sábado, 7 de junho de 2025

“Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado

 Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado



Resenha Livro - “Brás, Bexiga e Barra Funda” – Antônio Alcântara Machado – Ed. Universidade de São Paulo

Quando Antônio Alcântara Machado escreveu o livro de contos “Brás, Bexiga e Barra Funda” (1927), tinha apenas 26 anos de idade.  O escritor paulista foi um dos expoentes do movimento modernista, na sua fase inicial, inaugurada através da Semana de Arte Moderna de 1922.

É certo que aquele movimento tinha como norte a oposição ao academicismo e à arte puramente decorativa. O modernismo refletia as incertezas sociais do contexto da I Guerra Mundial, da Revolução Russa de 1917 e da ascensão do fascismo na Europa ( a “Marcha sobre Roma” de Mussolini efetivamente ocorreu 9 meses após a Semana de 22).

Além disso, o novo grupo de artistas expressava as novas realizações tecnológicas de fins do século XIX e início do XX: os automóveis velozes circulando nas cidades, o advento do cinema, a fotografia, o telefone, o gramofone, os bondes elétricos, a revolução causada pelo desenvolvimento da aviação, implicaram num conceito dinâmico da arte associada à velocidade e à simultaneidade, em oposição ao conceito estático tradicional, baseado no equilíbrio e na ordem.

Entretanto, a adesão de Alcântara Machado ao novo movimento literário foi tardia.

Quando ocorreu a Semana de 1922, o escritor era um jovem estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tomou parte do grupo de alunos que compareceu no Teatro Municipal para vaiar o evento. Naquele momento, já tinha publicado alguns artigos de jornais de crítica literária, além de desempenhar papel de orador do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mas tinha restrições aos exageros dos modernistas.

O escritor nasceu em 25 de maio de 1901 na cidade de São Paulo. Pertencia às  chamadas “famílias quatrocentonas” paulistas, que remetam aos primeiros povoadores da Capitania de São Vicente, depois Província e depois Estado de São Paulo.

Por parte de pai, teve como ascendentes presidentes de províncias, deputados, barões e professores da Faculdade de Direito de São Paulo. Do lado materno, foi neto de gente de Taubaté, ligada ao bandeirantismo. Ele próprio, como um membro da aristocracia da terra, foi jornalista, advogado e crítico literário, viajou em três ocasiões à Europa e nunca sofreu de privação material. Participou da Revolução de 1932 e foi eleito deputado por São Paulo, falecendo, entretanto, antes de exercer o mandato.   

Sua efetiva adesão ao movimento modernista se deu por intermédio de Oswald de Andrade. E isso ocorreu depois de uma viagem à Europa no ano de 1925, onde, suponho, tenha tido contato com as novas correntes artísticas do velho continente:  foram as vanguardas europeias que igualmente expressavam um rompimento com o tradicionalismo e apontavam para a experimentação artística, através do cubismo, futurismo, dadaísmo e surrealismo. Foram a expressão de um momento em que o progresso tecnológico redimensionou as fronteiras e os limites da comunicação, por intermédio do rádio, do cinema, do automóvel e do telégrafo. O otimismo em torno da ciência e do progresso tecnológico oriundo das correntes de pensamento do século XIX, levado até às últimas consequências pelo Positivismo, se desdobraria, no século subsequente, numa nova etapa de esgarçamento. O cientificismo e a apologia do progresso terminariam culminando na barbárie e na irracionalidade da guerra generalizada (I Guerra Mundial). A razão levada até às últimas consequência conduziu-nos ao colonialismo, ao eugenismo às teorias de supremacia racial. O pensamento artístico e a vanguarda modernista correspondem à etapa imediatamente anterior, premonitória, desse movimento da razão em direção à  barbárie.    

“Brás, Bexiga e Barra Funda” trata da vida dos recém chegados imigrantes italianos na cidade de São Paulo. Inicialmente, foram engajados no trabalho do campo, nas fazendas de café do interior paulista, através de um regime de trabalho parecido com a servidão, como forma de substituição do trabalho escravo, abolido em 1888.

Já na década de 1920, esses imigrantes italianos são a força de trabalho da nascente indústria de São Paulo. Tiveram importante papel no desenvolvimento dos primeiros sindicatos e na divulgação das ideias políticas anarquistas; a partir de 1917, sob o impacto da Revolução Russa, os anarquistas tornam-se socialistas constituem o Partido Comunista Brasileiro em 1922.  

 Os italianos são referidos na introdução do livro como a terceira geração dos mamelucos brasileiros.

“Durante muito tempo a nacionalidade viveu uma mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham cabelos mui pretos, compridos pela espádoas.

E nasceram os primeiros mamelucos.

A terceira veio dos porões dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas.

E nasceram os segundo mamelucos.

(...) E então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou a terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamelucos”.

Ao qualificar os imigrantes com mamelucos, o autor reforça o processo de integração e miscigenação que foi um fator bastante positivo no desenvolvimento histórico do Brasil.

Desde os tempos mais remotos da vinda dos portugueses, não houve por aqui a colonização de “povoamento”, aos moldes da América do Norte, quando grupos familiares buscam constituir sociedades autônomas e segregados dos povos que aqui habitavam – na maior parte, eram esses povoadores protestantes radicais e indesejáveis até mesmo na Europa.... A grande vantagem da nossa colonização por “exploração” foi que os portugueses se lançavam numa aventura em torno da extração de riquezas e o enriquecimento imediato: não buscaram, assim, criar uma nova sociedade segregada, aos moldes europeus, mas se integraram e constituíram suas famílias por meio da miscigenação. Primeiro com os índios para constituir a 1ª Geração dos Mamelucos. E depois com os negros para constituir a 2ª Geração dos Mamelucos.

A terceira geração de mamelucos, os italianos, inicialmente eram chamados pejorativamente pelos brasileiros de “carcamanos” e “pés de chumbo”. Mas, seguindo essa tradição dos tempos da colônia, se integraram, se miscigenaram, casaram e constituíram famílias com os/as brasileiros/as e, no limite, foram um dos alicerces da indústria e do desenvolvimento econômico do país, emprestando a sua força de trabalho ou até prosperando e tornando-se eles próprios figuras importantes da política e cultura nacional: Conde de Matarazo, Menotti del Pichia e Anita Malfati são alguns nomes de ilustres imigrantes italianos a quem o livro é dedicado.

