“Cândido ou O Otimismo” – Voltaire
Resenha Livro - “Cândido” – Voltaire – Ed. Lafonte
Cândido é o mais conhecido texto
de Voltaire. Ao ponto de um dos seus personagens assumir a qualidade de um
adjetivo.
Até hoje se fala que determinada
pessoa ou ideia é panglossiano(a).
O termo vem do personagem Dr. Pangloss,
filósofo e preceptor dos filhos de um rico Barão de Vestfália. Significa atribuir
um otimismo exagerado e inadequado às situações de maior adversidade. Aplica-se
às pessoas que têm a mania de sustentar que está tudo bem quando tudo vai mal. O
termo ainda tem uma conotação de ironia, justamente quando o otimismo exacerbado
é confrontado com a dura realidade – o que provoca o efeito do humor. Como
diria um panglossiano, apesar de todas as desgraças do mundo, as coisas não
poderiam ser diferentes porque elas sempre acontecem da melhor maneira
possível.
“Está demonstrado – dizia
Pangloss – que as coisas não podem ser de outra forma, pois, uma vez que tudo é
feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins. Reparem
que o nariz foi feito para sustentar os óculos. Por isso usamos óculos. As
pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos
calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para construir castelos;
por isso o senhor barão tem um castelo lindíssimo. O maior barão da província
deve ter a melhor moradia. E ainda, como os porcos foram feitos para serem comidos,
comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afirmam que tudo está
bem disseram uma tolice; deveriam, na realidade, dizer que tudo está da melhor
forma possível”.
Cândido, o protagonista do conto,
foi um aluno do grande filósofo do otimismo. Morava de favor no Castelo, até
ser expulso, logo após ser flagrado beijando a bela Cunegundes, filha do Barão.
Como o seu nome sugere, Cândido
tem uma alma pura e é incapaz de trair a verdade. Entusiasta das ideias de seu
mestre, ao ser lançado ao mundo, irá confrontar as premissas panglossianas com a
realidade. Aqui já temos um primeiro enunciado filosófico do texto: a filosofia
deve ter fundamento na experiência, as ideias devem ser confrontadas com a
prática, a verdade não reside na atividade puramente especulativa. Será através
do giro de Cândido pela Europa, pela América e pelo Mediterrâneo que poderá
testar na prática as ideias do seu mestre Pangloss.
Nas suas andanças, cai nas mãos
do exército búlgaro, presencia a guerra, massacres e estupros coletivos. Em
fuga num navio, sofre um naufrágio e consegue chegar até Lisboa, porém é surpreendido
por um terremoto que devasta a cidade. Era no tempo da Inquisição, e um Auto de
Fé é realizado para exorcizar os pecados que teriam dado causa ao desastre
natural: o seu mestre Pangloss é capturado aleatoriamente e enviado à forca pela
Santa Inquisição, com a finalidade de expurgar a humanidade e evitar um novo
castigo divino.
Numa nova rota de fuga, Cândido
sai de Portugal em direção às Américas, onde trava relações com os jesuítas do
Paraguai. (Voltaire, quando criança, estudara num colégio de Jesuítas. A crítica
radical da Igreja Católica e da mistificação religiosa, dentro da sua
orientação Iluminista, é traço característico de sua obra).
Cândido e seus companheiros de
viagem são em determinado momento capturados por selvagens chamados “orelhudos”.
Aqui, pode-se notar uma nova polêmica filosófica, dirigida em face de Rousseau,
que propugnava a teoria do bom selvagem. De acordo com essa teoria, o índio vive
no seu estado natural, por não estar sujeito à influência da sociedade, e por
isso é naturalmente bom, pacífico e virtuoso. Já os índios “orelhudos” de
Voltaire perseguem Cândido para matá-lo e exercer a antropofagia. Outras
mulheres da tribo travam relações sexuais e amorosas com macacos.
Finalmente, o protagonista
consegue ser libertado dos selvagens e num lance de sorte chega à cidade de
Eldorado.
