sábado, 19 de julho de 2025

“Cândido ou O Otimismo” – Voltaire

 “Cândido ou O Otimismo” – Voltaire





Resenha Livro - “Cândido” – Voltaire – Ed. Lafonte

Cândido é o mais conhecido texto de Voltaire. Ao ponto de um dos seus personagens assumir a qualidade de um adjetivo.

Até hoje se fala que determinada pessoa ou ideia é panglossiano(a).

O termo vem do personagem Dr. Pangloss, filósofo e preceptor dos filhos de um rico Barão de Vestfália. Significa atribuir um otimismo exagerado e inadequado às situações de maior adversidade. Aplica-se às pessoas que têm a mania de sustentar que está tudo bem quando tudo vai mal. O termo ainda tem uma conotação de ironia, justamente quando o otimismo exacerbado é confrontado com a dura realidade – o que provoca o efeito do humor. Como diria um panglossiano, apesar de todas as desgraças do mundo, as coisas não poderiam ser diferentes porque elas sempre acontecem da melhor maneira possível.

“Está demonstrado – dizia Pangloss – que as coisas não podem ser de outra forma, pois, uma vez que tudo é feito para um fim, tudo é necessariamente feito para o melhor dos fins. Reparem que o nariz foi feito para sustentar os óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram formadas para serem talhadas e para construir castelos; por isso o senhor barão tem um castelo lindíssimo. O maior barão da província deve ter a melhor moradia. E ainda, como os porcos foram feitos para serem comidos, comemos porco o ano inteiro. Por conseguinte, aqueles que afirmam que tudo está bem disseram uma tolice; deveriam, na realidade, dizer que tudo está da melhor forma possível”.

Cândido, o protagonista do conto, foi um aluno do grande filósofo do otimismo. Morava de favor no Castelo, até ser expulso, logo após ser flagrado beijando a bela Cunegundes, filha do Barão.

Como o seu nome sugere, Cândido tem uma alma pura e é incapaz de trair a verdade. Entusiasta das ideias de seu mestre, ao ser lançado ao mundo, irá confrontar as premissas panglossianas com a realidade. Aqui já temos um primeiro enunciado filosófico do texto: a filosofia deve ter fundamento na experiência, as ideias devem ser confrontadas com a prática, a verdade não reside na atividade puramente especulativa. Será através do giro de Cândido pela Europa, pela América e pelo Mediterrâneo que poderá testar na prática as ideias do seu mestre Pangloss.

Nas suas andanças, cai nas mãos do exército búlgaro, presencia a guerra, massacres e estupros coletivos. Em fuga num navio, sofre um naufrágio e consegue chegar até Lisboa, porém é surpreendido por um terremoto que devasta a cidade. Era no tempo da Inquisição, e um Auto de Fé é realizado para exorcizar os pecados que teriam dado causa ao desastre natural: o seu mestre Pangloss é capturado aleatoriamente e enviado à forca pela Santa Inquisição, com a finalidade de expurgar a humanidade e evitar um novo castigo divino.

Numa nova rota de fuga, Cândido sai de Portugal em direção às Américas, onde trava relações com os jesuítas do Paraguai. (Voltaire, quando criança, estudara num colégio de Jesuítas. A crítica radical da Igreja Católica e da mistificação religiosa, dentro da sua orientação Iluminista, é traço característico de sua obra).

Cândido e seus companheiros de viagem são em determinado momento capturados por selvagens chamados “orelhudos”. Aqui, pode-se notar uma nova polêmica filosófica, dirigida em face de Rousseau, que propugnava a teoria do bom selvagem. De acordo com essa teoria, o índio vive no seu estado natural, por não estar sujeito à influência da sociedade, e por isso é naturalmente bom, pacífico e virtuoso. Já os índios “orelhudos” de Voltaire perseguem Cândido para matá-lo e exercer a antropofagia. Outras mulheres da tribo travam relações sexuais e amorosas com macacos.

Finalmente, o protagonista consegue ser libertado dos selvagens e num lance de sorte chega à cidade de Eldorado.

Trata-se de um lugar cercado por altas montanhas, tornando impossível o contato dos seus habitantes com o restante do mundo. Suas areias são feitas de ouro. Diamantes e todo tipo de riqueza natural são tão abundantes que os seus habitantes desconhecem o seu valor. Ficam chocados quando Cândido e seu companheiro Cacambo pedem para si todo aquele ouro, cuja abundância era tamanha, que fazia com que os moradores de El Dorado o comparassem a lixo.

Sob toda essa riqueza material, e totalmente isolada do resto da humanidade, Eldorado surge como a confirmação das ideias de Pangloss. Uma sociedade perfeita, onde uma elite política de sábios governa em prol da coletividade, desprovida de qualquer interesse que não servir o povo. Os estrangeiros são recebidos com grandes banquetes, oferecidos com tamanha generosidade, que os convivas estranham e riem quando Cândido se oferece para retribuir em dinheiro o tratamento hospitaleiro. O conhecimento e a tecnologia desenvolvida pelos habitantes de El Dorado levam seus habitantes a criar uma máquina voadora para levar os aventureiros de volta ao mundo que cerca a cidade utópica.