As histórias de “Brás, Bexiga e Barra Funda” são curtas, sugerindo uma narrativa em alta velocidade, tal qual os novos bondes e carros que surgem como uma novidade no início do desenvolvimento de São Paulo. Os efeitos visuais e sonoros da cidade em movimento são explorados no texto, remetendo à experimentação formal da vanguarda modernista: são as fábricas que “apitam”, os carros que circulam em alta velocidade e o povo que grita diante do jogo de futebol. As histórias vão fazendo remissão às ruas e bairros conhecidos daqueles que moram em São Paulo: Largo da Santa Cecília, Largo São Francisco, Avenida Paulista, Avenida Angélica, Avenida da Liberdade.

O recurso do humor, tão caro aos modernistas que por meio dele querem demolir as formas tradicionais de arte, aparece no texto, mesmo em sua feição do trágico cômico. É o caso do conto “Gaetaninho”, um italianinho que morre atropelado por um bonde. O seu maior sonho é andar num automóvel e o acaba o realizando no final da história, dentro de um caixão.

Não foi extensa a produção literária de Alcântara Machado. Além de “Brás, Bexiga e Barra Funda”,  publicou “Laranja da China” (1928) e “Mana Maria” (1936), esse último lançado postumamente. Isso porque o autor morreu cedo, aos 35 anos, após uma intervenção cirúrgica fracassada por um problema de apendicite. Deixou ainda os seus artigos de jornal, crítica literária e artigos em revistas de literatura. Tal qual Álvares de Azevedo, também acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo, poderia ter sido um dos maiores da literatura brasileira não tivesse falecido tão jovem.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

“O Saci” – Monteiro Lobato

 “O Saci” – Monteiro Lobato



Monteiro Lobato certamente é o escritor mais conhecido do Brasil. E ficou notabilizado por conta dos seus livros infantis.

Ocorre que a opção por escrever livros para crianças ocorreu num momento tardio da produção ficcional do escritor. O primeiro livro da Coleção Sítio do Picapau Amarelo, chamado “O Saci”, foi publicado em 1921, quando o escritor tinha 39 anos de idade. Consta ter sido o retorno à literatura infantil um reflexo dos desgostos dos adultos que o perseguiram injustamente.  

O escritor nasceu na cidade de Taubaté, no interior paulista. E foi no interior de São Paulo que passou a maior parte da sua vida. Depois de diplomar-se em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, é nomeado Promotor na cidade de Areias em maio de 1907. Já no ano de 1911, morre o seu avô, o Visconde de Tremembé, e dele herda a fazenda de Buquira. Deixou de ser promotor de justiça para ser fazendeiro.

E foi o cenário dessa fazenda que imaginou e criou as histórias do Sítio do Pica Pau Amarelo.

“O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o ‘quarto de Pedrinho’ que lá passava as férias todos os anos; e o da tia Nastácia, a cozinheira e faz-tudo da casa. Emília e Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três estantes de livros e a mesa de estudo da menina”.

Saci é o primeiro livro da série do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Em uma das férias de verão, Pedrinho escuta de Dona Benta a história de Saci Pererê, um ser astucioso que se diverte fazendo pequenas trapaças. Traz sempre na boca um cachimbo acesso e na cabeça uma carapuça vermelha. A força do Saci Pererê está na carapuça vermelha, como a força do Sansã está nos cabelos.

O Saci é incapaz de cometer uma grande maldade. Mas diverte-se cometendo pequenas reinações: azeda o leite, quebra as pontas das agulhas, faz dedal das costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa.

Pedrinho vai em busca de um vizinho chamado Tio Barnabé que lhe explica  e orienta como captar um Saci. Ao finalmente entrar em contato com o pequeno diabo, trava com ele uma aventura na floresta, onde se deparam com o lobisomem, a caipora, o curupira, o negrinho do pastoreio, a mula sem cabeça, a Iara e finalmente a temida Cuca.

Em breves tintas, somos introduzidos a cada um desses personagens do folclore brasileiro.

Conta-se a história do negrinho do pastoreio, considerando um santo pelo povo gaúcho. O menino foi sacrificado por um estancieiro malvado para puni-lo por ter lhe perdido um novilho. Amarrou-o sobre um formigueiro de formigas carnívoras e deixou-as come-lo vivo. Como ele sofreu na pele o maior dos sofrimentos, ele se compadece daqueles que sofrem.

Há a história de mula sem cabeça que vomita fogo pelas ventas. Conta a história da caipora que é um duende peludo, meio homem, meio mono, que costuma cavalgar os porcos do mato e deter os viajantes para exigir fumo.  E finalmente, a Cuca que mencionamos na canção de dormir:

“Durma, nenê, que a Cuca já lá vem, Papai está na roça; mamãezinha no Belém...”.

A Cuca tem cara de Jacaré, garras de gavião e 3000 anos de idade. Ela sequestra Narizinho, fazendo com que Pedrinho e o Saci saíssem em resgate da neta de Dona Benta. Há o confronto entre a astúcia do Saci e a força da Cuca. E ao final, a inteligência prevalece sobre a força.

O protagonista deste livro é certamente o Saci.

Ele sagra-se vencedor sobre a Cuca por conhecer a fundo a natureza a ponto de, num determinado momento, numa conversa filosófica com Pedrinho, afirmar que os animais são mais inteligentes que os homens. Por que? Porque os homens precisam aprender antes de fazer. Já os animais já nascem sabendo a fazer.

O Saci possui a astúcia e o conhecimento sobre a vida misteriosa da floresta.

O preto com cachimbo na boca foi alçado a condição de herói pelo escritor que os ignorantes e mal intencionado acusam de ser um supremacista branco!