Trata-se de um lugar cercado por
altas montanhas, tornando impossível o contato dos seus habitantes com o
restante do mundo. Suas areias são feitas de ouro. Diamantes e todo tipo de
riqueza natural são tão abundantes que os seus habitantes desconhecem o seu
valor. Ficam chocados quando Cândido e seu companheiro Cacambo pedem para si
todo aquele ouro, cuja abundância era tamanha, que fazia com que os moradores de
El Dorado o comparassem a lixo.
Sob toda essa riqueza material, e
totalmente isolada do resto da humanidade, Eldorado surge como a confirmação
das ideias de Pangloss. Uma sociedade perfeita, onde uma elite política de
sábios governa em prol da coletividade, desprovida de qualquer interesse que
não servir o povo. Os estrangeiros são recebidos com grandes banquetes,
oferecidos com tamanha generosidade, que os convivas estranham e riem quando
Cândido se oferece para retribuir em dinheiro o tratamento hospitaleiro. O
conhecimento e a tecnologia desenvolvida pelos habitantes de El Dorado levam
seus habitantes a criar uma máquina voadora para levar os aventureiros de volta
ao mundo que cerca a cidade utópica.
As desventuras de Cândido
prosseguem. Retorna da América à Europa, onde passa por Paris (o mais
detestável dos lugares por que passou), Veneza e finalmente Constantinopla. Depois
de confrontar a filosofia do otimismo com aquilo que viu no seu giro pelo
mundo, Cândido chega ao fim da história à conclusão de que o mundo não existe
para ser pensado.
A redenção descoberta por Cândido
se dá através do trabalho.
É através do trabalho que se
combate os três maiores males da vida: a necessidade, o vício e o tédio.
Sabe-se que o Iluminismo é a
expressão filosófica e ideológica da burguesia enquanto classe social
emergente. Trata-se de um movimento ideológico de oposição ao Antigo Regime e
ao Absolutismo Monárquico que iria se materializar politicamente através da Revolução
Francesa de 1789.
Cândido ao final da história
rejeita a filosofia especulativa para afirmar que o que vale na vida é “trabalhar
e cuidar do seu jardim”. Ou seja, o Trabalho e a Propriedade, os dois
fundamentos do liberalismo burguês.
O “cuidar do seu jardim” a que se
refere à Cândido diz respeito a um dos elementos constitutivos dessa ideologia
burguesa: a propriedade privada.
O “trabalho” também encontra o
seu fundamento na burguesia quando ela se opõe aos privilégios instituídos pelo
Antigo Regime, defendendo a igualdade de todos perante a lei – o próprio
nascimento da classe trabalhadora se dá no seio do desenvolvimento dessa
burguesia citadina da Europa, ao ponto de ulteriormente (e dialeticamente)
constituir-se como uma classe em oposição à própria burguesia.
O proletariado nasce no seio da
revolução da burguesia para logo depois se constituir como a classe social que
leva adiante essa mesma revolução até as suas últimas consequências: o socialismo.
Enquanto em 1789, a burguesia por
meio da revolução põe abaixo o absolutismo para instituir um novo regime
político, já no século subsequente, em 1848, passa a ser confrontada pelos
primeiros movimentos socialistas dos trabalhadores. Quando a Comuna de Paris em
1871 coloca em pauta pela primeira vez na história a tomada do poder pelo
proletariado, sua derrota por meio do massacre da contrarrevolução já evidencia
o esgotamento da fase “revolucionária” da burguesia. Torna-se a partir de então
uma classe reacionária. Vai decaindo desde o século XIX até os dias de hoje. O
seu liberalismo, hoje, é a fonte fundamental da tragédia econômica e social produzida
pelo capitalismo em sua fase imperialista, marcada por crises, guerras e
revoluções. É uma ideologia que no
passado cumpriu um papel heroico, mas hoje merece ser derrotada.
Voltaire é uma expressão da fase revolucionária
do liberalismo.
Apesar de ser conhecido como um
filósofo, Voltaire não foi propriamente um teórico ou criador de algum sistema
filosófico próprio. Foi antes de tudo um polemista e propagandista.
Morreu no ano de 1778, poucos
anos antes da grande Revolução de 1789, que corou as ideias do movimento
ideológico do qual fez parte. Os revolucionários franceses, no ano de 1791,
trouxeram os restos mortais do filósofo ao Panteão de Paris, mausoléu onde
estão enterrados os grandes homens da França.
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