As desventuras de Cândido prosseguem. Retorna da América à Europa, onde passa por Paris (o mais detestável dos lugares por que passou), Veneza e finalmente Constantinopla. Depois de confrontar a filosofia do otimismo com aquilo que viu no seu giro pelo mundo, Cândido chega ao fim da história à conclusão de que o mundo não existe para ser pensado.

A redenção descoberta por Cândido se dá através do trabalho.

É através do trabalho que se combate os três maiores males da vida: a necessidade, o vício e o tédio.

Sabe-se que o Iluminismo é a expressão filosófica e ideológica da burguesia enquanto classe social emergente. Trata-se de um movimento ideológico de oposição ao Antigo Regime e ao Absolutismo Monárquico que iria se materializar politicamente através da Revolução Francesa de 1789.

Cândido ao final da história rejeita a filosofia especulativa para afirmar que o que vale na vida é “trabalhar e cuidar do seu jardim”. Ou seja, o Trabalho e a Propriedade, os dois fundamentos do liberalismo burguês.  

O “cuidar do seu jardim” a que se refere à Cândido diz respeito a um dos elementos constitutivos dessa ideologia burguesa: a propriedade privada. 

O “trabalho” também encontra o seu fundamento na burguesia quando ela se opõe aos privilégios instituídos pelo Antigo Regime, defendendo a igualdade de todos perante a lei – o próprio nascimento da classe trabalhadora se dá no seio do desenvolvimento dessa burguesia citadina da Europa, ao ponto de ulteriormente (e dialeticamente) constituir-se como uma classe em oposição à própria burguesia.

O proletariado nasce no seio da revolução da burguesia para logo depois se constituir como a classe social que leva adiante essa mesma revolução até as suas últimas consequências: o socialismo.

Enquanto em 1789, a burguesia por meio da revolução põe abaixo o absolutismo para instituir um novo regime político, já no século subsequente, em 1848, passa a ser confrontada pelos primeiros movimentos socialistas dos trabalhadores. Quando a Comuna de Paris em 1871 coloca em pauta pela primeira vez na história a tomada do poder pelo proletariado, sua derrota por meio do massacre da contrarrevolução já evidencia o esgotamento da fase “revolucionária” da burguesia. Torna-se a partir de então uma classe reacionária. Vai decaindo desde o século XIX até os dias de hoje. O seu liberalismo, hoje, é a fonte fundamental da tragédia econômica e social produzida pelo capitalismo em sua fase imperialista, marcada por crises, guerras e revoluções.  É uma ideologia que no passado cumpriu um papel heroico, mas hoje merece ser derrotada.

Voltaire é uma expressão da fase revolucionária do liberalismo.

Apesar de ser conhecido como um filósofo, Voltaire não foi propriamente um teórico ou criador de algum sistema filosófico próprio. Foi antes de tudo um polemista e propagandista.

Morreu no ano de 1778, poucos anos antes da grande Revolução de 1789, que corou as ideias do movimento ideológico do qual fez parte. Os revolucionários franceses, no ano de 1791, trouxeram os restos mortais do filósofo ao Panteão de Paris, mausoléu onde estão enterrados os grandes homens da França.  

segunda-feira, 7 de julho de 2025

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto

 “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto



Resenha Livro - “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto – Ed. Projetus

“Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”.

“Triste Fim de Policarpo Quaresma” é sem dúvidas o mais conhecido romance do escritor fluminense Afonso Henriques de Lima Barreto (1881/1922). Foi publicado inicialmente em folhetim no ano de 1911 na edição vespertina do “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, foi publicado integralmente em livro, ao que consta, a muito custo, com os parcos rendimentos do escritor.

Lima Barreto não obteve o reconhecimento literário ao seu tempo, a despeito de ser provavelmente o melhor cronista da incipiente vida urbana do Brasil do início do Século XX. Foi em três ocasiões preterido de uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Foi excluído e silenciado pela crítica oficial e passou os últimos anos de sua vida internado em hospital psiquiátrico por problemas com alcoolismo.

Em parte, a marginalização do escritor se explica pela sua origem social e racial. E, de outro lado, o seu estilo literário igualmente destoava das tendências predominantes da época, ainda influenciadas pelo apego ao formalismo, levado até as últimas consequências pelo parnasianismo.  

Os romances do escritor envolvem uma escrita simples, de estilo realista, que procura expressar os tipos populares e suburbanos do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Em Lima Barreto, a palavra não serve de anteparo entre o homem e os fatos que serão narrados. Opunha-se ferozmente a qualquer tipo de preciosismo literário, ao ponto de dizer: “não posso compreender que a literatura seja um culto ao dicionário”. Neste contexto, fazia oposição direta aos dois mais importantes escritores do período em que viveu: Rui Barbosa e Coelho Neto.

Curiosamente, um dos poucos que reconheceram a capacidade do escritor negro e pobre do Rio de Janeiro foi Monteiro Lobato, o mesmo que muitos hoje em dia buscam também silenciar por conta do seu “racismo” e “elitismo”. Foi o próprio Lobato o único que quem publicou em sua editora os livros de Lima Barreto.