Falamos que o escritor passou para a literatura infantil já na meia idade, desgostoso com as perseguições que a vida adulta lhe impunham. Seu mérito literário e sua importância política como criador da primeira editora de livros brasileira e defensor do petróleo fazem-no perseguido ainda nos dias de hoje. Para sua glória, perseguidos por aqueles que odeiam o Brasil.

domingo, 1 de junho de 2025

“O Cortiço” – Aluísio Azevedo

 “O Cortiço” – Aluísio Azevedo



Resenha Livro - “O Cortiço” – Aluísio Azevedo – Ed. Principis


Aluísio Azevedo (1857/1913) foi talvez o primeiro escritor brasileiro que pôde sobreviver de sua própria pena.

Como pontua o crítico Alfredo Bosi, o escritor conseguiu por certo tempo viver apenas do seu trabalho de jornalista, caricaturista e romancista, mas apenas para conquistar o “pão”, sem a “manteiga”; ou seja, com o seu trabalho literário obteve apenas o mínimo para subsistir, após se mudar do seu estado natal no Maranhão para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

Nascido em São Luís/MA, ele próprio foi vítima dos estigmas sociais e preconceitos que retrataria em seus livros. Num tempo em que o divórcio era uma realidade impensável, sua mãe casou-se em segundas núpcias com o seu pai, este último vice-cônsul de Portugal. O matrimônio ocorreu sem aprovação da Igreja, gerando escândalo naquela cidade provinciana.

O seu segundo romance, denominado “O Mulato” (1881), é uma crítica pioneira desse conservadorismo da sua terra natal. Conta a história de um jovem bacharel formado na Europa, mas mestiço de cor, e não aceito pela alta sociedade local, a despeito dos seus méritos intelectuais e morais. Vive uma história de amor com uma mulher branca, mas o casamento é impedido pela família da moça, dada a diferença racial, ensejando, ao final, uma tentativa de fuga dos consortes, que iria se transformar em tragédia.

Esse romance despertou a fúria da elite maranhense, incluindo o clero, fazendo com que o escritor, a convite de seu irmão, o teatrólogo Arthur Azevedo, se mudasse para a capital do Império, no ano de 1876. Lá estudaria pintura na escola de Belas Artes e colaboraria como escritor e caricaturista em jornais e revistas.  

Essa situação, envolvendo o trabalho de artista e a luta pela sobrevivência, explica a diferença de qualidade literária dos seus romances. Ao mesmo tempo em que se ocupou de criar uma nova arte experimental, fortemente influenciada pelas ideias do escritor francês Emile Zola, precisava produzir escritos palatáveis ao gosto popular, se quisesse sobreviver de sua pena.

Os seus trabalhos mais importantes para a história da literatura brasileira são aqueles que serviram de ponto de partida para a nova estética naturalista: “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890). Em paralelo, publicou obras folhetinescas, de apelo mais comercial, algumas delas ainda presas à estética romântica. Ainda assim, obras como “Filomena Borges” (1884), “Livro de uma Sogra” (1895) e o “O Coruja” (1890) não deixam de ser fontes interesses para o leitor de hoje entrar em contato com a cultura, os costumes e a sociedade do Rio de Janeiro na época do II Império (1840/1889).  

Pode-se dizer que Aluísio Azevedo é o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

Não foi o único escritor naturalista e nem mesmo o primeiro. Antes do lançamento de “O Mulato” (1881) frequentemente mencionado como o ponto de partida do naturalismo brasileiro, ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que deve ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

Em todo o caso, Inglez de Souza é pouco conhecido até os dias de hoje, talvez pelo fato de ter sido um paraense, que viveu e escreveu apenas sobre a realidade do povo da Amazônia, algo muito distante do centro cultural do Brasil, situado no Rio de Janeiro. Por conta disso, Aluísio Azevedo, se não foi o primeiro naturalista, é certamente o mais conhecido deles.

O Naturalismo literário tem como premissa a ideia de que o comportando humano e os fenômenos físicos são regidos pelas mesmas leis naturais.

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do Naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza, revestidos da mesma fatalidade.

Este tipo de arte suscita boas fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no romance homônimo de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, o capoeirista Firmo ou a mulata sensual Rita Baiana.

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo, ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.

Assim é descrita a forma como foi se constituindo o cortiço:

“E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco”.

A história se passa no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, onde João Romão, um português avarento que vive em função do lucro, constitui um cortiço, onde gente do mais baixo extrato social irá constituir suas casas. São lavadeiras, trabalhadores braçais, vagabundos, capoeiras, pedintes, prostitutas e gente da pequena burguesia que irão construir sua vida no cortiço. Romão também é proprietário de uma venda para monopolizar o comércio dos bens de primeira necessidade aos seus inquilinos, além de emprestar dinheiro com juros de agiota.

Cada ato por ele praticado tem a finalidade de obter alguma vantagem financeira, seja através da exploração do trabalho alheio, seja por meio de um auto sacrifício que não revela qualquer traço de moralidade ou heroísmo mas expressa em tom de caricatura o típico português pão duro:

“Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorar-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois.”.

João Romão ascende financeiramente através do trabalho, ainda que norteado pela especulação e pelo proveito da desgraça alheia. O seu vizinho Miranda, por outro lado, representa outra forma de manifestação da elite econômica brasileira. Casou-se com uma mulher com grandes dotes financeiros, que fez dele um barão. Herdou o dinheiro sem precisar trabalhar, mas teve como contrapartida que engolir o orgulho de ver sua mulher, a verdadeira dona da riqueza, lhe trair  com outros homens e o humilhar perante a sociedade fluminense. Aguentava a mulher para não perder a fortuna financeira.

Há no início da história uma rivalidade entre João Romão e Miranda. O primeiro é exemplo representativo da burguesia que ascende através do trabalho, da avareza, da exploração e da atividade especulativa. O segundo é o exemplo representativo da nobreza, da riqueza herdada sem o exercício do trabalho e o consequente suor do próprio rosto. Ambos ao final da história entram em simbiose: João Romão, após conquistar o dinheiro que lhe tornaria rico, deseja agora conquistar os títulos de nobreza do seu vizinho e para isso lança-se como candidato de casamento à filha do Miranda. Não bastava a aquisição da riqueza, mas a sua ostentação através dos títulos de Barão ou Visconde.

