"Mar Morto" - Jorge Amado
Resenha Livro - “Mar Morto” – Jorge Amado – Ed. Record
“... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar”.
Jorge Amado é também um dos escritores
brasileiros mais conhecido e lidos fora do país – no ano de 1971, por exemplo,
o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de
Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor
consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto
pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há
sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura
popular.
Convencionou-se dividir a
literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos.
Uma fase de cunho nitidamente
político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período
romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais
nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também
nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de
menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da
Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos
desde um trapiche onde se refugiam.
Estes livros se situam num
movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho
nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades
sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel
de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os
mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os
trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para
usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm.
A segunda fase da produção
literária do escritor baiano se relaciona com uma reorientação política. Teve
como eixo a ruptura de muitos intelectuais com o movimento comunista no
contexto do XX Congresso do PCUS no ano de 1956, quando Nikita Kruschev denunciou
aquilo que caracterizava como os “crimes do stalinismo” – na prática, tratava-se
do marco inicial da restauração capitalista da União Soviética. São desta segunda fase romances não tão
abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e
Seus Dois Maridos” (1966).
Apesar de “Mar Morto” (1936) ser
uma obra da juventude de Jorge Amado, foi por ele considerado o seu melhor
romance.
A história dos homens que vivem
no mar, transportando mercadorias nos seus barcos a vela (saveiros), em condições
de extrema pobreza e sujeitos ao risco de uma tempestade leva-los à morte,
remonta à preocupação do escritor com a
vida e a luta do povo e dos trabalhadores. Mas, o componente político não
compromete a qualidade literária da obra.
A grandeza do escritor reside
justamente nessa capacidade de expressar a luta de classes sem o fazê-lo por
meio de proselitismo partidário ou até mesmo com uma intenção de agitação e
propaganda em torno de determinada ideologia. Com esse arranjo, suas histórias
são factíveis, a conduta dos personagens, ainda que heroica em determinados
momentos, não se revela como algo não plausível.
O protagonista da história
chama-se Guma, mais um daqueles muitos homens do cais. O seu pai sofrera o
destino irremediável daqueles marinheiros: morrera num naufrágio do seu Saveiro
para o encontro inevitável com Iemanjá, a divindade protetora dos marinheiros.
Sua mãe foi uma prostituta que, sem condições de cuidar do filho, deixou-o aos
cuidados de um Tio, também marinheiro, que ensinou à Guma desde menino a
pilotar o barco de vela, chamado simbolicamente
de “Valente”.
O que caracteriza aqueles homens
do mar é a coragem. E a experiência de
viver o amor e a vida em geral de forma intensa.
A coragem reside na formação para
um trabalho em que estarão sempre cercados pelo risco da morte. São as
tempestades repentinas e os ventos que destroem os saveiros e levam seus
condutores ao encontro de Iemanjá. Além disso, Guma e os demais são desde
criança levados ao trabalho no mar. Apenas frequentam poucos anos de escola
para apenas aprender de forma rudimentar a escrever o seu próprio nome. Já aos 10
ou 11 anos de idade, abandonam o estudo para cumprir o seu destino. Reproduzem
um ciclo que vem dos seus pais e avós. Tornam-se por isso homens antes do
tempo.
Além disso, os homens do cais
vivem o amor de forma intensa. Passam temporadas em viagens e quando retornam à
família, amam suas mulheres como se não houvesse amanhã. Afinal, nunca saberão
o dia em que não retornarão.
Não encaram essa fatalidade com
revolta, nem tão pouco com resignação. Trata-se de predestinação, vista por
eles em seu caráter heroico. Todos aqueles homens sabem que o seu destino é perecer
nas águas do mar. O tio de Guma, uma exceção à regra, envelhece até esgotar
suas forças para conduzir o saveiro. Perecer de velhice, sem cumprir o seu
destino de marinheiro, é motivo de tristeza àqueles homens.
A dimensão política da obra se
revela na exposição das condições de vida dos trabalhadores do mar. Os
marinheiros quando naufragam obrigam suas esposas a sobreviver da prostituição ou
do trabalho precário nas fábricas. O baixo preço pago pelas viagens levam-nos em
determinado momento a cogitar a greve geral. Há ainda na história dois
personagens oriundos de uma pequena burguesia que aderem e defendem os
interesses dos trabalhadores. São os intelectuais que gravitam em torno da luta
social.
Dona Dulce é uma professora de
escola primária, ensina os meninos que dentro de pouco tempo abandonarão ao estudo
para o trabalho. Acredita que haverá no futuro um grande milagre que trará a
redenção do povo: sem atribuir nome a esse milagre, o leitor facilmente
compreende essa esperança com o advento do socialismo. Outro intelectual é o
Dr. Rodrigo, um médico que renuncia a riqueza e a vida confortável do trabalho
na cidade para viver no cais, lado a lado com os trabalhadores, ajudando-nos
com dinheiro e medicando o povo de forma gratuita.
“Mar Morto” é também uma história
de amor.
As mulheres dos marinheiros vivem
um triste destino: esperam a cada noite de tempestade a notícia da morte dos
seus maridos.
Lívia, a companheira de Guma, é
uma delas. Contra a vontade da família, casa-se por amor sincero. Em toda a
história, passa pela não aceitação do destino que leva os trabalhadores ao
encontro inevitável com Iemanjá. No início do casamento, busca até mesmo
acompanhar Guma nas suas viagens no navio. E o amor de ambos enseja pela
primeira vez um sentimento de medo em Guma: nas viagens em que está acompanhado
de Lívia, experimenta um novo sentimento de temor de um naufrágio, que agora arrastaria
consigo a sua companheira.
A morte heroica do protagonista
no final da história traz-nos a revelação de que Lívia não fora simplesmente uma
companheira de Guma. Na busca pelo corpo do marido, a história termina com a
sugestão de que Lívia nada mais fora do que uma materialização de Iemanjá, também
conhecida pelo povo como Janaína. A vida no mar os uniu e a morte no naufrágio
do barco “Valente” os reuniu.