa, Alemanha, Venezuela, Bruxelas e Suécia, além de ter sido professor de Direito Internacional da Universidade Católica da América em Washington, para quem doou sua biblioteca sobre a História do Brasil, que conta com 56 mil volumes, além de peças de arte, incluindo os famosos quadros de Frans Post, que retratou em pinturas a história do um quarto de século da ocupação holandesa no Brasil.

Esta biblioteca é hoje a terceira maior do mundo no que toca à História do Brasil, perdendo apenas para a Biblioteca Nacional do Brasil e para a biblioteca da Universidade de São Paulo.

José Verissimo no prefácio do livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” ressalta como o escritor não só serviu o Brasil através da atividade de diplomata como foi um verdadeiro embaixador da cultura e história do Brasil pelo estrangeiro.

A forma como escreveu a nossa história também teve como fundamento a preocupação em realizar uma boa propaganda das nossas potencialidades aos estrangeiros. O escritor acredita que o Brasil através da sua História tem lições à ensinar aos demais países do mundo, incluindo os ditos “civilizados”.

O próprio livro em questão, “Formação da Nacionalidade Brasileira”, corresponde a 12 conferências do escritor na Faculdade de Letras de Sorbonne, onde se propôs apresentar uma grande síntese da evolução histórica do país a um publico estrangeiro, francamente interessado em conhecer a trajetória das nações latino americanas.

Logo na sequência, Oliveira Lima é convidado a lecionar História do Brasil e da América do Sul em Standford nos EUA e fazer uma série de conferências em universidades americanas. Verissimo ainda cita um congresso científico em Viena de música clássica,  quando Oliveira Lima conseguiu que as composições do brasileiro Padre José Maurício figurassem ao lado de Mozard e Haydyn.

E mais do que tudo isso, a própria forma como Oliveira Lima relata a História do Brasil para um público estrangeiro tem algo que remonta a esse papel de “embaixador cultural” – sem fazer uma apologia injusta da História Nacional, não deixa também de evidenciar a todo mundo as contribuições brasileiras à civilização geral, aquilo que de mais duradouro e significativo legou os três séculos de colonização até a independência.

Essa contribuição particular do Brasil como exemplo de alternativa institucional aparece especialmente quando fala da particularidade como estruturou a sua independência e formou o seu regime político, uma experiência que soaria como um exemplo a seguir, especialmente se cotejada com as demais repúblicas da América.

 Bibliografia

LIMA, Oliveira, "Formação da Nacionalidade Brasileira". 

LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822/1889)