No que concerne aos extratos populares, o livro também tem o mérito de descrever algumas nuanças das diversas camadas sociais do povo. Há desde o velho Libório, um mendigo que representa o mais alto grau da miséria material, até a presença de setores do uma pequena burguesia citadina: “estudantes pobres com uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do buço”; “contínuos de repartição pública”, “caixeiros de botequim”, “artistas de teatro”, “condutores de bonde” e “vendedores de bilhete de loteria”.

O grande mérito de “O Cortiço” foi o de introduzir ao romance brasileiro algum protagonismo aos extratos sociais mais baixos da sociedade brasileira. Desde o romantismo, passando pelo Realismo, de José de Alencar a Machado de Assis, serão predominantes as referências aos proprietários de terra e aos capitalistas das cidades: a alusão ao popular aparecia até o “Cortiço” de forma bastante incidental. Já em O Cortiço, vemos mais de perto as manifestações populares: as festas de domingo, os sambas, as brigas de vizinho, a maledicência, a miséria material que leva ao crime e à prostituição.

Entretanto, seria apenas a partir da literatura Modernista, especialmente em sua fase Regionalista, que os extratos populares seriam alçados à uma verdadeira condição de protagonismo. Em Aluísio de Azevedo, o povaréu que reside no cortiço se assemelha mais a uma massa de gente, a um conjunto uniforme de tipos sociais embaralhados. Existe o quadro, que é o cortiço, e dele derivam as figuras, que são os personagens.

Já a partir dos livros de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Guimarães Rosa, o personagem oriundo do povo passa a ser alçado a verdadeira condição humana, descrevendo-os agora não como uma massa indistinguível, mas como o homem integral, eivado de todas as suas contradições.  

 

Bibliografia:

“História Concisa da Literatura Brasileira” – Alfredo Bosi.

 

segunda-feira, 12 de maio de 2025

“Khadji-Murát” – Lev Tolstói

 “Khadji-Murát” – Lev Tolstói



Resenha Livro - “Khadji-Murát” – Lev Tolstói – Editora 34 – Tradução Boris Schnaidermann

A Guerra do Cáucaso (1817 – 1864) foi um conflito instaurado pelo Império Russo com o objetivo de expandir os seus territórios e fronteiras em direção ao sul. Trata-se de região situada na parte meridional da Rússia, entre o Mar Negro e o Mar Cápio, onde hoje se situa a Geórgia, a Chechênia e o Daguestão.

Desde a Idade Média, a região do Cáucaso foi objeto de disputa entre o Império Bizantino e as populações árabes. Já a penetração russa da região ocorre a partir do século XVIII e XIX, com a anexação da Geórgia em 08 de Janeiro de 1801, pelo Czar Paulo I.

A subsequente Guerra do Cáucaso dá continuidade ao movimento de russificação da região do Cáucaso. Entretanto, os russos encontraram duríssima resistência das tribos e populações montanhesas, de religião muçulmana. Esses povos eram de forma indiscriminada apelidados  pelos invasores de “tártaros”, frequentemente de forma pejorativa. Tais populações resistiram à ofensiva russa durante os reinados de três czares, entre períodos de guerra aberta e tréguas. Ao término do conflito, a despeito da anexação do norte do Cáucaso pelo Império Russo, o principal líder dos rebeldes foi poupado, após jurar fidelidade ao Czar.

Uma das principais lideranças daqueles povos camponeses das montanhas onde hoje se situa o Daguestão foi “Khadji-Murát” que dá o nome à novela de Leon Tolstoi publicada em 1905, cinco anos antes da morte do escritor.

Trata-se de um livro baseado nas próprias experiências pessoais do autor.  

Após abandonar a Universidade e passar por um período de vida de completa dissipação e ócio, quando se envolve com jogos e mulheres, em 1851, Tolstoi alista-se no exército russo. Tinha 23 anos e é engajado na Guerra do Cáucaso no período entre 1851/1852, mesmo momento em que se passam os eventos da novela.

Khadji-Murát era um conhecido e temido líder militar tártaro. Em certa passagem da novela, um dos personagens afirma que se tivesse nascido na Europa, granjearia a mesma autoridade de Napoleão Bonaparte. Começou como comandante em chefe de Chamil, esse último o líder supremo da resistência caucasiana e terceiro imã (“sacerdote”) do Daguestão. Entretanto, Murát irá posteriormente romper com Chamil e criar uma facção política e militar própria. Após ver sua mãe, esposa e filhos sequestrados por Chamil, Murát passa para o lado dos Russos. Jura fidelidade ao Czar não pela renúncia dos seus ideais de independência política ou pelo abandono dos rígidos preceitos religiosos, mas traça uma aliança meramente tática com os Russos, para vingar-se do Amã.

O final da história revela como essa aliança era frágil. Após se entregar ao comandante militar do Czar em Tiblissi, na Geórgia, o protagonista é permanentemente vigiado pelos russos, com quem mantem uma relação de desconfiança. Reivindica autorização para resgatar a sua família, com a contrapartida de apoiar os russos na luta contra Chamil. Entretanto, o seu grupo militar estava sob dura vigilância dos prepostos do Czar e cada passo de seus membros era rastreado. Decidem assim ludibriar os russos e fogem do seu controle, com o objetivo de levar adiante a guerra contra Chamil – o mesmo chefe caucaciano que ao fim da Guerra também juraria fidelidade ao...Czar.

A novela descreve o encontro e o conflito de civilizações. Há o “Ocidente”, representado pelos Russos, e o “Oriente”, representado pelos camponeses do Cáucaso. De um lado uma monarquia absolutista fundada no cristianismo ortodoxo e forças militares dirigidas por membros da aristocracia russa. De outro lado, uma guerrilha de camponeses divididos em diferentes etnias, de orientação muçulmana, com disposição de luta até a morte. Esse conflito, em Tolstoi, assume características muito particulares que vão muito além de uma afirmação “nacionalista” do Império Russo ou, por outro lado, da defesa da luta independentista/separatista dos povos do Cáucaso.

Em se tratando de um escritor do porte de Lev Tolstói, o problema da Guerra surge como uma ótima oportunidade para retratar a complexidade da alma humana e suas contradições. O escritor não tinha a pretensão de ser um historiador, mas de elaborar uma obra de ficção, ou mais exatamente uma obra de literatura com lastro naquilo que viu na sua experiência de soldado na Guerra do Cáucaso.