A segunda razão do ostracismo em vida do escritor, como dissemos, diz respeito à sua origem social. Veio do subúrbio carioca, foi filho de um tipógrafo e de uma professora primária, falecida quando Lima Barreto tinha sete anos de idade.

O seu pai era monarquista e protegido de Visconde de Ouro Preto. O político do II Império tornou-se padrinho de Lima Barreto e o auxiliaria a ingressar  na escola politécnica do Rio de Janeiro. Lá estudou engenharia, sem terminar o curso. Com a queda de Dom Pedro II e a proclamação da República, o pai de Lima Barreto, até então protegido pelo influente ministro do Imperador, perde o emprego. Já o autor de Policarpo Quaresma sobrevive escrevendo em jornais e revistas do Rio de Janeiro  e, em 1903, é aprovado em concurso para trabalhar como funcionário público da Secretaria da Guerra.

Há em toda obra do escritor um componente autobiográfico. Ele é mais visível especialmente do seu primeiro romance "Recordações do escrivão Isaías Caminha" (1909) no qual traça um panorama satírico dos artistas, escritores, poetas e jornalistas que participam da vida cultural do Brasil dos anos de 1900. Desde o favoritismo, até ao culto do bacharelismo, vemos a mediocridade se impondo e prevalecendo sobre a originalidade nas artes. Em regra, o bacharel é aquele que se torna um sábio através do estudo – o diploma parece ser antes um mero título de nobreza. A ausência de autenticidade, quando não o puro e simples plágio, dão o tom da literatura da época.

O componente auto biográfico está igualmente presente no seu mais conhecido romance.

Triste Fim de Policarpo Quaresma

O major Policarpo Quaresma pode ser comparado como a versão brasileira de Dom Quixote.

É um nacionalista movido por um sincero, cândido e ingênuo otimismo em relação ao Brasil. O aspecto quixotesco do personagem se revela especialmente em alguns lances cômicos do protagonista.

Quaresma é um burocrata que trabalha na Secretaria de Guerra e desde cedo se dedica ao estudo da realidade nacional. Depois de ler absolutamente toda a bibliografia disponível sobre a história, botânica, geologia, política, sociologia e a geografia do Brasil, surpreende os seus vizinhos fazendo aulas de violão, por entender ser o instrumento, então visto como algo vulgar, uma das mais altas expressões do sentimento nacional.

Vai estudar o folclore brasileiro e busca entrevistar uma velha escrava para lhe contar as cantigas da época do cativeiro. A própria mulher estranha o pedido e mal se lembra das tais histórias.

Inicialmente visto como um esquisitão, Quaresma passa a ser visto como louco depois de propor uma reforma ao legislativo para instituir o Tupi como língua oficial do Brasil. É aposentado de forma compulsória da Secretaria de Guerra e então se muda para uma fazenda chamada “Sossego” onde traça um programa ambicioso para impulsionar a agricultura nacional.

Frequentemente, o seu idealismo é confrontado com a dura realidade.

Leu tratados de botânica, trabalha ele próprio a terra em conjunto com um ex escravo, que se diverte vendo o major com o seu pince-nez mal saber manusear a enxada. Todo o esforço e esperança dedicados à agricultura são destruídos pelo poder invencível das .... formigas. São elas tão frequentemente lembradas na tradição brasileira, que remontam à famosa assertiva de “Macunaíma” de Mário de Andrade: “Muitas Saúvas e Pouca Saúde, os males do Brasil são”.

Mas certamente o momento em que Quaresma mais verá confrontado o seu idealismo com a dura e bruta realidade país se dará na última parte do livro, quando o major se voluntaria para defender a República e a presidência de Floriano Peixoto durante a Revolta da Armada. Trata-se de uma Guerra Civil que foi brutalmente reprimida pelo ditador da República.

Se o protagonista via o Brasil como um país divino, inigualável em sua perfeição natural, o idealismo se estende aos poderes políticos: via uma figura medíocre como a do presidente do Brasil como uma versão nacional de Napoleão, de Henrique IV ou de Bismark.  Novamente a expectativa em torno do ideal, confrontada com a realidade, produz um novo fracasso, com tons de humor.

Ao término da revolta, Floriano Peixoto encerra uma perseguição incruenta contra os rebeldes, ensejando a oposição de Quaresma, sempre movido por uma intenção sincera de servir a pátria. E, ao final da obra, o protagonista é mandado à prisão e tratado por todos como um traidor da pátria. É o “triste fim” a que se reporta o título do livro.

E esse “triste fim”, esse não reconhecimento de um espírito virtuoso, sincero e ativo em defesa do Brasil é um dos paralelismos entre a obra de ficção e a vida de Lima Barreto. Tal qual Quaresma, Lima Barreto morreu sem o reconhecimento da sua contribuição ao país e à literatura nacional.

Não reconhecido em vida, entretanto, Lima Barreto hoje certamente é mais lido e conhecido que um Coelho Neto, o escritor erudito mais popular do Brasil no início do século XX.