Isso não significa que o livro tenha a pretensão de se passar por apartidário.

Tolstói é um crítico duro do czarismo e especialmente da crueldade de Nicolau I, que personifica o orgulho que cega os poderosos:

“Para que, naquele tempo, um homem estivesse à testa do povo russo, precisava ter perdido todos os atributos humanos: tinha de ser uma criatura mentirosa, ateia, cruel, ignorante e estúpida, e precisava não apenas sabe-lo, mas também, estar convencido de ser o paladino da verdade e da honra e um sábio governante, benfeitor do seu povo. Assim era Nikolai. E nem podia ser diferente. Toda a sua vida fora uma preparação para isso (...) Existe somente uma explicação para tão surpreendente fenômeno: o que é grande perante os homens é uma vilania perante Deus”.

 Por outro lado, existe nobreza na relação de Murát com algumas lideranças militares russas ao Sul. O líder caucasiano é convidado para jantar junto à residência de um aristocrata que serve na guerra como chefe das forças russas. Em determinados casos, a conduta nobre e corajosa dos oficiais russos desperta o respeito de Murát e de seus companheiros. Nesse contato, há a descoberta de atos heroicos não só do lado dos montanheses mas dos russos, criando a possibilidade de relações de confluência e não apenas de conflito entre o “ocidente” e o “oriente”.

A despeito do notório posicionamento pacifista de Tolstói, a guerra e a morte heroica aparecem na novela como os momentos de maior afirmação de beleza literária.

A novela foi escrita num momento que poderíamos chamar como pertencendo a uma segunda fase das obras de Leon Tolstói. Os seus grandes livros como “Guerra e Paz” (1865/1869) e “Anna Kariênina” (1875/1878) vem antes de um momento em que há uma espécie de “despertar da consciência” que altera a visão de mundo do escritor a partir de 1880.

Consta que imediatamente após ter publicado Anna Kariênina, Tolstói passou al por uma crise de consciência em torno do seu passado desregrado, com um comportamento de autopunição e culpa, que marcaria sua obra subsequente. O autor assume uma postura social-religiosa que daria ensejo até mesmo à criação de um movimento chamado “tolstoismo” que reunia adeptos (geralmente jovens) que se reuniam em torno do mestre. Já antes desse período, na década de 1860, o escritor fundara uma escola para crianças camponesas na sua propriedade rural chamada Iásnaia Poliana, quando já inicia a defesa e a afirmação dos valores populares, a fonte do conhecimento residindo no mujique do campo em detrimento das instituições oficiais, do Estado e da Igreja.

Na literatura, baseando-se na concepção de mundo do camponês russo, defende uma arte  baseada na clareza de exposição e sinceridade, isso é, nas suas palavras, “uma relação correta, isto é, moral do autor com o seu objeto e a sinceridade, isto é, um sentimento não fingido de amor ou ódio àquilo que o artista descreve”.

No âmbito político, o tolstoismo pode ser qualificado como a expressão de um socialismo utópico de tipo pacifista e avesso às instituições e à modernidade burguesa. Nele há a renúncia da Igreja Oficial mas também a afirmação radical do cristianismo primitivo. Ao ponto de traçar como  horizonte político do seu movimento:  “cada um possuir apenas a roupa do corpo, renunciar ao dinheiro e não se aproveitar do trabalho alheio, inclusive de empregados domésticos. E o fundamental, evidentemente, é não mentir.  

domingo, 20 de abril de 2025

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES

 

INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES


A todo o direito que o ordenamento jurídico confere a determinado titular, existe de forma correspondente um dever, ou uma obrigação. E todo o direito confere ao seu titular a possibilidade de promover uma ação que lhe assegure esse mesmo direito. No âmbito do Direito de Família, o direito do menor de idade à pensão alimentícia tem como contrapartida o dever alimentar do detentor do poder familiar. No âmbito do Direito Constitucional, o direito à educação assegurado no artigo 205 da CF/88 gera a obrigação do Estado através das instituições de ensino público de fornecer os serviços de formação e qualificação profissional. No âmbito do Direito Tributário, o direito a um determinado benefício fiscal está sujeito à obrigação do Ente Público de dispensa do recolhimento do tributo, mesmo em prejuízo do erário, mas sempre diante de uma hipótese prevista em lei. Descumprindo o dever alimentar, ao credor há o direito de ingressar com a ação de alimentos. Descumprindo o Ente Público a lei autorizadora da isenção tributária ou de um serviço público como o acesso à Educação, caberá ao cidadão postular o seu direito perante o Poder Judiciário, seja através de uma ação declaratória seja através de uma ação constitutiva.   

O sentido de “obrigações” no âmbito do Direito Civil tem um alcance mais restrito.   

A Teoria Geral das Obrigações consiste num capítulo específico do Direito Civil que disciplina as relações negociais, ou seja, os atos de intercâmbio de bens e serviços. Envolve ainda a reparação de danos, quando surge a obrigação de indenizar oriunda de um ato ilícito. E ainda pode dizer respeito ao dever de restituir benefícios injustamente auferidos em detrimento de outrem, ou seja, o enriquecimento ilícito (artigo 884 CC/02). Assim, quando falamos de obrigações, estamos basicamente falando de contratos (ou de maneira mais ampla, de negócios jurídicos), da responsabilidade civil e de atos unilaterais que são “fontes de obrigação”, como o pagamento indevido ou enriquecimento ilícito, ou seja, obter uma vantagem econômica em detrimento de outrem sem justa causa.

Apesar do aparente alto nível de abstração do estudo da Teoria Geral das Obrigações, há na verdade uma dimensão bastante prática nesse capítulo do Direito Privado. É um assunto do qual nos ocupamos no dia a dia. Na nossa vida estabelecemos a todo momento relações negociais ou sofremos ou causamos danos geradores de responsabilidade civil que estão sujeitas ao regime das obrigações. Ao contratar um serviço de um pintor, estabelece-se uma obrigação consubstanciada no contrato de prestação de serviços: o pintor obriga-se a pintar a casa e o contratante obriga-se a remunerar o serviço. Ao colidir e abaloar um carro estacionado na garagem, agindo com negligência, o causador do acidente (do ato ilícito) obriga-se a indenizar a vítima restituído os valores de reparação do veículo e até os prejuízos pelo tempo em que o proprietário se viu privado do bem. (artigo 186 c/c 927 CC). Aquele que aufere uma vantagem indevida em dinheiro deve se obrigar a restituir o valor ao seu titular, com correção monetária, sob pena de enriquecimento ilícito. (artigo 884 CC/02).

A mais conhecida definição de obrigação no sentido técnico aqui tratado é aquela oriunda do Direito Romano. A definição dada pelas Institutas de Justiniano é: obrigação é um vínculo jurídico (obligatio est juris vinculum) que nos obriga a pagar alguma coisa, fazer ou deixar de fazer.

Clóvis Beviláqua, mentor do Código Civil de 1916, definiu obrigação como “relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão”.

Washington de Barros Monteiro define obrigação como “relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através do seu patrimônio”.

De maneira mais didática, Sílvio de Salvo Venosa define obrigação “como uma relação jurídica transitória de cunho pecuniário, unindo duas (ou mais pessoas), devendo uma (o devedor) realizar uma prestação à outra (o credor).”.  

A obrigação envolverá sempre uma relação jurídica, um vínculo que liga duas ou mais pessoas. Trata-se de uma relação jurídica, diferentemente de uma relação puramente moral ou religiosa, nas quais a lei não estabelece sanção pelo seu descumprimento e que são indiferentes do ponto de vista estritamente do Direito. Pode ser considerada uma obrigação moral o dever de visitar um amigo querido internado no hospital. Pode ser considerada uma obrigação religiosa não comer carne no feriado da sexta feira santa. Mas essas não são obrigações jurídicas e, a princípio, não se revestem de relevância ao Direito ao ponto de sancionar aquele que descumpre o tal dever moral ou religioso. Em alguns momentos, os limites entre o Direito e a moral são mais tênues. Um exemplo de uma obrigação jurídica com dimensão moral é a hipótese do ato de ingratidão do donatário que pode ocasionar a revogação da doação (artigo 555 do CC/02).

Essa relação jurídica irá sempre envolver a figura do credor e do devedor. São os dois lados da obrigação, também denominados sujeitos da relação obrigacional.

O sujeito ativo da obrigação é o credor, ou seja, aquele que tem interesse em que a prestação seja cumprida. Devedor é a pessoa que deve praticar certa conduta, determinada atividade, em prol do credor, ou de quem este determinar. Trata-se da pessoa sobre a qual recai o dever de efetuar uma determinada prestação.

O objeto da relação obrigacional é a prestação, o que vem a ser justamente o elemento que irá vincular os sujeitos: a prestação pode ser dar algo, fazer algo ou deixar de fazer algo. Dentro da obrigação de dar, se insere a obrigação de pagar quantia certa.  

A prestação sempre terá uma dimensão patrimonial, ou seja, poderá ser convertida em pecúnia que é um termo latino que significa dinheiro. (Em Roma, “pecus” era o significado da palavra gado, que era utilizado como moeda de troca. Do termo, veio também a palavra “pecuária”).

A prestação sempre terá um conteúdo patrimonial e conversível em dinheiro. Ainda que haja uma obrigação de fazer (por exemplo, eu me obrigo a pintar um quadro) o seu descumprimento, se não comportar a execução específica, poderá ser convertido em perdas e danos, ou seja, numa indenização pelo descumprimento da obrigação em benefício do credor.

Essa possibilidade de conversão da obrigação em perdas e danos está presente de maneira mais evidente nas obrigações infungíveis, ou seja, aquelas em que só é possível ser cumprida por determinado devedor, sem possibilidade de substituição. Contrato um violinista famoso para fazer uma apresentação no meu casamento. Esse violinista não comparece no dia e hora marcados. Aqui, a única saída ao credor é a conversão da obrigação de fazer (apresentação de violino pelo artista famoso) nas perdas e danos, que é a indenização pecuniária, que abrange os danos emergentes e os lucros cessantes, nos termos do artigo 402 do CC/02, e, em alguns casos, até mesmo os danos morais (artigo 186 e 927).

As obrigações têm ainda um outro aspecto que as diferenciam, que é a sua natureza transitória. Ao contratar um serviço, como a instalação de um fogão no meu apartamento, temos a expectativa de que após a execução dos trabalhos, de forma satisfatória, e com o pagamento, a obrigação será extinta. As partes, num contrato, podem estabelecer relação por um longo período, mas ainda assim não é um vínculo que se caracteriza pela eternidade. O ciclo natural da obrigação é o seu nascimento e a sua extinção, seja com o adimplemento, ou seja, o cumprimento do avençado, seja nos casos de mora (inadimplemento parcial) ou inadimplemento total, quando o credor poderá se munir do processo judicial para executar um crédito ou pedir a indenização das perdas e danos pelo descumprimento do pactuado.

Do exposto, verificamos o caráter universal e abstrato dos Direitos das Obrigações, que fez com que mantivesse uma estrutura que se manteve desde a época do Direito Romano, obviamente trilhando uma linha de evolução. Hoje em dia, apenas o patrimônio do devedor responderá por suas dívidas (artigo 391 CC/02) enquanto em Roma o devedor poderia responder por suas dívidas não só com os seus bens, mas com a sua liberdade, estando sujeito a ser um escravo por dívidas. Por outro lado, os elementos da estrutura obrigacional, suas fontes e o seu alcance são tão amplos que se pode dizer ser talvez um dos ramos do Direito de maior dimensão universal. As obrigações regem a vida comum dos particulares e, mesmo sem sabermos, estamos a todo momento sujeito às suas regras.

Bibliografia: VENOSA, Sílvio de Salvo. “Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos”. Ed. Atlas,  


terça-feira, 25 de março de 2025

“Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa

 “Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa



Resenha Livro - “Primeiras Estórias” – João Guimarães Rosa – Global Editora

“Nunca me contento com alguma coisa. Como já lhe revelei, estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à síntese existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão” (João Guimarães Rosa, 1965).

João Guimarães Rosa nasceu em 27 de junho de 1908 em Cordisburgo, um pequeno arraial situado na região central do Estado de Minas Gerais.

Iniciou os seus estudos de idiomas estrangeiras aos 6 (seis) anos, quando teve seus primeiros contatos com o francês.

Nas palavras do próprio escritor:

“Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”.

O autor de “Grande Sertões: Veredas” desde o início da vida já mostrava sua vocação para o estudo.

Com apenas 16 anos, ingressou no curso de medicina da Universidade de Minas Gerais, no ano de 1925. Após alguns anos medicando no interior de Minas Gerais, serviu como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Um ano depois, foi aprovado em concurso como Oficial Médico no 9º Batalhão de Infantaria para, depois, ser aprovado em concurso do Itamaraty, aprovado em 2º lugar, tornando-se diplomata, profissão que exerceria até o final da vida.

Tradicionalmente, afirma-se que a literatura de João Guimarães Rosa é uma expressão tardia do regionalismo literário e do movimento modernista da década de 1930, do qual os autores mais conhecidos são Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego.

O modernismo regionalista foi pioneiro em retratar as condições das classes populares, notadamente o sertanejo, o jagunço, o caboclo, o camponês sob o domínio do senhor de  engenho ou a pequena burguesia dos incipientes centros urbanos nordestinos, captando as contradições e ambuiguidades do homem através da análise psicológica. Até então, as classes populares vinham sendo retratadas na literatura romântica e realista/naturalista de forma incidental e sem maiores preocupações em torno das complexidades do homem pertencente às classes populares.

Certamente, João Guimarães Rosa é um herdeiro desse avanço concretizado pelos modernistas da década de 1930. Entretanto, qualificar João Guimarães Rosa como um “autor regionalista” é discutível e isso por duas razões.

O modernismo regionalista ainda tem um tom pitoresco.

O exame da vida social nos engenhos de açúcar em José Lins do Rego (“Fogo Morto”) ou dos retirantes da seca em Graciliano Ramos (“Vidas Secas”) parte do ponto de vista do homem da cidade confrontado com um mundo diferente, em vias de extinção.  (São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho do nordeste, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo capitalista instaurado pelas Usinas.).

O modernismo regionalista tem ainda um forte componente telúrico.  As histórias brotam da terra, com o protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o sertanejo (personagens).

Em Guimarães Rosa esses dois aspectos, o pitoresco e o telúrico, perdem importância.

O Sertão ganha uma nova dimensão universal.

Os conflitos em torno da terra, a exploração dos latifundiários ou da violência dos cangaceiros nos regionalistas são substituídos em Guimarães Rose pelos grandes temas universais: qual o limite entre o bem e o mal? Como se situa a condição humana dada a inevitabilidade da morte? Quem é Deus? De que forma é possível definir o sentimento do amor?

Diferentemente da literatura puramente telúrica, o Sertão de Guimarães Rosa não condiciona a conduta dos personagens. O Sertão é nada menos do que um palco onde se encena o drama universal em torno das grandes questões humanas. Neste ponto, trata-se de uma obra que pode ser alçada ao patamar da mais alta literatura universal, ao lado de Dostoievsky no romance ou Shakespeare na dramaturgia.

Outro aspecto que o diferencia bastante do regionalismo modernista é a experimentação na linguagem. O escritor tinha literalmente um projeto linguístico próprio.

Lendo os contos de “Primeiras Estórias” (1962) dá-se mesmo a sensação de que estamos lendo um livro em outro idioma, parecido, mas diferente do português. A criação de palavras novas (neologismo) serve para expandir ao máximo a capacidade de expressão do pensamento através da linguagem.

 Foram dois os livros de contos publicados por João Guimarães Rosa.

O primeiro é o seu livro de estreia, denominado “Sagarana” (1946). Já “Primeiras Estórias” pode ser considerada obra da plena maturidade do escritor, publicada alguns anos depois do seu mais alto empreendimento literário: “Grande Sertão: Veredas” (1956).

“Primeiras Estórias” foi lançada na década de 1960, período de grandes transformações no Brasil, com o desenvolvimento acelerado da indústria por meio do Plano de Metas traçado por  Juscelino Kubitschek. Trata-se de um tempo de acentuada transição demográfica no país, com a migração da população do campo para a cidade, fenômeno simbolicamente representado pela construção de Brasília (1956 a 1960).

Esse processo histórico está presente nos contos do escritor mineiro.

Dois contos “Primeiras Estórias” tratam justamente da construção de uma nova cidade no meio do nada, vista sob o olhar de uma criança. “As Margens da Alegria”, a estória que abre o volume de contos, retrata uma viajem de avião sob um vasto campo onde se construirá uma cidade. E “Os Cismos”, o livro que fecha as estórias, retoma essa mesma história, agora para retratar a angústia dessa criança confrontada com a convalescência de sua mãe.

História vista sob o olhar de uma criança reforça uma visão de mundo marcada pela perplexidade e pelo mistério.

Esses dois contos revelam aquela superação do modernismo regionalista que nos referimos anteriormente. Pode-se dizer se tratar de uma coroação do fim daquele mundo dos engenhos de açúcar, o esfacelamento da sociedade patriarcal estruturada na tradição econômica herdada do Brasil Colonial.

Novamente, o Sertão agora passa a ser o palco por onde passam homens e mulheres que suscitam os grandes problemas universais.

quarta-feira, 5 de março de 2025

“Pedra Bonita” – José Lins do Rego

 “Pedra Bonita” – José Lins do Rego

 



Resenha Livro – “Pedra Bonita” – José Lins do Rego – Ed. Civilização Brasileira – Série “Literatura Brasileira Contemporânea”.

 

“A obra de José Lins do Rego é mais, muito mais do que um documento sociológico; é qualquer coisa de vivo, porque o seu criador lhe deu o próprio sangue, encheou-a dos seus gracejos e tristezas, risos e lágrimas, conversas, doenças, barulhos, disparates, e da sua grande sabedoria literária. Deu-lhe o hálito da vida. Essa obra não morre tão cedo. É eternamente jovem, como o povo; é eternamente triste, como o povo. É o trovador trágico da província”. Otto Maria Carpeaux.

 

VIDA E OBRA DE JOSÉ LINS DO REGO

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.

 

Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).

 

Aos quatorze anos de idade, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.

 

Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito de Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz. O pioneirismo deu-se através da publicação do livro “A Bagaceira” publicado em 1928 e considerado o marco inicial daquele movimento.

 

Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego sejam uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933). O processo lento e paulatino da decadência da economia do açúcar e o declínio da sociedade patriarcal por ela engendrada também encontram paralelo na obra do sociólogo pernambucano, nas duas obras subsequentes: “Sobrados e Mucambos” (1936) e “Ordem de Progresso” (1960).

 

Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.

 

Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem fictício Carlos.

 

A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).

 

Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.

 

Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

 

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.  

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances.

 

Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

PEDRA BONITA

 

Há ainda um segundo elemento marcante na produção literária de José Lins do Rego. Trata-se da qualidade telúrica das suas histórias. Elas brotam da terra, com o protagonismo do sertão nordestino como motivo determinante dos enredos: desde a economia do açúcar e do algodão, passando pelos efeitos sociais da seca, o cangaço e o messianismo religioso, todos esses elementos humanos parecem estar subordinados à realidade da terra, estão plenamente aclimatados, podendo-se dizer que o sertão (espaço) exerce protagonismo igual ou até maior do que o sertanejo (personagens).

 

Essa dimensão telúrica foi levada até às últimas consequências na obra “Pedra Bonita” (1938).

 

Nela duas localidades do sertão nordestino são literalmente alçadas às principais personagens do enredo: a Vila do Açú e Pedra Bonita.

 

Duas localidades que mantém hostilidade por conta de um passado trágico.

 

A cidade de Açu é representativa de um Brasil Oficial, da Igreja Católica dirigida pelo Padre Amâncio e das instituições estatais representadas pelo Prefeito, Coronel Clarimundo, que alcançou o poder por seu o maior comerciante de algodão do local. E pelo juiz de Direito, Dr. Carmo, que vive a contragosto com sua família naquela cidade maldita e isolada dos centros urbanos.  

 

Já Pedra Bonita é a representação de um Brasil fora do controle da institucionalidade. Nela estão os cangaceiros e os líderes religiosos messiânicos que desafiam o Estado e a Igreja, tal qual “Canudos” desafiou a República Velha.

 

A rivalidade desses dois vilarejos, desses dois protagonistas, teve origem através de um evento mantido em segredo até a metade do livro.

 

A história se passa alguns anos após a grande seca de 1904. (Essa experiência traumática está viva na lembrança dos personagens.).  

 

Açu é em todos os aspectos um lugar triste. Nunca cresceu, jamais se desenvolveu ou teve algum fausto. A única coisa grande na vila é a Igreja. Padres sem ambição eram encaminhados ao Açu para passar “dias apertados”. O local é frequentado por umas poucas beatas. Dá-se a impressão de que o trabalho diário de celebrar as missas para essas 4 ou 5 almas é uma atividade completamente inútil.

 

Padre Amâncio chega ao Açu jovem e movido por um sincero desejo de salvar as almas do vilarejo. Sabia de antemão que aquele era um lugar maldito, para onde todos se recusam a ir. Ainda assim, abandona uma promissora carreira eclesiástica para lançar-se à atividade missionária. Abraça Açu com a grande expectativa, a despeito da má fama da cidade.

 

20 anos de trabalho fizeram envelhecer 40 anos em Padre Amâncio.

 

Chegou a Açu cheio de vigor e vontade de ser útil ao povo. Esse povo, tão maldito como a sua terra, demonstra a todo o momento não fazer jus aos cuidados do missionário. A maledicência naquele vilarejo é constante. A tragédias de alguns não geram a solidariedade mas as intrigas e o deboche. Homens diariamente se reúnem em frente a uma árvore tamarineira para dizer coisas obscenas e falar mal dos outros. As intrigas políticas em torno do poder local tornam o ambiente ainda mais degradante. O abandono e a pobreza cobram o seu preço e produzem as suas tragédias. As mulheres da igreja atendem às missas para o atendimento de um dever, de uma formalidade, e também se distinguem pela maledicência. Padre Amâncio surge como um único fio de esperança, representa ao menos uma expectativa de tempos melhores. Mas o idealismo do padre é paulatinamente quebrado pela brutalidade da realidade e da terra. Ao final da história, é vencido pelo cansaço e pela velhice.

 

Uma maldição do passado é a justificativa para o abandono e atraso do Açu.

 

Essa maldição é revelada ao personagem Antônio Bento, um jovem de 17 anos que é sacristão e afilhado do padre Amâncio. É rejeitado por todos os moradores do Açu por ser oriundo de Pedra Bonita, a cidade (protagonista) hostil, a causa de todos os males do Açu.

 

O sacristão ignora a razão da hostilidade, escondem-lhe desde menino o segredo da Pedra Bonita. Posteriormente, descobrimos a origem da rivalidade dos vilarejos.

Há muitos anos, um líder messiânico arrebata o sentimento religioso dos sertanejos para constituíram em Pedra Bonita uma comunidade devotada à adoração da figura escatológica do líder. Essa liderança messiânica demanda o sexo das mulheres jovens para gerar a gravidez e o nascimento de crianças que deveriam ser mortas. O sangue as crianças serviria como fonte para a salvação da humanidade.

 

Um parente distante de Antônio Bento atua como a figura de Judas. Foge de Pedra Bonita e denuncie os crimes daquela cidade às autoridades de Açu, que retornam com a força policial e dizimam todos os habitantes da comunidade religiosa. O paralelo com Canudos é evidente.

 

“Pedra Bonita” é além de tudo um belo retrato do banditismo social dos cangaceiros. Curiosamente, a violência dos bandoleiros em nada se diferencia do Estado, representado pelos volantes, a polícia estatal que trava uma guerra sanguinária contra os cangaceiros. O sertanejo convive com a desgraça de ser ora brutalizados pelos cangaceiros que roubam, matam e violam as mulheres. E, posteriormente, atacados pelas forças do Estado que prendem e matam todos aqueles suspeitos de colaborar com os bandidos.    A figura do volante e do cangaceiro sequer se distinguem.

 

Pedra Bonita talvez tenha sido a mais triste história contada em prosa do sertão nordestino.